Arquivo da categoria: A “CRISE” E A CRISE

VENCEU A “ORDEM” — TEREMOS DES-“ORDEM”

Por excesso de acessos, este blog ficou fora do ar em três dias cruciais. Peço desculpas aos leitores por essa falha técnica, decorrente da minha imperícia na matéria…

Carlos Novaes, 29 de outubro de 2018

 

Já faz algum tempo que venho explorando, em vários textos e em séries de videos, um conjunto de ideias que pode ser resumido assim: em sua desorientação, a maioria da sociedade brasileira tem vagado de uma polarização fajuta a outra.

Primeiro, a maioria da sociedade se deixou envolver no joguinho em que dispositivos cruciais da ditadura paisano-militar se fizeram pólo anti-ditatorial fajuto e, assim, lograram se transferir de mala e cuia para o Estado de direito da Nova República, num processo em que a democracia viva praticada pela maioria da sociedade contra o Estado ditatorial não completou sua transição para dentro do Estado de direito, que, assim, ganhou a forma de um Estado de Direito Autoritário.

Segundo, a maioria da sociedade se conformou à polarização fajuta pela qual PSDB e PT se acomodaram ao Estado de Direito Autoritário, já que nenhum dos dois esteve disposto a arcar com os riscos de levar adiante o projeto de construir um Estado de Direito Democrático, uma construção que só poderá ser erguida sobre as fundações de um projeto de enfrentamento da desigualdade. As duas forças forjadas pela maioria da sociedade no exercício das franquias democráticas acharam mais rentável se acomodarem à desigualdade, recrutando, cada uma à sua maneira, os dispositivos paisanos da ditadura, apoiadas nos quais se revezaram no protagonismo para o exercício faccioso dos poderes institucionais que todo Estado de Direito Autoritário permite.

Terceiro, diante da crise saída da insustentabilidade dos arranjos anteriores — uma insustentabilidade que apareceu de maneira mais visível nas circunstâncias que levaram a dois golpes congressuais continuístas (pois está no Congresso o grosso da força dos dispositivos paisanos herdados da ditadura) na forma de impeachments presidenciais (pois se concentram no presidente da República as pressões à mudança), circunstâncias essas decorrentes da mistura entre avidez pelo poder e crises econômicas (inevitáveis enquanto não se encarar a desigualdade, que condena o país ao atraso e a maioria da sociedade a sofrimentos desnecessários, decorrentes dele) — diante dessa sucessão de crises, que levaram à conflagração das facções estatais, a maioria da sociedade se deixou conduzir para mais uma polarização fajuta, já agora não entre atores (os atores vieram depois), mas entre aspectos substanciais da sua própria desdita: embaladas para presente no papel da raiva, a urgência social e a urgência por ordem foram mutuamente contrapostas, quando deveriam ter sido reunidas num projeto de transformação.

Ao ir deixando-se levar pela raiva, a maioria da sociedade foi dividindo-se improdutivamente entre aqueles cuja afeição principal é a revolta contra o sistema (corrupção, privilégios, abusos de autoridade, interdições arbitrárias e violência), e aqueles cuja afeição principal é a revolta de fundo social (desemprego, sucateamento dos serviços públicos, assimetrias sociais e culturais, e falta de saneamento). Essa divisão foi até o fim porque: primeiro, não surgiu nenhuma alternativa transformadora que reunisse as duas urgências; segundo, essa divisão improdutiva correspondeu à história pregressa das principais candidaturas presidenciais e, por isso mesmo, se conformou ao que foi proposto por elas na campanha, seja na forma de alianças, seja no conteúdo “programático” — nunca ficara tão claro o abismo entre as urgências de um país e a mixórdia das suas pretensas vanguardas.

Quarto, toda essa sucessão regressiva convergiu, então, para a mais recente polarização fajuta, a das duas candidaturas que melhor atendiam à desorientação: Bolsonaro e Haddad. O primeiro porque reata o fio lá atrás, ao Estado ditatorial de antes da formação do Estado de Direito Autoritário que nos infelicita, com o que dá a ilusão de que esse Estado (o sistema) poderá ser deixado para trás — quando, na verdade, sob Bolsonaro esse Estado será feito ainda mais autoritário; o segundo pelo que ofereceu de continuidade no presente, de um lado em razão de um suposto compromisso social (que há tempos se revelou fajuto), de outro porque, de fato, Haddad não significa uma ameça à vigência das franquias democráticas de que a maioria da sociedade ainda desfruta (e este é o termo: desfruta, porque a elas não dá consequência emancipatória).

A vitória do despreparado Bolsonaro sobre o professor Haddad significa que a mudança (urgência por ordem, sem fazer caso do social) venceu a continuidade (perseverar no social, mas dando as costas para a desordem evidente), um resultado muito eloquente do que pode acontecer quando a irracionalidade de poucos se apoia na insânia de muitos para evitar até mesmo saídas que, se não eram ideais, pelo menos não davam para o abismo — a sonhada mudança tomou a forma de pesadelo.

Abre-se um tempo de luta social contra mais um ajuste realizado às custas da maioria para preservar a riqueza da minoria, embate que se dará sob condições especialmente desfavoráveis à maioria, pois a ordem legal estará do outro lado, como já deram sinais as recentes incursões de facções judiciárias e policiais contra as Universidades, diante das quais os posicionamentos da Corte mais alta não chegam a alentar, pois nem ela poderá atuar sobre a miudeza do arbítrio que virá (um arbítrio que irá corroendo, na prática, as franquias democráticas), nem sua disposição democrática será assim tão vigorosa no curso do tempo, uma vez que ela própria está atravessada por, e engalfinhada em, uma luta de facções.

O Estado de Direito Autoritário buscará transformar em ordem seu ímpeto governativo contra o social, tentando atribuir a pecha da desordem à resistência social — quem assim semeia a ordem acabará, mesmo, por colher desordem, na forma de mais uma fase da luta tenaz da sociedade democrática contra o Estado de Direito Autoritário.

EM BUSCA DOS 10% PERDIDOS

Carlos Novaes, 19 de outubro de 2018

[com acréscimo entre […] em 20/10]

Playlists

 

Nessa reta final da campanha, o desafio é virar cerca de 10% do eleitorado: tirá-los de Bolsonaro em favor de Haddad. É muito difícil, mas não é impossível.

Considerando que Bolsonaro já é beeem conhecido do eleitorado, não há razão para supor que o voto seja dado a ele por desconhecimento. Então, não adianta ficar esbravejando contra ele, repetindo o que todos já sabem. É necessário identificar algo mais sensível, que leve o eleitor a, realmente, pensar.

A principal razão de voto nessa eleição é a revolta contra o sistema.

O sistema é o Estado de direito que nos foi legado pelo Estado ditatorial. Esse Estado de Direito Autoritário vem há trinta anos resistindo contra a democracia vivida em sociedade e, nesta eleição, os eleitores estão fazendo uso das franquias democráticas para, saibam eles ou não disso, expressar sua revolta contra o entulho autoritário responsável pela bandidagem estatal, contra a corrupção, os abusos e os privilégios que beneficiam políticos profissionais e hierarcas do serviço público, agentes do exercício faccioso dos poderes institucionais.

O único candidato que se colocou frontalmente contra o sistema foi Bolsonaro. Entretanto, ele está contra o sistema por razões muito diferentes daquelas que orientam a maioria do eleitorado. Na verdade, enquanto o eleitorado quer um outro Estado de direito, compatível com a democracia; Bolsonaro favorece a volta de um Estado ditatorial, que acaba com a democracia. Mas esse “detalhe” não ficou claro porque todos os outros principais candidatos se apresentaram como defensores deste Estado de Direito Autoritário contra o qual a maioria do eleitorado se revoltou, o que abriu uma avenida para Bolsonaro.

[Em outras palavras: a maioria dos eleitores de Bolsonaro é democrata, mas como ela está entusiasmada para votar contra esse Estado de direito (o sistema); como identificou que o PT é parte do sistema; como o cânone dos bem-pensantes, desconsiderando que pode existir um Estado de Direito Autoritário, insiste em fundir, erradamente, Estado de direito e democracia; como nosso cérebro detesta ver a si mesmo em contradição; essa maioria democrata, ajudada por alguns pensadores e analistas, providenciou para si mesma a narrativa auto-justificadora de que Bolsonaro não ameaça a democracia, fazendo pouco caso das evidências desses trinta anos, como se o ex-capitão tivesse se transformado em outra pessoa e/ou como se nossa democracia tivesse sido consolidada em instituições democráticas sólidas, como se já não houvesse arbítrio bastante abrigado nesse Estado de Direito Autoritário.]

Dito isso, entendo que números das pesquisas mais recentes do DataFolha podem nos ajudar a encontrar os 10% que seriam suscetíveis a uma argumentação pela troca de candidato nessa reta final:

  • 69% do eleitorado do país preferem a democracia. Ou seja, a imensa maioria está em revolta contra o sistema (armado no Estado de direito), mas quer a democracia (vivida na sociedade).
  • 61% entendem que não se pode proibir partidos políticos. Ao contrário do que pretende Bolsonaro, que defende banir partidos de esquerda;
  • 80% desaprovam o uso da tortura. Ao contrário de Bolsonaro, notório defensor da tortura.
  • 51% acham que o legado deixado pela ditadura anterior é mais negativo do que positivo, e 32% acham esse legado mais positivo do que negativo. Mais uma vez, a maioria é contra a opinião de Bolsonaro, que vive a louvar o período da ditadura.
  • 50% sentem que há no ar a ameaça de uma nova ditadura no país. 42% descartam essa possibilidade e 8% não quiseram ou não souberam responder. Ou seja, os rumos da campanha eleitoral colocaram em “alerta democrático” metade do eleitorado.
  • 65% dos eleitores de Bolsonaro descartam a ameaça de uma nova ditadura no Brasil (o grosso dos auto-justificadores está aqui). Quer dizer: há um percentual de 35% dos eleitores de Bolsonaro que ou divisam uma ditadura ou não souberam responder. Se assumirmos os mesmos 8% para quem não quis ou não soube responder, restam 27% dos eleitores de Bolsonaro sentindo cheiro de ditadura no ar.

