COMO SE ALGUÉM PUDESSE GARANTIR QUE A SAÍDA DO PURGATÓRIO É O CÉU…!
Carlos Novaes, 16 de outubro de 2018
Reproduzo a seguir entrevista com o professor José Arthur Giannotti, publicada hoje pela Folha de S. Paulo e, em contraponto, apresento minhas respostas às mesmas perguntas, como se tivesse sido perguntado…
Folha – Por que a polaridade PT-PSDB foi varrida?
Giannotti – Foi varrida porque ao PSDB faltaram lideranças, faltou se renovar. Quando você chega ao [João] Doria, que é pura aparência, é o fim. Nós vivemos numa sociedade do espetáculo, mas com o Doria você só tem espetáculo, não tem conteúdo político. O PSDB ficou dividido entre o Alckmin e oDoria. Do outro lado, o PT levou o país a uma recessão brutal por causa de uma série de equívocos econômicos. Esta eleição recupera e amplia 2013 [movimento contra alta de tarifas de transporte que depois começou a questionar a agenda dos partidos e a eficiência do Estado].
Novaes – Foi varrida porque era um simulacro que se sustinha no pacto do Real e na falta de uma alternativa, uma falta de alternativa que repousava na acomodação da maioria da sociedade brasileira ao tal pacto e ao joguinho fajuto entre os dois partidos. Quando o pacto ficou insustentável — em razão da contradição insolúvel entre a desigualdade extrema (que a classe média que não é funcionária pública passou a sentir com cada vez mais força) e as franquias democráticas, a começar pelo amplo direito de opinião e voto — , a polarização desabou. Na descostura do pacto, como o PT ocupara fajutamente o lugar da “social-democracia”, o PSDB teve de abandonar o social e a democracia, e o resultado final é o Dória de mãos dadas com Bolsonaro prometendo fazer da polícia uma franquia de cemitério; do outro lado, na hora da ruína o PT fez o movimento oposto, tentando o simulacro de mais uma “volta às origens” (do que já está a recuar, para poder agradar aos de cima nesse segundo turno — firmes como estaca no pântano!).
O que o sr. achou do resultado das eleições?
Giannotti – Estou contente porque esse movimento antidemocrático, que é profundo e ocorre no mundo inteiro, representa o capitalismo atual, que é o capitalismo de conhecimento. Isso exige uma universidade que faça pesquisa, e o lulismo transformou a universidade num processo de ascensão social: você sai de secretária 3 para secretária 1. Os tucanos também fizeram isso em SP.
A eleição trouxe essa violência toda para o jogo político. Nós temos uma violência insustentável: morre mais gente aqui do que na guerra da Síria. A eleição foi um banho de soda cáustica revelando as nervuras da real luta política.
Novaes – Estou preocupado com as consequências sobre os mais vulneráveis, frequentemente negligenciadas pelos hegelianos apressados, sempre prontos a celebrar a racionalidade do real, como se o que se apresenta fosse a única via para o surgimento do novo, quando nem no parto é mais assim, pois faz tempo que inventaram a cesariana. O que ocorre no Brasil não é um movimento antidemocrático, muito menos profundo; é um abrangente, embora epidérmico, movimento anti-sistema, que reúne democratas e não democratas precisamente por ser epidérmico, e é epidérmico porque não fomos capazes de construir uma alternativa que juntasse os revoltados contra o sistema e os revoltados contra a desigualdade numa perspectiva democrática.
Pela epiderme evola-se a raiva. A raiva nunca é uma boa base para tomar decisões precisamente porque ela se vai e o resultado fica — no caso presente, o resultado será não exatamente essa revelação das “nervuras da real luta política”, mas o enrijecimento das dobras do Estado sobre a sociedade, de consequências nefastas previsíveis. Se há algo de propício nisso, só a luta dirá.
Essa onda conservadora tem relação com a violência?
Giannotti – Evidente. Mas é também uma reação violenta. Não esqueça também que o PT achava todo mundo que não fosse petista um canalha, golpista. A violência na política não está apenas no lado fascista, mas está do lado do populismo. Ao trazer a violência para a disputa, você traz inclusive os milicos para a política. Em vez de ficarem conspirando entre eles, uma parte da conspiração vai para a política. Porque a conspiração vai continuar.
