Carlos Novaes, 04 de junho de 2022
A conjuntura política vem se desenrolando sem desafio à inteligência. Tudo se passa dentro de parâmetros previstos, até o comportamento da mídia convencional, que insiste no alarido de que Bolsonaro pode tentar dar um golpe (mais um!), quando sabemos que qualquer nova tentativa vai acabar exatamente como acabaram todas as outras: em desmoralização. Na verdade, olhados bem de perto e do modo certo, os blefes atuais de Bolsonaro contra o STF e as urnas eletrônicas já se tornaram aspectos folclóricos da paisagem. A cada declaração, Bolsonaro reforça sua condição de Faustão da política: aquele que tem audiência porque ocupa o cenário das atenções inerciais, mas a quem quase todo mundo quer deixar para trás – fora do cenário ele será reduzido ao seu verdadeiro tamanho.
As facções adversárias insistem em levar essa pantomima ditatorialesca a sério para poderem legitimar sua defesa do Estado de Direito Autoritário–EDA, para se pavonearem defensores de um suposto Estado democrático de direito sob ameaça imaginária de reversão ditatorial. Já vimos detalhadamente aqui como os danos provocados por Bolsonaro saem não do que ele diz contra a democracia, mas do que ele faz com os poderes do suposto Estado democrático de direito que herdou da polarização fajuta entre PT e PSDB.
Há poucos dias, Lula entendeu de aplicar um glacê rançoso sobre o bolo mofado de sua aliança com Alckmin — quão mais lá de trás você acompanhe este blog, leitor, mais haverá de entender a gargalhada amarga que dei ao assistir ao vídeo com a cena patética de um Lula patético proferindo esse juízo patético:
…como esse país era feliz quando a polarização era do PT contra o PSDB. […] A gente era civilizado, a gente ganhava e perdia. […] A transição que fizemos com Fernando Henrique foi a mais civilizada que esse país conheceu.
Toda essa “civilização” celebrada por Lula era o reverso da medalha daquela polarização nefasta de que ele tem saudade – eles eram cordiais porque a polarização era fajuta, pois não pode haver polarização entre iguais! O fato de o PSDB estar em vias de extinção enquanto o PT se revigora e absorve o mais conservador dos grandes hierarcas tucanos é prova adicional de que a divisão entre eles era um despropósito, só explicável pelas ambições facciosas por poder e dinheiro. Desde pelo menos o plano Real deixara de fazer sentido a “polarização” PSDBxPT.
Como já vimos, foi aquela fajutice que nos trouxe a Bolsonaro: para encenarem a sua “civilização”, tanto PSDB quanto PT mantiveram muito bem nutridos os “incivilizados” dispositivos paisanos legados pela ditadura [p-MDB, PFL (ex-ARENA), e partidecos satélites saídos desses dois]. Em suma: as duas forças políticas que representavam o que a sociedade produzira de melhor em sua luta pela democracia degradaram-se arregimentando uma contra a outra o que havia de pior na ditadura que a mesma sociedade havia derrotado. Ao invés de se unirem para a trabalheira de levar o país em direção a um Estado de Direito Democrático, PSDB e PT preferiram lançar mão dos picaretas e autoritários que podiam comprar para comodamente se adequarem como “adversários” nas dobras do Estado de Direito Autoritário saído da transição truncada.
De tanto manterem vivos no EDA, que comandaram, aspectos fundamentais da ditadura, PT e PSDB acabaram por ter de encarar o ressurgimento dela em forma de assombração. Agora, se recusam a encarar a traição que fizeram à maioria da sociedade que almeja um Estado de Direito Democrático e tentam nos embrulhar na defesa ao EDA que não combateram e, pior, ao qual se afeiçoaram e trouxeram até essa crise de legitimação. Para isso, o governador do período mais truculento da PM de SP, o ex-chefe do Paulo Preto no rodoanel (“todo enrolado com a Justiça”), está a nos ser reapresentado como prócer civilizatório. E o que não falta é quem nomeie essa mixórdia de “projeto da esquerda pela democracia”.
O resultado é a polarização fajuta entre, de um lado, a anacrônica candidatura Lula-Alckmin e, de outro, Bolsonaro, tendo como vice um milico de pijama. Os primeiros só têm a oferecer menos do mesmo, mas insistem em vender como esperança a volta a um passado edulcorado que qualquer pessoa séria e minimamente informada só pode conceber como indesejável (até porque foi precisamente essa política profissional facciosa que engendrou Bolsonaro). Os segundos insistem em oferecer mais do mesmo, precisamente o que a maioria já recusou, como reiteram de sobra pesquisas recentes, que mostram não apenas a preferência pela democracia, mas a crescente abertura de espírito da maioria da sociedade brasileira, tudo em linha com a luta por um Estado de Direito Democrático (conjunto que mostra toda a impropriedade de apontar uma “onda conservadora duradoura”, comparando Brasil com Hungria e outras bobagens saídas da absorção acrítica de literatura sobre a morte das democracias — e como se vendem!).