Mesmo não dispondo-se de mais dados, não deve estar muito longe da verdade quem considerar que há uns 10% do eleitorado total que votam Bolsonaro por serem anti-sistema, mas preferem a democracia, são contra a tortura, acham negativo o legado da ditadura e entendem como ruim a possibilidade de uma nova ditadura, que pressentem.

Nosso papel é ajudar esses 10% a juntarem lé com cré, ou seja, entenderem que uma vitória de Bolsonaro significa uma ameaça à democracia porque favorece a substituição do Estado de Direito Autoritário não por um Estado de Direito Democrático, mas por um Estado ditatorial, ou, no mínimo, ainda mais autoritário do que o atual.

Nesses 10%, mesmo os que acreditem que Bolsonaro abandonou as posições antidemocráticas que sustentou por três décadas podem ser levados a entender que uma vitória dele será uma ameaça à democracia pelo que sua candidatura já atiçou de forças antidemocráticas; forças que ele não poderia controlar mesmo que quisesse, seja no Estado, seja na sociedade.

No Estado, Bolsonaro trouxe de volta à cena política o que há de pior no dispositivo militar (FFAA e PMs) herdado da ditadura, assim como está a se apoiar no rebotalho do dispositivo paisano que ela nos legou: as bancadas ultraconservadoras do Congresso. Nenhum dos dois dispositivos tem compromisso com a luta anti-sistema que anima o eleitor; pelo contrário: eles são os segmentos mais apegados ao que há de vantajoso para si no sistema autoritário, e não hesitariam em sacrificar as franquias democráticas para conservarem suas vantagens.

Na sociedade, Bolsonaro deu vida a segmentos conservadores que já começam a se assanhar em grupos paramilitares, dispostos a agir, na cidade e no campo, contra o exercício das franquias democráticas de que ainda desfrutamos — essas franquias estão sendo usadas para gerar nas ruas o clima violento que favorece a desenvoltura antidemocrática dessas facções. Essa perversão está sendo possível precisamente porque o sistema (Estado de direito) faz corpo mole diante dessas ilegalidades contra a democracia contra a qual ele próprio sempre atuou — nessas ilegalidades se somam condutas facciosas vindas tanto da sociedade quanto do Estado (não é à toa que as milícias paisanas são compostas também por ex-policiais).

BURCA VERDE-AMARELA

Carlos Novaes, 18 de outubro de 2018

Pessoas de todo o mundo estão acompanhando os desdobramentos do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, que desapareceu na Turquia depois de entrar no consulado da Arábia Saudita naquele país.

Jamal trabalhava para o jornal The Washington Post, dos EUA, no qual escrevia sobre os dilemas do mundo árabe. Hoje, a Folha de S.Paulo publicou uma tradução do último artigo de Jamal para o Post.

Li e reli o artigo, com uma perturbação crescente. Algo nele me soava familiar, mas não sabia o que era. Comecei, então, a tentar me aproximar desse sentido familiar do artigo, e fui fazendo uma nova versão dele. Nas linhas a seguir, a versão que minha perturbação me levou a escrever. Ela deixa claro porque o artigo de Jamal me pareceu familiar.

 

O Brasil precisa de livre expressão

O Brasil enfrenta sua própria versão do nazi-fascismo, imposta não contra religiosos ou estrangeiros, mas apoiada em certas igrejas e contra seu próprio povo.

Versão do último artigo de

Jamal Khashoggi 

 

Estive recentemente na internet examinando o relatório Liberdade no Mundo 2020, publicado pela Freedom House, e cheguei a uma grave conclusão: o Brasil já não é um país livre.

Em consequência, os brasileiros são ou desinformados ou mal informados. Eles não são capazes de abordar, muito menos discutir publicamente, questões que afetam o país e sua vida cotidiana. Uma narrativa conduzida pelo Estado domina a psique pública, e embora muitos não acreditem nela, uma grande maioria da população cai vítima dessa falsa narrativa. Infelizmente, essa situação provavelmente não mudará tão cedo.

O Brasil estava cheio de esperança durante a polarizada campanha eleitoral de 2018. As pessoas vibravam com expectativas de um Brasil no rumo certo, livre da criminalidade e na reta do desenvolvimento.

Elas esperavam deixar para traz os motivos das suas raivas: a urgência por ordem (bandidagem de rua e de palácio) e a urgência social (emprego, saúde, educação etc). Mas como elas preferiram separar essas duas urgências, essas expectativas foram rapidamente destruídas; seja porque o país recaiu no antigo status quo (pois a corrupção e os privilégios estão firmes), seja porque seu povo enfrenta condições sociais ainda mais duras que antes, com repressão policial crescente.

Muitos pensadores e analistas, que fizeram o debate naquele período eleitoral, ou foram silenciados pelos próprios meios de comunicação, ou estão sendo perseguidos por processos, sendo que alguns já foram presos.

A liberdade de imprensa vai sendo mais e mais sufocada, ante protestos protocolares da comunidade internacional, especialmente no caso dos EUA, pois Trump nunca escondeu suas simpatias pelo modo como o presidente do Brasil veio enfrentando a crescente oposição ao seu governo.

Em consequência, o governo brasileiro tem rédeas soltas para continuar calando a mídia em ritmo acelerado. Houve uma época em que os jornalistas acreditavam que a internet liberaria a informação da censura e do controle associados à mídia impressa.

Mas esse governo, que chegou ao poder através de um uso mentiroso das mídias sociais, agora vê sua própria existência depender do controle da informação, e bloqueou agressivamente a internet. Eles também reprimiram repórteres locais e pressionaram anunciantes para prejudicar a receita de publicações específicas.

Não há oásis que continuem personificando o espírito democrático que ainda havia na grande mobilização eleitoral de 2018. Os governos de estados importantes, como São Paulo e Rio, estão alinhados sem constrangimento ao governo de Brasília, todos empenhados em manter o controle da informação em favor da “velha ordem brasileira”.

Mesmo no Rio Grande do Sul, um estado do sul do país onde outrora falava-se de uma sociedade civil republicana, a mídia não reflete os graves problemas que o país está enfrentando e não dá espaço para a opinião divergente, sufocada em conversas abafadas nos grandes centros urbanos do país.

Em regiões mais remotas, se multiplicam tanto as mortes de camponeses em conflitos de terras contra os chamados “grileiros”, a serviço do grande latifúndio, quanto o assassinato de índios por garimpeiros, que invadem suas terras em busca de ouro e outros minérios valiosos.

O Brasil enfrenta sua própria versão do nazi-fascismo, imposta não contra religiosos ou estrangeiros, mas apoiada em certas igrejas e contra seu próprio povo, cujos sofrimentos estão sendo mais divulgados na mídia internacional do que na mídia interna. Muitos dos que escreviam em publicações brasileiras agora têm seus artigos publicados apenas em línguas estrangeiras, especialmente na Europa.

Os brasileiros precisariam poder ler em sua própria língua para poderem entender e avaliar as causas de seus sofrimentos, pois a desigualdade e a corrupção continuam, enquanto a pobreza aumenta, de mãos dadas com serviços de saúde e educação cada vez mais deficientes, enquanto a qualidade de vida das camadas médias não cessa de piorar.

Não há outro caminho a não ser perseverar na luta para abordar, esclarecer e enfrentar os problemas estruturais de que a sociedade brasileira padece.

NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 11 – Entrevista do GIANNOTTI, na Folha de hoje

COMO SE ALGUÉM PUDESSE GARANTIR QUE A SAÍDA DO PURGATÓRIO É O CÉU…!

Carlos Novaes, 16 de outubro de 2018

Reproduzo a seguir entrevista com o professor José Arthur Giannotti, publicada hoje pela Folha de S. Paulo e, em contraponto, apresento minhas respostas às mesmas perguntas, como se tivesse sido perguntado…

 

Folha – Por que a polaridade PT-PSDB foi varrida?

Giannotti –  Foi varrida porque ao PSDB faltaram lideranças, faltou se renovar. Quando você chega ao [João] Doria, que é pura aparência, é o fim. Nós vivemos numa sociedade do espetáculo, mas com o Doria você só tem espetáculo, não tem conteúdo político. O PSDB ficou dividido entre o Alckmin e oDoria. Do outro lado, o PT levou o país a uma recessão brutal por causa de uma série de equívocos econômicos. Esta eleição recupera e amplia 2013 [movimento contra alta de tarifas de transporte que depois começou a questionar a agenda dos partidos e a eficiência do Estado].

Novaes – Foi varrida porque era um simulacro que se sustinha no pacto do Real e na falta de uma alternativa, uma falta de alternativa que repousava na acomodação da maioria da sociedade brasileira ao tal pacto e ao joguinho fajuto entre os dois partidos. Quando o pacto ficou insustentável — em razão da contradição insolúvel entre a desigualdade extrema (que a classe média que não é funcionária pública passou a sentir com cada vez mais força) e as franquias democráticas, a começar pelo amplo direito de opinião e voto — , a polarização desabou. Na descostura do pacto, como o PT ocupara fajutamente o lugar da “social-democracia”, o PSDB teve de abandonar o social e a democracia, e o resultado final é o Dória de mãos dadas com Bolsonaro prometendo fazer da polícia uma franquia de cemitério; do outro lado, na hora da ruína o PT fez o movimento oposto, tentando o simulacro de mais uma “volta às origens” (do que já está a recuar, para poder agradar aos de cima nesse segundo turno — firmes como estaca no pântano!).

O que o sr. achou do resultado das eleições?

Giannotti – Estou contente porque esse movimento antidemocrático, que é profundo e ocorre no mundo inteiro, representa o capitalismo atual, que é o capitalismo de conhecimento. Isso exige uma universidade que faça pesquisa, e o lulismo transformou a universidade num processo de ascensão social: você sai de secretária 3 para secretária 1. Os tucanos também fizeram isso em SP.

