Carlos Novaes, 9 de outubro de 2014
Se ao invés de ser uma ação propriamente prática, a política se prestasse a cavalo mediúnico da moral, o mundo seria um vasto Taleban com dissidência EI. Assim, devemos afastar todo moralismo e encarar como parte do jogo as porções de cinismo e hipocrisia que os políticos servem uns aos outros quando sentados à mesa dos acordos e apoios nessa passagem do primeiro para o segundo turnos. Tanto quanto nos vai sendo franqueado pela mídia, nossa tarefa é menos repugnar as iguarias, ainda que devamos examinar-lhes procedência e consistência, e mais observar a conduta dos comensais durante a ceia, a ver se não estarão extrapolando as margens da falta de decoro tolerável.
Luciana Genro sequer se aproximou da mesa e nem a ela foi convidada, salvo por um aceno tímido do PT, logo recolhido às mangas engorduradas, pois a moça dissipou prontamente todas as dúvidas, tendo esperado apenas a deliberação coletiva do seu PSOL. Embora de boa procedência, entretanto, a resposta servida não chega a ser um primor, pois oferece consistência de margarina: depois de acertadamente ter mostrado ao longo da campanha que PT e PSDB são lenha da mesma madeira, o PSOL nos vem com a decisão de repudiar Aécio, mas poupando Dilma com um mero lavar as mãos, o que não faz jus sequer ao “uma ova!” que se tornou célebre, e mais uma vez mostra o quão difícil é para um broto vigoroso abrir-se ao sol vencendo a sombra do tronco que lhe deu origem.
Ao apoiar Aécio, Eduardo Jorge, homem de partido, segue inclinação antiga dos verdes, que na hora da fotossíntese sempre pendem para os tucanos. Como faz muito tempo que a luz é a mesma, já não faz diferença para nós, que vamos ter de comer a salada inconsistente e improcedente que de qualquer modo vai sair do segundo turno. A única vantagem que algum desavisado poderia ver nesse apoio é a de, no caso de uma vitória, Aécio vir a conduzir ao Ministério da Saúde o próprio Eduardo, um dos idealizadores do SUS, como se o tucano pudesse ter a disposição de aproximar o sistema das metas idealizadas e nunca perseguidas. Em suma, o apoio do respeitável Eduardo Jorge não chega a valer o voto que eventualmente tenha valido no primeiro turno.
A grande surpresa à mesa é Marina, menos pela atitude e mais pelo cardápio. Conduzindo-se desde o início como sempre faz, ou seja, já tinha uma posição fechada, mas faz os salamaleques de costume no fito de emprestar-lhe o colorido de decisão coletiva (quem foi rifado dessa vez não foi um ou outro peixinho, mas toda a Rede, assunto para outro dia), Marina se apresentou à ceia dos acertos não com uma porção de hipocrisia ou de cinismo, mas com uma travessa de farisaísmo. Depois de ter passado toda a campanha buscando se credenciar junto aos donos do dinheiro (e não qualquer dono, pois ela cortejou especialmente aos bancos e ao agronegócio), a nos intoxicar com a defesa de um programa de governo basicamente reacionário e conservador (que incluiu até a demagogia de um 130 de última hora), Marina tenta impor a Aécio (logo a quem!) não a tão defendida autonomia do Banco Central, mas bandeiras que ela própria não apenas não desfraldou em sua campanha, como tratou como carga indesejável, esquecida naquela parte da carroceria em que já nas primeiras freadas sofreu esmagamento ao peso da carga nova. Causas de longeva procedência e inegável consistência, como a das terras da população ameríndia, principal vítima da expansão predatória do agronegócio, e a da Reforma Agrária, cuja não realização num país continental só se explica pela ação conjunta, sempre reacionária e frequentemente sangrenta, dos rentistas e dos ruralistas, são agora trazidas ao primeiro plano porque Dona Marina aprendeu com seus novos parceiros a lógica vespertina do “minimizar danos”. O galo já cantou faz tempo; agora é tarde!
OBS. 1 – em razão de tudo o que foi dito mais acima, não posso concordar com meu prezado Daniel Aarão Reis, que em artigo na Folha de ontem trouxe uma matemática ruim e um moralismo impertinente para defender Marina. Matemática ruim porque não foram três as surpresas, então, mas quatro: Aarão esqueceu da maior delas, a guinada da candidata ao reacionarismo. Moralismo impertinente porque disse-a uma pobre Geni, à qual todos agora acorrem depois de tê-la injustiçado no primeiro turno. Nem uma coisa, nem outra. Nem vi Dilma ou o PT procurarem Marina; nem ela foi injustiçada no primeiro turno. Por certo que houve muita baixeza dos adversários contra ela, especialmente por parte da campanha de Dilma, mas não houve injustiça, uma vez que Marina ofereceu uma carreta graneleira de propostas reacionárias recém incorporadas à sua tão antiga quanto respeitável bagagem, bagagem essa que foi esmagada pela carga nova aos solavancos da campanha precisamente porque a motorista da carreta não achou de defende-la, e agora posa de exigente para que Aécio o faça. Sabemos no que isso vai dar se Aécio vencer.
OBS. 2 – Para quem se interessa pelo realismo literário russo da segunda metade do século XIX, literatura que refletiu, e incidiu sobre, as contradições que resultaram nas duas revoluções que varreram aquele país no início do século XX (1905 e 1917), informo que apresento aqui, em formato .pdf, uma análise minha do conto RELÍQUIA VIVA, de Ivan Turguêniev.