Novaes – A onda tem relação com a violência, mas ela não “É” conservadora — ela se fez conservadora, foi hegemonizada pelos conservadores e reacionários, por falta de alternativa. Entende-la como de matriz conservadora é desprezar como delírio coletivo todo o esforço democrático que, apesar de tudo, a maioria da sociedade brasileira fez nesses 40 anos que nos separam do fim dos anos 1970, quando a luta contra a ditadura paisano-militar ganhou as ruas. O PT e o PSDB puseram tudo a perder.
A vantagem de trazer os milicos para a disputa foi uma só: todo mundo pôde enxergar todo o despreparo, toda a grosseria, toda a obtusidade trazida no linguajar vulgar dos generais falantes. O problema é que a política é feita com conversa, e eles, embora falantes, não são dados a ouvir e agem por outros meios.
Há perigo de golpe?
Giannotti – Esse perigo diminuiu. Agora tem menos risco de golpe porque as pessoas que eram golpistas encapuzadas passaram a ser golpistas dentro da dança política. Viraram parte da instituição. O golpe pode vir no impeachment do Bolsonaro. Em seis meses ele não vai ter essa aprovação que tem porque não vai resolver a crise econômica. Está todo mundo assustado, mas o resultado é bom.
Novaes – O risco diminuiu porque eles estão contando com essa consagração eleitoral que se anuncia. Mas, como já disse ontem, vamos ficar entre o impeachment e o golpe não apenas em razão da crise econômica, mas também em razão da marcha violenta e antidemocrática que vai se iniciar no próximo dia 29.
Não há razão para susto?
Giannotti – Pelo contrário. Temos que fincar as nossas razões democráticas e começar a combater as causas dessa violência toda. O país está se preparando para sair da crise com crescimento de 1,5%, como se estivéssemos no século 19. Quais são essas causas? O petismo imaginou que existia um capitalismo brasileiro com características diferentes do mundial. Isso não dá num capitalismo de conhecimento.
Novaes – Há, mas não temos escolha a não ser valorizar a vigência das franquias democráticas e continuar a colocá-las contra o sistema e contra a desigualdade, que agora vão ficar ainda mais salientes, pois Bolsonaro não tem como abrir uma saída que responda às expectativas que criou.
O PSDB pode renascer?
Giannotti – Não. O fundamental é que renasça o centro. Porque não existe política sem centro. Para conter o discurso e a prática velha do PT. E, por outro lado, para conter essa onda que acredita na violência pela violência.
Novaes – O PSDB está morto faz tempo. Agora, para podermos ir adiante, tampouco podemos aceitar a liderança do que quer que sobre do PT, o núcleo duro do nosso atraso. Agora, não entendi como um mítico centro redentor pode ser visto como saída depois que se enxergou “as nervuras da real luta política”?!!
Por que o voto nos extremos?
Giannotti – O eleitor foi para os extremos porque ele raivosamente se apegou às promessas do PT, que foram frustradas. Essa raiva faz parte da tradição política, mas ela piorou. Nunca vi tanta violência, nem em 1964. Porque agora há muito ódio. E a violência está dos dois lados. Muitas vezes os que são contra Bolsonaro têm uma violência bolsonarista.
Novaes – Que extremos? Como assim a violência está dos dois lados!? Essa polarização Bolsonaro-PT é fajuta, não representa extremos reais, pelo contrário. Agora, dizer que, nesse caso, “a violência está dos dois lados” é de uma irresponsabilidade sem tamanho — deve ser a prudência do filósofo: Giannotti vai esperar o governo Bolsonaro para se certificar da diferença…
Há outras razões para o voto nos extremos?
Giannotti – Há. O eleitor vive num mundo violento e acha que só a violência resolve. Para acabar com a violência, ele acha que é bandido na cadeia ou morto. Isso não funciona no mundo real. Você só resolve isso criando instituições democráticas. Você tem de criar empregos, tem de esclarecer como será a reforma da Previdência e acabar com vantagens.