A eleição trouxe essa violência toda para o jogo político. Nós temos uma violência insustentável: morre mais gente aqui do que na guerra da Síria. A eleição foi um banho de soda cáustica revelando as nervuras da real luta política.

Novaes – Estou preocupado com as consequências sobre os mais vulneráveis, frequentemente negligenciadas pelos hegelianos apressados, sempre prontos a celebrar a racionalidade do real, como se o que se apresenta fosse a única via para o surgimento do novo, quando nem no parto é mais assim, pois faz tempo que inventaram a cesariana. O que ocorre no Brasil não é um movimento antidemocrático, muito menos profundo; é um abrangente, embora epidérmico, movimento anti-sistema, que reúne democratas e não democratas precisamente por ser epidérmico, e é epidérmico porque não fomos capazes de construir uma alternativa que juntasse os revoltados contra o sistema e os revoltados contra a desigualdade numa perspectiva democrática.

Pela epiderme evola-se a raiva. A raiva nunca é uma boa base para tomar decisões precisamente porque ela se vai e o resultado fica — no caso presente, o resultado será não exatamente essa revelação das “nervuras da real luta política”, mas o enrijecimento das dobras do Estado sobre a sociedade, de consequências nefastas previsíveis. Se há algo de propício nisso, só a luta dirá.

Essa onda conservadora tem relação com a violência?

Giannotti – Evidente. Mas é também uma reação violenta. Não esqueça também que o PT achava todo mundo que não fosse petista um canalha, golpista. A violência na política não está apenas no lado fascista, mas está do lado do populismo. Ao trazer a violência para a disputa, você traz inclusive os milicos para a política. Em vez de ficarem conspirando entre eles, uma parte da conspiração vai para a política. Porque a conspiração vai continuar.

Novaes – A onda tem relação com a violência, mas ela não “É” conservadora — ela se fez conservadora, foi hegemonizada pelos conservadores e reacionários, por falta de alternativa. Entende-la como de matriz conservadora é desprezar como delírio coletivo todo o esforço democrático que, apesar de tudo, a maioria da sociedade brasileira fez nesses 40 anos que nos separam do fim dos anos 1970, quando a luta contra a ditadura paisano-militar ganhou as ruas. O PT e o PSDB puseram tudo a perder.

A vantagem de trazer os milicos para a disputa foi uma só: todo mundo pôde enxergar todo o despreparo, toda a grosseria, toda a obtusidade trazida no linguajar vulgar dos generais falantes. O problema é que a política é feita com conversa, e eles, embora falantes, não são dados a ouvir e agem por outros meios.

Há perigo de golpe?

Giannotti – Esse perigo diminuiu. Agora tem menos risco de golpe porque as pessoas que eram golpistas encapuzadas passaram a ser golpistas dentro da dança política. Viraram parte da instituição. O golpe pode vir no impeachment do Bolsonaro. Em seis meses ele não vai ter essa aprovação que tem porque não vai resolver a crise econômica. Está todo mundo assustado, mas o resultado é bom.

Novaes – O risco diminuiu porque eles estão contando com essa consagração eleitoral que se anuncia. Mas, como já disse ontem, vamos ficar entre o impeachment e o golpe não apenas em razão da crise econômica, mas também em razão da marcha violenta e antidemocrática que vai se iniciar no próximo dia 29.

Não há razão para susto?

Giannotti –  Pelo contrário. Temos que fincar as nossas razões democráticas e começar a combater as causas dessa violência toda. O país está se preparando para sair da crise com crescimento de 1,5%, como se estivéssemos no século 19. Quais são essas causas? O petismo imaginou que existia um capitalismo brasileiro com características diferentes do mundial. Isso não dá num capitalismo de conhecimento.

Novaes – Há, mas não temos escolha a não ser valorizar a vigência das franquias democráticas e continuar a colocá-las contra o sistema e contra a desigualdade, que agora vão ficar ainda mais salientes, pois Bolsonaro não tem como abrir uma saída que responda às expectativas que criou.

O PSDB pode renascer?

Giannotti – Não. O fundamental é que renasça o centro. Porque não existe política sem centro. Para conter o discurso e a prática velha do PT. E, por outro lado, para conter essa onda que acredita na violência pela violência.

Novaes – O PSDB está morto faz tempo. Agora, para podermos ir adiante, tampouco podemos aceitar a liderança do que quer que sobre do PT, o núcleo duro do nosso atraso. Agora, não entendi como um mítico centro redentor pode ser visto como saída depois que se enxergou “as nervuras da real luta política”?!!

Por que o voto nos extremos?

Giannotti – O eleitor foi para os extremos porque ele raivosamente se apegou às promessas do PT, que foram frustradas. Essa raiva faz parte da tradição política, mas ela piorou. Nunca vi tanta violência, nem em 1964. Porque agora há muito ódio. E a violência está dos dois lados. Muitas vezes os que são contra Bolsonaro têm uma violência bolsonarista.

Novaes – Que extremos? Como assim a violência está dos dois lados!? Essa polarização Bolsonaro-PT é fajuta, não representa extremos reais, pelo contrário. Agora, dizer que, nesse caso, “a violência está dos dois lados” é de uma irresponsabilidade sem tamanho — deve ser a prudência do filósofo: Giannotti vai esperar o governo Bolsonaro para se certificar da diferença…

Há outras razões para o voto nos extremos?

Giannotti –  Há. O eleitor vive num mundo violento e acha que só a violência resolve. Para acabar com a violência, ele acha que é bandido na cadeia ou morto. Isso não funciona no mundo real. Você só resolve isso criando instituições democráticas. Você tem de criar empregos, tem de esclarecer como será a reforma da Previdência e acabar com vantagens.

Novaes – Os falsos extremos foram construídos porque falta uma alternativa que dê uma resposta articulada à violência como um todo: a violência da bandidagem de rua e a violência da bandidagem de palácio, ambas organizadas segundo facções estatais. Na bandidagem de rua, há dois tipos, a organizada, via presídios (Estado) e a desorganizada; na bandidagem de palácio (Estado) há dois tipos, os corruptos (ladrões, foras da lei), e os aproveitadores (espertalhões no uso da lei). Só uma visão articulada contra eles todos permitirá construir uma saída democrática contra a violência, pois essa articulação vai ajudar a mostrar que não dá para sair matando gente…

Quais vantagens?

Giannotti – As vantagens do funcionalismo, como auxílio-moradia. Quando você tira as vantagens, dizem que estão tirando direitos. Desculpe, mas estão tirando vantagens. Sou beneficiário disso também. Todos nós tivemos aposentadoria integral na USP. Eu me lembro quando estava construindo esta casa, eu peguei o [o filósofo francês Michel] Foucault e ia levá-lo para a faculdade [de Filosofia], mas tive que passar na obra. O Foucault perguntou: “Você tem bens pessoais, herança? Porque um professor na França jamais faria uma casa desse tipo”. Todo mundo tinha esses privilégios na USP. Há benefícios para militares, professores e juízes que nenhum país do mundo tem. Isso tem de acabar.

Dá para pacificar o país?

Giannotti – A grande sorte dessas eleições foi trazer para a política as forças ocultas. Com isso, elas vão se moderar. Você não governa com ameaças nem se mostra publicamente como um bandido. Eles serão obrigados a se civilizar. Não dá para ter também um país tão pobre. Isso não é mais tolerável.

Novaes – Pacificar sempre dá; até na marra. Agora, não cabe celebrar essa tragédia toda, por duas razões: primeiro, porque ela vai trazer danos tremendos à vida social; segundo, e mais importante, porque não existe isso de forças ocultas que vieram à tona, como se esses afetos e preferências já estivessem prontos, apenas esperando uma brecha para aflorar. Não. Pensar assim é fazer a teoria conspiratória dos sentimentos. Foi o processo que construiu os afetos, porque eles não são individuais, são coletivos, partilhados — por exemplo, um linchamento não resulta do aflorar de algo que já estava lá, dentro de cada linchador; não, o afeto linchador é construído no processo, que burila, por deformação, os seus agentes, que iriam em direção até oposta sob circunstâncias diferentes. Logo, não faz sentido algum ver vantagem em afetos tão nefastos.

Bolsonaro ataca mulheres, negros, gays e indígenas. Isso significa um retrocesso comportamental ou ele fala por um Brasil que é conservador mesmo?

Giannotti – Uma parte do país é conservadora. Mas esse discurso é uma estratégia, uma forma de se mostrar como durão. Isso pode ter repercussões muito ruins. Uma coisa é um deputado dizer que não estupra uma deputada porque ela é feia. Se um presidente disser isso, sofre impeachment. Esse comportamento é inaceitável para um presidente. Ou ele muda ou cai. Na eleição tínhamos que escolher entre duas crises.

Novaes – Bolsonaro diz essas coisas em público há quase trinta anos, logo, não é uma estratégia, é uma maneira de ser. A estratégia vem aparecendo agora, quando ele diz que não é bem assim justamente porque a maioria da sociedade não pensa desse modo. Isso quer dizer que temos razão para esperar o pior quando ele assumir o poder (e até antes da posse, especialmente contra os índios e na área rural).

Quais?

Giannotti – A crise que vem junto com Bolsonaro, com violência e não democracia, ou o impeachment por estelionato eleitoral do PT. Tudo indica que, pelo plano de governo que o Lula tinha montado, não daria para cumprir as promessas. O Brasil está encalacrado e só vai desatar quando o sistema político ficar mais moderno e democrático. Antes estava inteiramente fechado. Agora desarrumou tudo. Que bom!

Novaes – Ficamos entre duas crises, é verdade. Mas só quem pode viver a certeza íntima (ilusória, aliás) de que não vai sofrer as consequências é que pode achar bom que prevaleça a crise que Bolsonaro significa.

NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 10 – Entrevista na Folha de hoje

COMO SE AGARRAR AO VELHO — EM VÃO

Carlos Novaes, 15 de outubro de 2018

Reproduzo a seguir entrevista com o professor Marcos Nobre, publicada hoje pela Folha de S. Paulo e, em contraponto, apresento minhas respostas às mesmas perguntas, como se tivesse sido perguntado…

[Com acréscimo em Fica o Registro, às 15:24h]

 

Folha – O senhor falou em artigo recente que, mais uma vez, o PT tem uma chance de renascimento. Qual seria o caminho para o candidato Haddad vencer as eleições, com essa vantagem tão grande para Bolsonaro?

