A GUERRA DE PUTIN CONTRA A UCRÂNIA

Carlos Novaes, 02 de março de 2022

Ao ser levado a responder mensagem de WhatsApp enviada por um amigo sobre a guerra de Putin contra a Ucrânia acabei por me ocupar do assunto por escrito e, então, não vi porque deixar de compartilhar aqui as linhas gerais do que vim pensando sobre esses eventos internacionais.

Desde o início da crise estive certo de que Putin não invadiria a Ucrânia. Considerei que o deslocamento massivo de tropas e equipamentos era parte de uma encenação, ainda que muito onerosa, pela qual Putin pretendia arrancar concessões da Ucrânia. Por isso mesmo, entendi a movimentação de Biden como astuta pois, apoiado na materialidade de 150 mil soldados e blindados, ele podia dar como certa uma invasão que não viria e criar para si uma posição confortável diante da opinião pública mundial: se, de fato, como parecia mais provável, Putin não invadisse, sempre se poderia pensar que a pressão dos EUA levara o russo a desistir; se, por outro lado, houvesse a invasão, os EUA estariam cobertos de razão em seu alarido. De modo que acompanhei a cena com essa dupla impressão: Putin blefava e Biden tornava o blefe extremamente custoso para o blefador, tirando proveito das apreensões dos ucranianos.

Putin me parecia blefar por três razões principais:

  1. Nunca esteve, nem estava no horizonte a entrada da Ucrânia na OTAN, até porque, em 2014, Putin anexara a Criméia e fomentara a disputa territorial no leste do país, criando um intransponível impedimento preliminar formal ao exame da admissão da Ucrânia na aliança ocidental, pois seu regulamento proíbe a aceitação de países que estejam em disputa territorial;
  2. Uma invasão tornaria claro o objetivo de expansão territorial, o que levaria a Rússia a sofrer sansões desfavoravelmente desproporcionais aos ganhos que uma guerra de invasão, em plena Europa, traria (quais seriam – serão – os ganhos de Putin, se a ameaça da entrada da Ucrânia na OTAN nunca foi real e se não há nada nem parecido a maus-tratos (que dirá genocídio) à população russófona naquele país?)
  3. Putin não poderia deixar de saber que a população ucraniana resistiria duramente à invasão, precisamente porque depois de séculos de vida nacional intensa, ainda que incerta e sofrida, ela finalmente havia conquistado a delimitação clara de seu território nacional.

A razão 1 acima me levou a receber como impertinentes todas as matérias, análises e opiniões que buscavam dar alguma razão a Putin com base na chamada expansão hostil da OTAN. Estava (e está) claro que esse era (e é) o pretexto de Putin, não sua motivação real. Não menos impertinente me pareceu, e parece, tudo o que foi invocando acerca das recentes guerras provocadas pelos EUA, como se os crimes de um justificassem os crimes do outro. Não foi sem pesar que vi em apoio a Putin pessoas que outrora se haviam colocado acertadamente contra os EUA no Iraque. Houve até quem, ao gosto do freguês, louvasse atributos pessoais do mandatário russo, sugerindo que seu longo discurso teria sido feito de improviso e louvando seu suposto conteúdo informativo (na verdade, uma leitura interessadamente deturpada da história do conturbado território da hoje Ucrânia).

A razão 2 acima (a das sanções) me levava a conjeturar sobre o fato de que Putin não poderia deixar de antecipar a reação europeia e dos EUA, ainda que eu jamais tenha considerado que ela pudesse ser tão abrangente e profunda como está se desenhando. Acho que Putin também deve estar surpreso, pois não creio que ele tenha antecipado um cenário em que, por exemplo, a Alemanha abrisse mão do gasoduto recém construído e, como disse Mathias Alencastro, promovesse em dois dias a revisão de uma política externa de décadas.

Minhas conjeturas sobre a razão 3 jamais levaram em conta o fato de que as fantasias nacionalistas e imperiais de Putin pudessem tê-lo cegado para o apego nacional dos ucranianos à sua integridade territorial e autodeterminação. Ao que parece, o discurso “com enorme massa de dados” em que Putin desdenhou da Ucrânia e, ao mesmo tempo, reivindicou como milenarmente russo seu território, convenceu não apenas próceres da autointitulada esquerda brasileira, mas ao próprio Putin — o cinismo engoliu o cínico.

Está cada vez mais claro que a invasão pouco tem que ver com a OTAN, sendo antes uma ação ditada pelo sonho irrealizável de restaurar fantasia milenar de grandeza territorial de quem viveu como perda traumática o fim da URSS.

Mutatis mutandis, toda essa irracional cadeia criminosa de eventos me fez lembrar da Guerra da Criméia, desencadeada pelo tsar Nicolau-I no início da segunda metade do século XIX. Naquela altura, o autocrata deu motivação religiosa falsa (proteger cristãos ortodoxos e seus templos no Império Otomano – hoje Turquia) para justificar uma guerra de expansão que lhe parecia fácil, quase sem custos. Nicolau-I imaginou que a Europa não faria caso: contou com a neutralidade da Áustria, desconsiderou o engajamento de França e Inglaterra e, ainda por cima, imaginou que receberia a adesão da população das áreas invadidas. Deu tudo ao contrário: a Áustria reagiu fortemente contra a agressão russa, França e Inglaterra declaram guerra à Rússia ao lado dos otomanos e a população a quem Nicolau-I dizia proteger não demonstrou qualquer simpatia pelo invasor. Resultado: depois de derrotada, a Rússia teve de assinar um tratado de paz tão humilhante que enfraqueceu o domínio interno dos Romanov, numa sucessão de eventos que levou ao fim da servidão* e, em seus desdobramentos, à Revolução de 1917, que eliminou os Romanov.

* O escritor russo Ivan Turguêniev deu tratamento literário a esses eventos em dois dos três contos cronológicos que incluiu tardiamente em seu clássico Notas de um caçador. Em um deles, intitulado O fim de Tchertopkhánov, ele trata metaforicamente da Guerra da Criméia e no outro, Relíquia viva, ele faz o mesmo com as circunstâncias do fim da servidão na Rússia. A análise que realizei para fazer aflorar o até então inédito sentido oculto de cada uma dessas obras pode ser lida entre as páginas 180 e 213 do meu livro LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX, que pode ser encontrado em formato .pdf aqui.

Fica o Registro:

Tenho recebido muitas reclamações de pessoas que ao tentarem entrar neste blog são expostas a uma notificação que sugere que meu blog é inseguro e, ainda por cima, propõe como alternativa o endereço de um site de política dos EUA!!? Essa interferência indevida desvia os interessados no meu trabalho e ainda não sei como fazer para impedi-la. Por enquanto, só me resta torcer para que as pessoas cliquem no botão “ignorar” que aparece na tela.

1 pensou em “A GUERRA DE PUTIN CONTRA A UCRÂNIA

  1. Carlos Alberto Vieira Mendes

    Muito bom.
    A encarnação da fábula do lobo e do cordeiro. Não importa a verdade, e sim, a versão do maís forte, do agressor.
    Pior, são as atitudes de leniência e apoio de setores e atores da chamada esquerda democrática.
    Lamentável.

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