Novaes – Os falsos extremos foram construídos porque falta uma alternativa que dê uma resposta articulada à violência como um todo: a violência da bandidagem de rua e a violência da bandidagem de palácio, ambas organizadas segundo facções estatais. Na bandidagem de rua, há dois tipos, a organizada, via presídios (Estado) e a desorganizada; na bandidagem de palácio (Estado) há dois tipos, os corruptos (ladrões, foras da lei), e os aproveitadores (espertalhões no uso da lei). Só uma visão articulada contra eles todos permitirá construir uma saída democrática contra a violência, pois essa articulação vai ajudar a mostrar que não dá para sair matando gente…
Quais vantagens?
Giannotti – As vantagens do funcionalismo, como auxílio-moradia. Quando você tira as vantagens, dizem que estão tirando direitos. Desculpe, mas estão tirando vantagens. Sou beneficiário disso também. Todos nós tivemos aposentadoria integral na USP. Eu me lembro quando estava construindo esta casa, eu peguei o [o filósofo francês Michel] Foucault e ia levá-lo para a faculdade [de Filosofia], mas tive que passar na obra. O Foucault perguntou: “Você tem bens pessoais, herança? Porque um professor na França jamais faria uma casa desse tipo”. Todo mundo tinha esses privilégios na USP. Há benefícios para militares, professores e juízes que nenhum país do mundo tem. Isso tem de acabar.
Dá para pacificar o país?
Giannotti – A grande sorte dessas eleições foi trazer para a política as forças ocultas. Com isso, elas vão se moderar. Você não governa com ameaças nem se mostra publicamente como um bandido. Eles serão obrigados a se civilizar. Não dá para ter também um país tão pobre. Isso não é mais tolerável.
Novaes – Pacificar sempre dá; até na marra. Agora, não cabe celebrar essa tragédia toda, por duas razões: primeiro, porque ela vai trazer danos tremendos à vida social; segundo, e mais importante, porque não existe isso de forças ocultas que vieram à tona, como se esses afetos e preferências já estivessem prontos, apenas esperando uma brecha para aflorar. Não. Pensar assim é fazer a teoria conspiratória dos sentimentos. Foi o processo que construiu os afetos, porque eles não são individuais, são coletivos, partilhados — por exemplo, um linchamento não resulta do aflorar de algo que já estava lá, dentro de cada linchador; não, o afeto linchador é construído no processo, que burila, por deformação, os seus agentes, que iriam em direção até oposta sob circunstâncias diferentes. Logo, não faz sentido algum ver vantagem em afetos tão nefastos.
Bolsonaro ataca mulheres, negros, gays e indígenas. Isso significa um retrocesso comportamental ou ele fala por um Brasil que é conservador mesmo?
Giannotti – Uma parte do país é conservadora. Mas esse discurso é uma estratégia, uma forma de se mostrar como durão. Isso pode ter repercussões muito ruins. Uma coisa é um deputado dizer que não estupra uma deputada porque ela é feia. Se um presidente disser isso, sofre impeachment. Esse comportamento é inaceitável para um presidente. Ou ele muda ou cai. Na eleição tínhamos que escolher entre duas crises.
Novaes – Bolsonaro diz essas coisas em público há quase trinta anos, logo, não é uma estratégia, é uma maneira de ser. A estratégia vem aparecendo agora, quando ele diz que não é bem assim justamente porque a maioria da sociedade não pensa desse modo. Isso quer dizer que temos razão para esperar o pior quando ele assumir o poder (e até antes da posse, especialmente contra os índios e na área rural).
Quais?
Giannotti – A crise que vem junto com Bolsonaro, com violência e não democracia, ou o impeachment por estelionato eleitoral do PT. Tudo indica que, pelo plano de governo que o Lula tinha montado, não daria para cumprir as promessas. O Brasil está encalacrado e só vai desatar quando o sistema político ficar mais moderno e democrático. Antes estava inteiramente fechado. Agora desarrumou tudo. Que bom!
Novaes – Ficamos entre duas crises, é verdade. Mas só quem pode viver a certeza íntima (ilusória, aliás) de que não vai sofrer as consequências é que pode achar bom que prevaleça a crise que Bolsonaro significa.