Marcos Nobre – Se quiser ganhar, Haddad tem que ser o candidato de uma frente de defesa das instituições democráticas. Se quiser ser o candidato do PT, vai perder. E o peso de uma possível regressão autoritária vai cair sobre as costas do PT.

Novaes – Fiz aqui uma crítica ao artigo de Nobre mencionado na pergunta. Acrescento ainda que:

  1. a votação recebida pelo PT não representa uma “chance de renascimento” como quer Nobre porque, além de tudo o mais ter permanecido igual, não houve renovação nos eleitos — o PT elegeu para a Câmara os mesmos de sempre, os que tinham mais máquina para arrancar o voto, ao mais velho estilo político;
  2. se Haddad defender as “instituições democráticas” vai perder, pois essas “instituições” são o próprio sistema que está sendo recusado pela maioria, como expliquei no artigo de anteontem e em série recente, iniciada aqui. Para vencer Haddad teria de fazer o eleitor democrata entender e acreditar: entender que Bolsonaro é anti-sistema mas é contra a democracia; e acreditar que ele, Haddad, é anti-sistema mas a favor da democracia, distinguindo “instituições democráticas” (o Estado em crise) de “franquias democráticas” (a sociedade em movimento) — uma operação dessas é quase impossível em 10 dias, talvez se abrisse mão para Ciro…

E como construir essa frente?

Nobre – Haddad deveria sinalizar claramente para o eleitorado que o governo dele será radicalmente diferente de qualquer governo anterior do PT.
A primeira coisa é chamar Ciro Gomes e dizer: “Eu abro mão de me candidatar à reeleição se for eleito e acho que nessa frente que montamos Ciro deveria ser nosso candidato em 2022”. Com isso, afasta-se o medo que as pessoas têm de que o PT vai se perpetuar no poder.
A segunda coisa é tomar pontos programáticos não só dos partidos que apoiarão Haddad, como PSOL, PDT e PSB, mas também tomar de outras candidaturas, de maneira unilateral, sem ter o apoio deles. De todas as forças políticas que disseram que não votam no Bolsonaro, ele tomaria unilateralmente os pontos do programa , sem negociar, sinalizando: “eu quero você dentro do meu governo”.
Poderia adotar, por exemplo, a agenda ambiental de Marina Silva, a proposta de Alckmin de criação de uma força de segurança nacional. Precisa abrir espaço para que Marina e Ciro participem. Deveria chamar uma figura como Joaquim Barbosa para representar, dentro do governo, o combate à corrupção. Chamar Nelson Jobim para ser responsável pela segurança pública.
Haddad precisa fazer movimentos nesse sentido. Se não fizer, não estará querendo de fato ampliar a sua base, não mostrará empenho em fazer um governo diferente.
É um desafio histórico, uma oportunidade de refundação. Para sair das cordas, o PT precisa de ajuda. E o PT pedindo ajuda, precisa também distribuir poder, de verdade.

Novaes – Todo o raciocínio de Nobre está voltado para a construção de uma verdadeira Frente do Sistema. A chance disso encantar o eleitor democrata que está com Bolsonaro é nenhuma. O erro desse eleitor não é ser anti-sistema, mas acreditar que Bolsonaro é uma saída. Esse eleitor democrata que é anti-sistema só pode ser ganho para uma saída que seja, ao mesmo tempo, anti-sistema e democrática. Essa frente do Nobre é o próprio sistema que a maioria do eleitorado acaba de recusar no primeiro turno…

Ao dizer que a primeira tarefa é chamar Ciro, Nobre mostra toda a irracionalidade da situação: Ciro foi esmagado quando era a única saída disponível; ao ser esmagado, se perdeu em contradições; agora, em razão dessas escolhas desastrosas, quando tudo deu errado, volta a passar por Ciro a saída, mas Nobre insiste em salvar o sistema e, junto com ele, o PT! Nobre chega ao cúmulo da irracionalidade de, sob uma crise dessas,  pretender arrancar promessas e legislar intelectualmente sobre o que seria 2022!!

Seja com Haddad, seja com Ciro, a saída, para hoje, passa por reconhecer que o sistema e o PT estão perdidos.

Mas lideranças como Ciro, Marina e Fernando Henrique Cardoso têm se mostrado resistentes a um apoio aberto a Haddad…

Nobre – O que acabei de dizer significa fazer gestos concretos na direção dessas pessoas. Não é apenas, “eu quero conversar com você”. Palavras não bastam.

São gestos concretos para se formar uma frente. Uma frente não se forma apenas porque do outro lado há um risco à democracia. “És responsável pelo segundo turno que conquistas” —o “Pequeno Príncipe” aplicado à política.
Não pode simplesmente dizer, “perdemos”. Pode perder, evidentemente, mas tem que de fato tentar.

Novaes – Haddad é um príncipe pequeno porque há um rei no comando, e esse rei recusou lá atrás o caminho dessa frente pouco inovadora, mas que poderia ter sido uma saída realista, com Ciro na cabeça, como divisei aqui. Ao contrário do que quer Nobre, Lula, que sempre tem a si mesmo em primeiro lugar, já dá sinais de um conformado “perdemos”, como apontei no final do artigo de anteontem.

Pelo que conhecemos do DNA do PT, vê alguma chance de isso realmente acontecer?

Nobre – Quando se tem uma tarefa histórica na sua frente, as pessoas e as instituições mudam. A situação é completamente diferente da de qualquer outra eleição. Se Haddad jogar essa chance fora, carregará esse peso. Vão perguntar: “por que, então, não deixou o Ciro ir?”.
Então Haddad deveria dizer ao eleitor: “Eu proponho essa frente e quero te convencer de que esse governo será muito diferente de todos os outros, que o PT não terá o protagonismo que teve nos governos anteriores. Então quero que seu voto, que hoje é de Bolsonaro, venha para mim. Mas se isso for impossível para você, se sua ojeriza ao PT é superior a qualquer outro sentimento, então, por favor, não vote em Bolsonaro”. Isso ele poderia dizer ao eleitor do PSDB.

Novaes – A pergunta é excelente. Nobre está tão cego para o que realmente está em jogo que insiste em salvar não apenas o sistema, mas ao próprio PT e, por isso, não atina para o que sua própria proposta exige: para ter alguma chance de êxito eleitoral fazendo o que Nobre quer, Haddad teria de se rebelar contra a linha do PT, se atirar na direção do novo, escancarar suas diferenças com Lula e com a máquina, que são reais — mas para isso ele teria de não ter aceito o papel de “Haddad”

Se FHC se mantiver neutro, isso mancha a biografia dele?

Nobre – Se queremos formar uma frente que tenha por princípio aceitar toda e qualquer pessoa que defenda as instituições democráticas, não pode ter pedágio. O primeiro pedágio é começar a acusar as pessoas. A formação dessa frente é uma dança, e cabe a Haddad dar o primeiro passo. São vários passos simultâneos.

Novaes – Claro que não mancha. Para bem e para mal, a biografia do FHC está consolidada. Entre simplesmente apoiar Haddad e resguardar o que resta de sua voz para se contrapor a Bolsonaro como alguém que não tomou partido, a segunda opção me parece a melhor.

Por enquanto, parece que a abordagem do PT tem um pedágio, usa a mensagem de “ou você nos apoia, ou apoia o fascismo”…

Nobre – Também não digo que essa seja a abordagem do PT. Não quero botar pedágio nem de um lado, nem do outro. Cabe a Haddad, não ao PT, dar o primeiro passo.
Isso são sinais para o eleitorado, as pessoas têm que perceber isso. Haddad tem que dizer: “Há duas possibilidades. Eu proponho que esse sistema funcione de maneira diferente. Meu adversário quer que esse sistema seja destruído. Isso é que está em jogo”.

Novaes – A maioria já enxergou que não tem como fazer esse sistema funcionar em seu favor. E não tem como em razão do que ele conservou da ditadura, não em razão do que a sociedade ganhou em democracia. E o PT não apenas não combateu, como se apoiou nessa herança da ditadura. Por isso, insiste em não atacar o sistema, em confundir esse Estado de direito saído da ditadura com a democracia almejada e nunca consolidada. Haddad teria de reconhecer a contradição entre a sociedade e este Estado de direito e, só então, poder dizer: “Há duas possibilidades. Eu proponho um novo sistema, que permita preservar e, mais adiante, consolidar a democracia que a gente vem construindo há trinta anos. Meu adversário quer preservar o que há de pior no sistema, seu autoritarismo, isso vai trazer de volta a ditadura, jogando fora o esforço democrático dos últimos trinta anos.”

O senhor sente um movimento de setores da sociedade e da imprensa para normalizar Bolsonaro, ou existe de fato um exagero nessa ideia de que ele fará um governo autoritário?

Nobre – A normalização está sendo feita há muito pela mídia tradicional e pelo mercado. No momento em que ficou claro que as forças anti-PT e antissistema confluíram para a candidatura dele, passaram a tentar civilizar Bolsonaro. Mas Bolsonaro já deixou absolutamente claro que é incivilizável. Há uma ilusão da elite pensante de que é um candidato controlável. Pergunto: se o New York Times fosse um jornal brasileiro, o que teria feito com Bolsonaro?

Novaes – Concordo.

Bom, mas existe a discussão sobre o posicionamento do NYT em relação a Trump, que seria panfletário e enviesado, em comparação, por exemplo, com o Washington Post, que adotaria postura crítica, mas com maior distanciamento…? 