Essa polarização é fajuta não porque essas chapas sejam praticamente a mesma coisa (como eram PSDB e PT), mas porque elas se opõem uma à outra no que não existe: uma fantasiosa ameaça às franquias democráticas. A chapa Lula-Alckmin rebaixa objetivos, escamoteia problemas e desvia o ímpeto pela mudança que sopra no Brasil deste o fim da ditadura paisano-militar. Em outras palavras: se Bolsonaro fosse uma ameaça real à democracia, se o Estado brasileiro atual fosse um Estado de Direito Democrático, faria todo sentido uma frente democrática contra ele. Mas Bolsonaro, seus milicos e o Centrão estão tão aboletados no EDA quanto estarão Lula, Alckmin, a autointitulada esquerda e o mesmo Centrão! (quem viver, verá!).
De modo que a maioria da sociedade que prefere a democracia e repele o sistema se deixou polarizar entre candidatos flagrantemente incompatíveis com a meta de um Estado de Direito Democrático: Lula se diz democrata, mas defende com unhas e dentes o sistema corrupto e violento de que se fez chefe; Bolsonaro se diz antissistema e, apoiado em facções do sistema, ataca a democracia sistematicamente. Nenhum dos dois faz a reunião necessária: preferência pela democracia com impulso do sentimento antissistema. Ainda que muito diferentes um do outro, nenhum dos dois representa alternativa para o país. Evidentemente, na falta de alternativa melhor, o menos ruim é uma presidência de Lula – mas isso mostra a miséria política a que fomos arrastados.
O CONGRESSO COMO PROBLEMA
Faz anos que este blog explicou que nosso problema central está na continuidade do Congresso da reeleição infinita, sempre contraposta à mudança vinda da presidência da República, por mais pálida que ela tenha se mostrado. Agora virou moda falar da importância do Congresso (finalmente!), mas tudo se passa como se o problema fosse dar maioria ao presidente eleito – a tal governabilidade. Avacalhando a bandeira da renovação congressual, todos os candidatos à presidência da República pedem um Congresso com maioria para si, como se as facções fossem abrir mão das condutas facciosas que a relação Legislativo-Executivo determina no EDA, como se uma maioria supostamente pró-Lula fosse agir muito diferente dessa maioria supostamente pró-Bolsonaro, como se fossem abrir mão das emendas parlamentares ou de alguma versão das chamadas emendas de relator, ou dos esquemas de nomeação nas estatais, ou dos negócios em obras tocadas para fazer negócios (lembre-se, leitor: foi o PT que inventou o fundo partidário e o fundo eleitoral, que hoje irrigam com nosso dinheiro o jogo oligárquico da política profissional brasileira; foi o PT que fez o mensalão, levando para o Congresso práticas da política municipal mais incivilizada; o PT manteve a prática de lotear a Petrobrás em troca de apoio (ruim) no Congresso; foi o PT que tirou do papel e construiu Belo Monte, aquele sumidouro de água, dinheiro e vida voltado à produção de energia elétrica incerta, como comentei, in loco (lá em Altamira-PA), ao final de cada um dos episódios dessa série de vídeos aqui).
Olá, Carlos Novaes.
Tenho 2 questionamentos a lhe fazer. Não confrontações, mas sim, com o mais desarmado dos espíritos, questionamentos. São eles:
Acompanho suas análises desde a época de SBT, e sempre me “identifiquei” com grande parte delas.
Mas sempre me pergunto, e agora diretamente a você, como se pode (no nosso Brasil) fazer ruir este poder tão apontado como a causa de nossos males, estando fora da “máquina político partidária”? Acaso um utópico “bom presidente” não faria mais com um “bom congresso”?
E, de certa forma na sequência, seja qual for a resposta à questão acima, não seria de maior ressonância o uso, por sua parte, de canais de comunicação com maior visibilidade? Não me refiro a canal no youtube, instagram e etc. E sim, à sua participação como entrevistado, convidado, consultor, enfim… em canais destes meios já estabelecidos, como o canal do Eduardo Moreira, por exemplo. Algo assim que promova sua inclusão no debate público.
Agradecido pela atenção.
Paulo, não sei se entendi bem suas primeiras duas perguntas. De todo modo, entendo que a “máquina partidária” brasileira é parte dos nossos problemas, uma vez que os fundos públicos disponíveis estimulam, a um só tempo, a criação de partidos (fonte de dinheiro – e dinheiro para financiar a disputa de mais poder) e o controle oligárquico dos partidos formados (fonte de poder – e poder para fazer mais dinheiro). Esses fundos saíram da ilusão (com má fé de alguns) de que o que é público é sempre melhor do que o que é privado. Besteira grossa, pois os fundos públicos são geridos pelos partidos sem qualquer controle efetivo e, mesmo com eles, a política, tal como no passado, continua a ter caixa2, financiado pelos interesses privados. O Brasil só irá iniciar a construção de um Estado de Direito Democrático quando a sociedade brasileira negar obediência ao Estado de Direito Autoritário que a infelicita.
Quanto à divulgação do meu trabalho, este blog é o que está ao meu alcance fazer. Grato pelo interesse.
Saudades de quanto lhe assistia no Jornal da Cultura.
Siga o bom trabalho, sempre!
Grato, Diogo. Em breve vou iniciar um canal no YouTube com publicações regulares, para acompanhar o processo eleitoral que se iniciará com a realização das convenções partidárias.