Nobre – O NYT tomou uma decisão: Trump não é um candidato normal, as instituições estão em risco, e nesse momento as regras mudam. O WP resolveu tratar Trump como um candidato normal. A imprensa brasileira foi WP, não o NYT. Acho a posição do WP equivocada.
E não estou aqui comparando Trump a Bolsonaro. São incomparáveis. Um dos movimentos mais fortes de normalização de Bolsonaro é compará-lo a Trump.
Nunca houve uma ditadura militar nos EUA. Nunca o cara que ganhou uma eleição nos EUA apoiou uma ditadura militar. As instituições americanas têm uma solidez que aguenta o Trump. Imagine um presidente autoritário no Brasil, com instituições em colapso, como são as nossas? Não há instituição democrática que aguente Jair Bolsonaro.

Novaes – Concordo. Pense-se no seguinte: nos EUA, com toda a solidez institucional e com uma opinião pública predominantemente civilizada, Trump separou milhares de crianças dos pais, transportou-as por milhares de quilômetros e as confinou em celas de abrigos, tendo sido necessárias uma batalha judicial e uma cruzada cívica para reverter a medida, reversão que ainda não foi concluída e cujas consequências danosas jamais serão superadas inteiramente. Tanto quanto me ocorre nesse momento, essa foi a operação mais brutal e incivilizada que um país de primeiro mundo praticou em solo próprio desde o que Hitler havia feito na Alemanha contra os judeus, os homossexuais e os ciganos. O que pensar de um Brasil sob Bolsonaro?!

O fato de o PSL, o partido de Bolsonaro, ter feito a segunda maior bancada da Câmara, e que provavelmente será engordada com deputados de partidos nanicos que devem migrar para ele, isso não significa que haverá governabilidade?

Nobre – O partido com a maior bancada, o PT, tem apenas 11% da Câmara. A fragmentação é gigantesca. Você precisa ter uma capacidade de articulação, de reorganização do sistema, que o Bolsonaro não tem. A única resposta que poderá dar é truculência. Ele não tem equipe, nenhum requisito para reorganizar o sistema. Reorganizar o sistema não tem nada a ver com ter maioria parlamentar.
O risco de que o sistema político não consiga se reorganizar é muito alto. E, se não se reorganizar, a hipótese de um golpe volta à mesa.

Novaes – O problema não está na fragmentação, até porque esses partidos vão convergir para blocos nas casas congressuais. Ao contrário do que pensa Nobre, o sistema não vai precisar ser “reorganizado”; no plano congressual ele está organizado como sempre esteve e vai se acertar em “situação”, “oposição” e alguns espertinhos “independentes”. Sob uma presidência Bolsonaro, os problemas serão:

  1. o grau de compromisso com a democracia que esse Congresso vai ter — a possibilidade de um golpe vai crescer na proporção em que o Congresso proteger as franquias democráticas;
  2. no preço que o bloco da “situação” + “independentes” impuser para votar com o presidente, pois, mesmo que esse bloco se mostre tão anti-democrático quanto Bolsonaro, vai cobrar para dar ao presidente o que já quer, como expliquei aqui;
  3. esse preço, e as negociatas em torno dele, podem escancarar para a opinião pública a manutenção do sistema que ela imaginou estar a derrubar, o que tornará a situação instável e pode colocar o país entre o impeachment e o golpe.

Quando o senhor menciona a possibilidade de golpe, estamos falando de um golpe clássico ou algo mais insidioso, os golpes graduais, em sistemas com eleições, que vêm ocorrendo em países como Turquia e Venezuela?

Nobre – Seria uma mistura de Filipinas com Turquia. Nas Filipinas, virou uma coisa do tipo: você tem algum problema para resolver com seu vizinho, com lideranças indígenas, pode resolver que o Estado não vai mais arbitrar. O Estado deixa de arbitrar conflitos violentos na sociedade.

Novaes – Não é que “seria”… O Estado de Direito Autoritário já é essa mistura, basta ver os assassinatos de índios, camponeses, gays, mulheres e a ação do “sistema” diante de tudo isso: finge combater, mas, no fundo, arbitra favoravelmente aos agressores, em graus variados de omissão e engajamento. Temos sido apenas uma Filipinas-Turquia menos ruins. Nobre quer salvar um suposto Estado democrático de direito e, então, fecha os olhos para essas evidências de que ele jamais existiu. Bolsonaro é resultado da contradição irresolvida entre essas práticas autoritárias e a existência de amplas franquias democráticas, tudo sob desigualdade brutal. A autointitulada esquerda brasileira não pôde, e não pode, tirar proveito dessa contradição numa direção emancipatória porque se agarrou a este Estado, ajudou a construí-lo, e quer mante-lo.

O senhor vê isso como uma possibilidade no Brasil?

Nobre – Isso já está acontecendo e vai piorar. Se Bolsonaro tivesse alguma responsabilidade, iria para a TV e diria para essas pessoas: parem. Só que ele tem um problema. Se disser para essas pessoas pararem, está aceitando que é responsável por essa violência. Então temos um impasse. Esse é o lado Filipinas. O outro lado é o de estrangular as liberdades, como é no caso da Turquia.
Como sabemos, a mídia tradicional está em crise profunda. Caso ele ganhe, teremos um presidente com tendências claramente autoritárias num momento em que a imprensa está com dificuldades enormes. Então é a receita para ter restrição, para o governo ir para cima da imprensa.
Você elege seus próprios canais oficiais, segue com campanha em redes sociais, em que não há nenhum controle, e diz : “não acredite em nada que a mídia tradicional diga”.

Novaes – Nobre supõe que o que está acontecendo é uma novidade trazida pelos bolsonaristas radicais. Não é. É a ampliação do que já vinha acontecendo, pois era parte do funcionamento do sistema, sem que os governos do PSDB e do PT tenham realmente se empenhado em combater, ocupados que estavam em sua polarização fajuta e nas vantagens de poder e dinheiro que tiravam dela. Agora, a classe média esclarecida está a enxergar toda a extensão da sua omissão quando quem sofria a violência social eram os índios e os pobres do campo e das cidades. Assim como os desdobramentos do impeachment e da Lava Jato levaram à conflagração do Estado em uma guerra de facções estatais, generalizando para a luta dentro do Estado os métodos facciosos antes empregados apenas contra partes da sociedade, agora, em mais uma volta do parafuso da crise, a generalização do arbítrio vai engolfar novas franjas da sociedade, contra segmentos que se julgavam protegidos. Ou seja, com uma vitória de Bolsonaro se obterá a “pacificação” do Estado de Direito Autoritário, com a moderação da luta entre as facções estatais, ao preço de conflagrar a sociedade. Bolsonaro — que não lidera coisa alguma, ele é a marionete das massas — só irá aumentar a crise de legitimação e, diante dela, vai ficar cada vez mais inclinado, e será cada vez mais empurrado, a resolver na marra.

[15:24h] – Fica o Registro:

  • Apesar de todas as evidências, a autointitulada esquerda não deixa de nos surpreender em seu infantilismo e falta de consistência: a essa altura da crise, Boulos, lá do fundo da sua votação ridícula, vem insistir na sua superficialidade deletéria fazendo o que chama de ironias, quando o que o país precisa é de argumentação dedicada. O Brasil está em jogo, em meio a forças tremendas, e Boulos fica a se medir com Bolsonaro com provocações contraproducentes!

A ONDA BOLSONARO

Carlos Novaes, 13 de outubro de 2018

 

A onda Bolsonaro é avassaladora porque veio sendo impulsionada por duas forças: a do próprio candidato e a que veio dos seus adversários eleitorais.

O que ele fez: Bolsonaro se colocou contra o sistema e se fez resposta a uma urgência por ordem, deixando de lado a urgência social, a qual é, no fundo, negada pelo que ele propõe como ordem. Bolsonaro agarrou um pedaço da realidade para propor uma fantasia medonha como resposta.

O que fizeram os adversários: se colocaram no lugar de quem defende o sistema e, em graus variados, pretenderam legitimá-lo como ferramenta para enfrentar as duas urgências mencionadas acima, quando, na verdade, estão implicados na desordem e jamais enfrentaram a desigualdade, fundamento de ambas as urgências. Eles se agarraram a uma fantasia contraproducente para propor uma fantasia manjada como resposta (o blá, blá, blá de sempre, como escancarou o Cabo Daciolo).

Essa ação adversária deu potência a Bolsonaro porque o aspecto fantasioso dela é evidente: não há nada que justifique defender o sistema, ou seja, a ordem atual, isto é, este Estado de direito, afinal, está claro a toda gente que:

  • Este Estado de direito é instrumento de facções da bandidagem de palácio, voltadas ao roubo do dinheiro público com dois propósitos: enriquecimento pessoal e financiamento de sua permanência no poder — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito é o ambiente no qual se organizam as facções da bandidagem de rua, saindo de dentro dos presídios estatais as diretivas do crime — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito dá o arcabouço legal que garante às facções corporativas, especialmente aos hierarcas do serviço público, privilégios remuneratórios e previdenciários escandalosamente desiguais em relação ao que recebe a imensa maioria da sociedade — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito dá poder e protege de alto-a-baixo facções que praticam toda sorte de arbitrariedades, ora na forma de vantagens a favor de quem tem força, ora na forma de abusos contra quem, sem forças, precisa dos chamados serviços públicos: das polícias à fiscalização sanitária; dos Detrans ao SUS; da primeira à última instância da Justiça — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito se mostrou incapaz de conter a bandidagem de rua desorganizada, só obtendo algum resultado ao preço de fazer vítimas inocentes e entrar em acordo com facções do crime organizado — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito não ofereceu alternativa para tirar o país do atraso, pois está cego para os interesses da maioria, prisioneiro que é dos interesses dos ricos, contra os quais não é capaz de fazer sequer uma reforma tributária ou uma reorientação econômica que pelo menos retire o país da inviabilidade que se divisa — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes.

O golpe do impeachment e a operação Lava-Jato deram tão errado, fugiram tanto aos objetivos de seus feiticeiros, que escancararam o caráter autoritário dessa ordem estatal que acabo de sumariar. O golpe levou ao Planalto o chefe da outra metade da quadrilha, dando ocasião a toda sorte de desdobramentos inesperados; a Lava-Jato se tornou teatro de operações de uma luta entre facções, cujos desdobramentos levaram a essa conflagração do Estado de direito, nas quais se exibem toda sorte de alinhamentos e rupturas que, transversais aos três poderes, deram ocasião à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário.

Foi em favor desse Estado de Direito Autoritário, defendido como um implausível Estado democrático de direito, que se organizaram, ainda que em linhas de defesa diferentes e eleitoralmente adversárias entre si, todas as candidaturas presidenciais relevantes, exceto a de Bolsonaro, um político profissional que jamais assumiu compromisso com Estado de direito algum, oriundo e adepto que é do Estado ditatorial.

Apoiando um pé na realidade e outro na inverossimilhança dos adversários, Bolsonaro erigiu seu próprio castelo macabro, que tem quatro pilares:

  • primeiro, ao se apresentar  contra tudo que aí está, disse a realidade atual contrária a uma suposta ordem natural (Deus, família, disciplina, certo-errado, propriedade) — os vetores da ameaça a essa suposta ordem natural seriam a homoafetividade, a relativização do papel estruturante das distinções de gênero e a bandidagem, tanto a de rua quanto a de palácio;
  • segundo, criou um passado mítico, a ser resgatado para restaurar essa ordem natural, uma suposta época de ouro, o período da ditadura paisano-militar;
  • terceiro, como não pode enfrentar a urgência social, trouxe de volta um espectro que já não ronda parte alguma do planeta, dizendo comunista quem quer que se lhe oponha, do MST à Globo, passando pela Folha de S.Paulo e pelo PSDB, todos com algum grau de compromisso com o PT;
  • quarto, se favorecendo precisamente do que há de implausível nos três passos anteriores, veio deixando no ar a ideia de que “não é bem assim”, de modo a diluir (em meio às acerbas emoções despertadas) a evidência racional de que essas fantasias nem podem ser resposta à realidade adversa que elas simulam combater, nem, muito menos, podem deixar de despertar forças aniquiladoras das franquias democráticas ainda existentes, forças essas que atualizam tudo de antidemocrático que Bolsonaro sempre disse e, agora, pretende disfarçar como coisa do passado.

A argamassa empregada na construção desse castelo saiu da fusão de ressentimentos particulares com incertezas coletivas, como se fosse possível fazer do país uma fortaleza contra um mundo em transformação, no qual tudo que parecia sólido se desmancha no ar, levando a uma redistribuição de papéis aturdidora: homem vira mulher e mulher vira homem e, como se não bastasse, as mulheres ainda se insurgem contra a dominação dos homens; o bandido que mata é tão vítima quanto aquele a quem ele mata; religiosos se revelam estupradores; policiais se parecem cada vez mais com bandidos; quem busca trabalho na iniciativa privada não encontra, quem não busca tem bolsa pública; pressões migratórias põem a nu a fragilidade e a arbitrariedade das fronteiras nacionais; a profusão ininterrupta de novos bens materiais disponíveis esmaga a autoestima de quem não pode comprá-los; as crianças têm cada vez mais direitos sem que se tenha os meios para ensinar-lhes os deveres correspondentes; a hipertrofia das relações horizontais aplasta hierarquias que parecem imprescindíveis à ordem; países que se fizeram ricos explorando suas riquezas naturais pretendem impor restrições ambientais àqueles que buscam sair do atraso; cotas são estabelecidas às custas de quem nunca descriminou ninguém; etc.

Na trilha dessa desorientação, a maioria do eleitorado está a votar num candidato que propõe:

  • a militarização do ensino (já em curso em alguns Estados, onde escolas foram entregues à PM), em marcha contrária ao que recomendam a ciência e as iniciativas de ponta, onde a abertura ao conhecimento e o estímulo à inovação dependem justamente da pluralidade e da flexibilidade com que se estimulam crianças e jovens;
  • a fusão de órgãos ambientais com os de fomento ao agronegócio, sob a determinação de “liberar os produtores de qualquer entrave”, uma medida que contraria toda a experiência nacional e internacional recente, num mundo desafiado pelas mudanças climáticas;
  • combater todo ativismo de quem pensa diferente como “inimigo da pátria”, como se fosse possível definir nitidamente o que é propício ou impropício à Pátria, como se o propício não tivesse que incluir necessariamente a controvérsia sobre o que é melhor;
  • estancar a demarcação de terras para populações vulneráveis e rever as já demarcadas, indiferente aos sofrimentos que essas providências acarretarão;
  • estabelecer alíquota única para o Imposto de Renda, não apenas indiferente à já absurda desigualdade brasileira, mas ao contrário do que ensina toda a experiência mundial na matéria;
  • liberar o uso de armas de fogo ao cidadão, aumentando o poder de provocar danos de quem já está disposto ao emprego da força, como dão exemplo seus seguidores mais extremados que, ainda desarmados, já correm as ruas a agredir violentamente quem pensa, age e vive de maneira diferente.

Bolsonaro é a saída regressiva para uma crise de legitimação do Estado associada à desorientação da maioria da sociedade, que foi chamada às urnas para escolher entre candidaturas que não encararam nenhum dos problemas reais do país. Ao não ser apresentada a uma proposta de como ir adiante, a maioria da sociedade engatou a marcha-a-ré, um recuo defensivo em que ao lulopetismo foi dado um papel que ele não tem como recusar: o de espantalho.

Diante da proposta desesperada de Kátia Abreu (a renúncia de Haddad em favor de Ciro), à qual, embora inviável, a gravidade da hora impede simplesmente desconsiderar, Lula disse não passar de “maluquice”, acrescentando que a política é assim mesmo, que “o tsunami vai e volta”, deixando ver que já absorveu a derrota e dando prova do realismo com que se orienta, um realismo de chefe de facção, no qual o cinismo de quem se habituou a explorar os sonhos alheios apagou qualquer centelha de sonho inspirador e impede enxergar a extensão da tragédia em curso, não obstante a mencione, como que seguro de que, ao fim e ao cabo, sempre será possível arrumar uma prancha e tirar proveito dela.

Nunca foi tão difícil votar em alguém, e nunca foi tão necessário fazê-lo.

UM EQUÍVOCO E TRÊS BESTEIRAS

Carlos Novaes, 11 de outubro de 2018

Nas linhas a seguir, vou tentar deixar mais claro meu ponto de vista sobre o que se passa fazendo o comentário tanto do que acaba de ser dito por quem começa a se aproximar do que venho dizendo há meses, quanto das três besteiras mais notórias que encontrei hoje na mídia convencional.

O EQUÍVOCO

Li na internet artigo do professor Marcos Nobre publicado ontem pela revista Piauí. Qualquer um que venha lendo este blog desde 2016 não pode deixar de reconhecer que Nobre está a um passo de entender que estamos diante de uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Vejamos dois pedaços do que ele diz:

“[Precisamos de] uma frente de reconstrução institucional com uma multidão de figuras do mundo da internet, da indústria, dos novos coletivos sociais, da finança, da cultura, do agronegócio, de ONGs, da televisão e de tantos outros lugares. Onde quer que exista repulsa, ojeriza ou alguma restrição a Bolsonaro, aí tem de estar a candidatura de Haddad, pronta a acolher energia e apoios. Ou, quando não for possível, pedindo ao menos neutralidade”. (Nobre fala como se tivéssemos seis meses pela frente…).

Mais adiante, de novo:

“[Tarefa para] uma ampla frente de pessoas, organizações, instituições, partidos, grupos e movimentos preocupados com a reconstrução institucional da democracia. A impressão de que estamos de volta à década de 80, aos primórdios da redemocratização, tem algo de real. Porque estamos de fato em um momento de refundação institucional”.

Nobre está prisioneiro de uma contradição fundamental porque identifica o desafio sem encontrar-lhe a raiz, deficiência que o leva a enxergar como resposta a origem do próprio problema que aparece como desafio. Veja bem, leitor:

O desafio: “a reconstrução institucional da democracia”. Ora, o que é isso senão (re)construir instituições, ou seja, buscar um Estado compatível com a democracia? Nobre está a reconhecer que as instituições (o Estado), não são compatíveis com a democracia e precisam de reconstrução – ele não diz, mas uma situação assim é a própria crise de legitimação de que me ocupo há cerca de dois anos, em longas e detalhadas explicações.

Como esse Estado compatível com a democracia nunca foi alcançado nesses trinta anos, não se trata de (re)construção, mas de constatar que jamais houve um Estado democrático de direito. Nobre tem diante de si a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, mas como ele supõe, junto com legiões de outros cegos, que a reconquista das franquias democráticas lá nos anos 80 nos trouxe, por si só, um Estado compatível com elas, na hora da crise de legitimação desse Estado, fica a apelar para a união das mesmas forças que nos conduziram a ela, instando-as a reconstruírem o que jamais existiu!

Nobre está a reconhecer (finalmente!) que as tais “sólidas instituições democráticas” precisam ser nada menos do que “reconstruídas”, precisamente porque a maioria da sociedade não as reconhece, conjunto que escancara não uma crise institucional de um suposto Estado democrático de direito, mas a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Nobre não entende que a situação é ainda pior do que só estarmos de volta aos primórdios da redemocratização (uma ideia que já explorei aqui). Não. Estamos, sim, de volta, e a um só tempo, aos primórdios da redemocratização e aos primórdios de 64: temos uma ressaca de 1964 depois de um fracasso da redemocratização de 1988!

Nesses trinta anos, em razão do protagonismo de uma polarização fajuta entre PSDB e PT, a redemocratização da vida em sociedade recebeu por cima um Estado de Direito Autoritário contrário a ela, saído do legado da ditadura paisano-militar de 64, através do qual todos os grandes partidos (e a imensa maioria dos pequenos) se tornaram sócios do exercício faccioso dos poderes institucionais, ocupados em reunir poder para fazer dinheiro.

A crise desse arranjo levou a uma crise de legitimação do Estado, que aparece nessa revolta contra o sistema (urgência por ordem), em meio à qual se criou essa vigarice autoritária que Bolsonaro representa, uma vigarice que não poderá ser derrotada com a vigarice “democrática” dos mesmos de sempre!

Diante de um desafio desse tamanho, posto na forma de uma crise tão profunda, Nobre ainda insiste num “pacto de salvação institucional”, e pondo suas fichas no PT, a quem dirige apelos! Não há o que salvar no plano institucional, como digo faz tempo. Temos de nos concentrar em preservar o máximo das franquias democráticas propondo um outro Estado, não a salvação desse que está aí — foi por não entender isso que, por exemplo, Ciro perdeu a oportunidade de se tornar um candidato viável nesta eleição.

AS TRÊS BESTEIRAS

Diante do cinismo de Bolsonaro ante a violência crescente de seus adeptos, um articulista “sensato” fez a seguinte ponderação em artigo que denuncia a própria impotência intelectual e política:

  1. “Bolsonaro deixa de exercer papel de líder diante da intolerância”, na Folha de S.Paulo, em 11/10.

Como já expliquei aqui, Bolsonaro não foi, não é e não será líder de coisa alguma. Ele é um fenômeno novo justamente por isso: ele é a marionete das massas. Logo, reclamar que ele não se coloque contra a violência dos seus adeptos, ficar desapontado com o fato de ele dizer que o assassinato a facadas de um eleitor adversário foi um “excesso”, é simplesmente não entender a natureza da insânia que está em curso. Bolsonaro não pode se contrapor ao vetor mais profundo de onde ele próprio emergiu e do qual ele é instrumento, não líder.

Diante da irremediável polarização eleitoral desde o primeiro turno, vários doutos puseram-se de acordo em torno da seguinte “explicação”:

  1. “A causa das altas rejeições de Bolsonaro e Haddad é a polarização da sociedade”, no UOL, em 11/10.

Como é que alguém pode dizer uma besteira dessas e ainda encontrar quem publique, e numa edição caprichada?! Quem diz um troço desses não consegue entender o básico: a rejeição alta e a polarização exacerbada são modos de aparecer de um mesmo fenômeno e uma não pode explicar a outra, ambas foram sendo construídas na medida em que o fenômeno se dava. O fenômeno é a aglutinação paulatina da população em duas demandas de resposta à crise: os que enxergam a crise como uma urgência social e os que enxergam a crise como uma urgência por ordem. Uma polarização fajuta que não cabe nos simplismos de esquerdaXdireita e, por isso mesmo, não permitiu a saída manjada via um centro supostamente virtuoso, como inutilmente tentaram todos os candidatos cegados pela reunião de oportunismo político com mediocridade intelectual, de quem o eleitorado, merecidamente, fez pó.

Diante da pequena margem de manobra deixada por um primeiro turno em que já houve um início de segundo turno, há quem se saia com essa:

  1. “Haddad e Bolsonaro precisarão construir uma lógica discursiva mais ao centro para conquistar os 50% dos votos mais um”, no UOL, em 11/10.

Bolsonaro já ultrapassou os 50% sem a construção dessa “lógica discursiva mais ao centro”… O mais provável é que sua votação diminua se cair no logro dessa tal lógica, que parece tão sensata numa eleição convencional. No caso de Haddad, o absurdo dessa tal lógica não é menor, afinal, a rejeição dele não está numa proposta petista supostamente radical (ela não existe há décadas!), mas no que sua candidatura simboliza – para além do que as pessoas possam conseguir verbalizar, Haddad, no fundo, simboliza o establishment, o Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação.

Por isso mesmo, nada mais contraproducente (e mais inescapável!) do que ele se empenhar para poder se apresentar com o apoio dos outros representantes do establishment nessa eleição. Haddad vai acabar apresentando, mesmo, a cara do que de fato também é: a alternativa do blocão faccioso (prova disso está na movimentação que já reúne o Centrão e o PT para reconduzir Maia à presidência da Câmara como contraponto a Bolsonaro na presidência da República – é, leitor, quem tem juízo não pode deixar de ver que estamos, mesmo, sem alternativa e, por isso, o voto em Haddad só chega a se justificar para evitar o mal maior, mas não vai resolver nada, só vai adiar o desenlace).

Para terminar, permitam-me voltar a uma sentença do professor Marcos Nobre:

“como em todo momento inaugural, as chances de dar muito errado são muito maiores do que em qualquer outro momento.”

Para além do fato de que isso é só mais uma frase, ele está a chamar de “momento inaugural” algo que ele próprio acabou de descrever como uma defensiva reação (re)construtiva… Ora, inaugural é termo que se usa para quando nasce o novo, não para quando o velho tenta permanecer (e através do PT!), por mais que essa permanência se contraponha, como é o caso, à escuridão. Há que se debruçar diligentemente sobre o velho para saber como nasce o novo, descoberta que, em geral, indicará que o novo só poderá nascer de outro modo, mesmo.

ELEIÇÃO EM PROSA E VERSO

07 de outubro de 2018

 

“O DIABO NA RUA, NO MEIO DO REDEMOINHO…”

[…]

“E a gente raivava alto, para retardar o surgir do medo — e a tristeza em crú — sem se saber por que, mas que era de todos, unidos malaventurados.

[…]

Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se fôr… Existe é homem humano. Travessia.”

xxxxxx

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

  • A primeira parte do post traz três momentos de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: a epígrafe do romance e, em seguida, duas orações, uma extraída bem do meio dele, num trecho de travessia na leitura; a outra é a última frase do livro (obedeci a grafia da primeira edição, de 1956).
  • Na segunda parte do post, um poema de Carlos Drummond de Andrade, que apareceu no primeiro livro publicado pelo poeta, Alguma Poesia, em 1930.

VOTAR PARA DEFENDER A DEMOCRACIA; NÃO ESTE ESTADO DE DIREITO

Carlos Novaes, 06 de outubro de 2018

 

Não obstante a vida política no Brasil transcorra sob a vigência de franquias próprias da democracia, tais como o direito de voto livre e universal e as liberdades de imprensa, opinião, religião, reunião, manifestação, organização e associação, nosso Estado de direito — embora obedeça aquelas franquias, e chegue a atuar em conexão com elas em muitos aspectos –, está orientado, no direito e/ou na prática, para conferir prerrogativas, favorecer privilégios e permitir abusos de autoridade que estão em desacordo frontal com a máxima de que “todos são iguais perante a lei”. Essa máxima resume a contrapartida propriamente estatal ao exercício da vontade popular livre para escolher como opinar, como se associar, como se manifestar e como ser governada.

Se a contrapartida estatal à vontade popular não faz uma tradução cabal do sentido das franquias democráticas para a ordem institucional, não há democracia consolidada e o Estado de direito resultante não é um Estado democrático de direito. Entendo que há no Brasil um Estado de Direito AutoritárioEDA, marcado por uma assimetria que leva, no curso do tempo, a um contraste crescente entre, de um lado, a inclinação dos hierarcas do Estado para defenderem e estenderem seus privilégios e prerrogativas, bem como perseverar nos (e, até, intensificar os) abusos de autoridade; e, de outro lado, a tendência não menos crescente da maioria da sociedade para identificar como danoso contra si o exercício desses privilégios, prerrogativas e abusos, conjunto de práticas que reuni sob o nome de exercício faccioso dos poderes institucionais. Esse “faccioso” tem aqui dois sentidos:

  • faccioso porque separa o que não deveria ser separado: os interesses de quem ocupa os postos de Estado e os interesses da maioria da sociedade;
  • faccioso porque se dá, no corpo do Estado, segundo uma dinâmica ela mesma feita de arranjos entre facções estatais, ou seja, grupos de interesse que, uns contra os outros, se fazem e desfazem ao sabor das disputas em torno do que lhes parece vantajoso.

Esse divórcio atual entre o Estado e a maioria da sociedade decorre fundamentalmente da desigualdade por duas razões principais:

  • primeiro, porque o Estado tem sido desde sempre no Brasil um instrumento dos ricos para carrear para si o máximo da riqueza produzida, deixando ao restante da sociedade só o necessário para que o país perdure (é esse o resultado de um Estado cuja origem primordial foi organizar a escravidão como negócio para outros negócios);
  • segundo, porque uma máquina estatal assim voltada à manutenção (quando não ao fomento) da desigualdade forma ou recruta os seus funcionários em troca de remuneração e distinção ofertadas sempre acima da média alcançada pelo cidadão na vida privada, o que só pode levar ao descolamento reiterado entre os interesses desses dois segmentos – no Brasil, entrar para o serviço público é, e sempre foi, uma maneira de contornar ou compensar o que há de mais agudo na desigualdade (é disso que vivem os cursinhos preparatórios para os concursos aos cobiçados empregos públicos).

Em outras palavras, na contraposição entre o Estado e a sociedade no Brasil, o Estado é instrumento tanto dos interesses dos ricos quanto do interesse dos seus funcionários estáveis ou de confiança, segundo uma escala de rendimentos, privilégios, prerrogativas e poderes que crescem segundo o lugar ocupado seja na pirâmide da riqueza, seja na hierarquia estatal. Os muito ricos no chamado Mercado se articulam com os muito poderosos no Estado seja para se assegurarem da permanência da dominação, seja para garantirem grandes negócios.

Como os muito poderosos do Estado são, em sua maior parte, escolhidos pelo voto popular, as facções estatais voltadas aos cargos cujo provimento se dá pelo voto popular têm nas eleições seu teatro de disputas; como eleições custam dinheiro, elas buscam o apoio dos ricos e, assim, a roda gira sem sair do lugar – foi por isso que Lula se gabou, com toda justiça, de que em seus governos os ricos ganharam dinheiro como nunca antes.

Num arranjo desses, os partidos são fachadas para facções de interesse e podem se aliar das maneiras mais variadas a cada eleição e, especialmente, no intervalo entre elas, pois o que importa é reunir poder para fazer dinheiro. Essas facções partidárias não se limitam aos partidos em si, mas têm conexões em toda a burocracia estatal, reunindo em seu jogo incessante gente pertencente a todos os três poderes do Estado de Direito Autoritário-EDA.

Sendo uma disputa por poder para fazer dinheiro, as desavenças são reais e podem se tornar acerbas, levando a impasses de gerenciamento. Em seu limite máximo, esses impasses têm sido “resolvidos” via impeachment, trauma institucional motivado não pelos interesses da maioria da sociedade, mas pelos interesses das facções estatais. As polarizações políticas que levaram aos dois impeachments recentes, embora reais no jogo entre facções, são totalmente fajutas no que diz respeito aos interesses da maioria da sociedade que, não obstante, tem se deixado levar e aderido a alinhamentos totalmente contraproducentes, como veio sendo o caso da disputa entre PSDB e PT.

A falência do pacto do Real, que estruturava o joguinho entre PSDB e PT, levou à ruína todo o arranjo porque já não há rota de fuga que permita combinar uma desigualdade tão grande com as franquias democráticas, pois os descontentes com o arranjo já não são apenas os muito pobres, contra os quais sempre se mobilizou o abuso de autoridade – isso ficou claro com a reação da opinião pública quando Alckmin jogou sua polícia contra os manifestantes de junho de 2013. A partir de 2013 veio ficando mais e mais claro o divórcio entre o Estado de Direito Autoritário-EDA (que define tarifas e emprega a força policial) e o uso das franquias democráticas pela sociedade.

A crise brasileira atual é a exibição plena do esgarçamento máximo da relação entre o EDA e a maioria da sociedade: o EDA foi desnudado em toda a sua podridão, se conflagrou numa guerra de facções estatais que se segmentou em todos os três poderes, e entrou numa crise de legitimação que se tornou visível ao observador atento porque a sociedade passou a expressar, via exercício das franquias democráticas, toda a sua revolta, que aparece na forma de duas urgências, uma urgência social e uma urgência por ordem.

Inteiramente integrados a esse EDA, seja porque o forjaram, seja porque nasceram dele, os partidos políticos não estão em condições de apresentar uma alternativa transformadora que integre as duas urgências que motivam a revolta da maioria da sociedade contra esse mesmo EDA. Vivendo a desorientação correspondente ao fato de ainda preferir alguma dessas forças políticas obsoletas (que, por isso mesmo, não sobreviverão à eleição), a maioria da sociedade não tem enxergado essas urgências como articuladas entre si e, muito menos, como decorrências da desigualdade. Os mais extremados entre os que têm preferência pela ordem propagam o preconceito de que a ordem deve ser posta contra o social, visto como demanda de vagabundo; em contrapartida, os mais extremados dentre os que demandam políticas sociais difundem o estigma de que quem pede ordem é fascista.

Dessa polarização fajuta se beneficiam Haddad e Bolsonaro, precisamente porque se nenhum dos dois pode integrar as duas urgências, cada um deles pode se apresentar como o campeão fajuto de uma das pernas do problema nacional: Haddad está cercado de ladrões e corporativistas, mas exibe políticas sociais compensatórias; Bolsonaro está cercado de reacionários neo-liberais, mas exibe o fervor pela ordem oferecida pelos cemitérios.

Como nada é tão ruim que não possa piorar, os autointitulados defensores da temperança, os centristas, trouxeram para o meio da disputa a ideia de que a crise estaria a colocar em perigo um suposto Estado democrático de direito. Com isso, têm ajudado a separar as duas urgências, pois ora pretendem convencer os que já se revoltaram contra o sistema de que esse EDA presta, ora censuram como radicais os distributivistas que, não obstante os bons sentimentos, insistem em empurrar uma vanguarda que há muito arriou suas bandeiras.

Sem saída transformadora e a menos de 24 horas de conhecermos o resultado de uma eleição presidencial sem esperança, só nos resta tentar evitar o pior, nos termos do artigo imediatamente anterior.

UM VOTO PARA PRESERVAR MEIOS DE CONTESTAR O ELEITO

Carlos Novaes, 04 de outubro de 2018

 

Por mais incerta que seja a situação eleitoral, salvo acontecimento extraordinário, que não está no horizonte, haverá segundo turno para a escolha do próximo presidente da República, e ele será disputado entre Haddad e Bolsonaro — e isso porque essas duas candidaturas polarizaram de vez a disputa e concentraram as incertezas na contraposição das suas respectivas rejeições. Trata-se de escolher o mal menor; vai ganhar não o preferido, mas o que for menos rejeitado.

Do ponto de vista do eleitor médio, o Brasil tem duas urgências: a urgência social e a urgência por ordem, urgências que se materializam na revolta contra a desigualdade e na revolta contra o sistema, como tentei desenhar nos quatro artigos de série recente, iniciada aqui. Nessas revoltas, os desafios principais são, pelo lado social, emprego, saúde e educação; pelo lado da ordem, a bandidagem de Estado, especialmente a corrupção, e a bandidagem de rua, especialmente o tráfico de drogas e armas.

Como nenhuma candidatura apresentou alternativa crível para enfrentar esse conjunto de problemas, a disputa se cristalizou numa polarização contraproducente entre o social e a ordem: um lado se apresenta como o campeão do social, o outro se diz o campeão da ordem, sendo que:

  • Bolsonaro não oferece nenhuma perspectiva para a urgência social, antes pelo contrário, dá seguidas indicações de que um governo seu levará o Brasil a regredir nessa matéria, a menos que se acredite que um ultra-liberalismo que não deu certo em país nenhum do mundo vá criar no Brasil os empregos que nossa gente precisa ou sirva de garantia para a continuidade dos programas compensatórios existentes ou mesmo para direitos trabalhistas há muito conquistados, com 130 salário, adicional de férias e outros.
  • Haddad não oferece nenhuma perspectiva para a urgência por ordem, pois, pelo lado da bandidagem de Estado, embora seja pessoalmente honrado, está vinculado a governos que, de um lado, organizaram e deixaram que se organizassem sofisticados esquemas de corrupção e, por outro lado, foram governos muito afeitos à acomodação com os privilégios dos hierarcas do serviço público; já pelo lado da bandidagem de rua, os governos petistas não oferecem precedente no enfrentamento do problema.

As limitações acima explicam parte da rejeição de cada um dos dois candidatos, mas se colocarmos uma contra a outra não temos como decidir.

Passemos à avaliação da consistência e desejabilidade do que Haddad e Bolsonaro oferecem ali onde são tidos, por seus mais ferrenhos defensores, como campeões:

  • Haddad é apresentado como campeão no social, o que não é verdade, pois embora o lulopetismo tenha uma marca na geração de empregos e na aplicação de medidas compensatórias, não foram políticas nem sustentáveis nem duradouras porque, além de outros erros, deixaram de fora o essencial: a estrutura tributária, da qual depende o enfrentamento da desigualdade. Entretanto, mesmo sob essas limitações severas, não chega a ser indesejável que um eventual governo seu mantenha o que já existe, desde que não ameace as franquias democráticas que nos permitirão contestá-lo e lutar por outras alternativas, a começar pela inadiável batalha da Previdência.
  • Bolsonaro apresenta propostas para alcançar a ordem que não são consistentes porque nem há razão para supor que sua associação com o que há de pior no Congresso (bancadas BBB e Centrão) vá patrocinar o combate ao banditismo de Estado, aos privilégios dos hierarcas do serviço público e aos abusos das facções policiais violentas; nem se pode considerar que sua proposta de armar o cidadão possa resultar num efetivo combate ao banditismo de rua. Ademais, e sobretudo, o que Bolsonaro propõe como ideário de ordem, cravejado de preconceitos e desconsideração contra quem pensa, age e vive diferente, não é desejável porque só pode ser alcançado suprimindo total ou parcialmente as franquias democráticas com que a maioria da sociedade brasileira ainda conta para trocar ideias, se manifestar, se organizar e agir contra a desigualdade e a desordem, que vão estar na ordem do dia no debate sobre a inadiável reforma da Previdência.

A polarização Haddad-Bolsonaro se dá com base nas rejeições deles porque ela esconde uma outra, da qual nem todos estão conscientes, mas que ganha forma num plebiscito em que todos iremos votar: ou o representante de forças facciosas que puseram as franquias democráticas a serviço de obter poder para defender principalmente os seus próprios interesses; ou o representante de forças que pretendem diminuir ou suprimir as franquias democráticas para garantirem um exercício ainda mais faccioso dos poderes institucionais, a começar pelo voto livre, que dizem fraudado se não lhes der a vitória.

Entre Haddad e Bolsonaro, o mal menor é Haddad.

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 4 DE 4

BOLSONARO VOLTA AO POSTO DE CAPITÃO, O CAPITÃO NASCIMENTO

Carlos Novaes, 03 de outubro de 2018 — 04:37h

 

Em 11 de setembro de 2010 fiz palestra em Seminário realizado para os alunos do curso de cinema da FAAP, na qual analisei o sucesso de público dos filmes Dois Filhos de Francisco e Tropa de Elite (participava da mesa comigo Mara Kotscho, roteirista de Dois Filhos, estando na platéia o roteirista do Tropa). Desenvolvi minha análise a partir do que já via como central para o sucesso de cada um dos filmes: Dois Filhos de Francisco dialoga, a contrapelo, com a figura do pai-ausente, tão comum nos extratos populares; Tropa de Elite dialoga com a ânsia por um princípio de ordem em meio à esculhambação e à balbúrdia — o sucesso dos dois filmes convergia para uma afeição autoritária, em favor do pai arbitral e rompedor de caminhos.

Os anos se passaram, vim desenvolvendo o diagnóstico da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário e chegamos às eleições de 2018, com os debates na TV entre os candidatos à presidência. Dos até aqui realizados, achei o mais recente, o da Record, perturbador. É que notei, entre os demais candidatos presentes, um desconforto generalizado diante da atuação do Cabo Daciolo; foi como se ninguém tivesse resposta para a verdade profunda que ele trazia à tona.

Os dias vieram passando e foi ficando cada vez mais difícil enquadrar aquela atuação do Cabo Daciolo sob o mero registro do folclore, ou melhor, constatei que ela só pode ser vista como folclórica num sentido muito profundo do que é o folclore: ela vai se revelando profética. O policial militar evangélico, com a Bíblia na mão, fez a síntese do momento histórico e anunciou os novos tempos: todos os outros candidatos ali presentes representam o status quo e estão aquém das tarefas exigidas pelos sofrimentos da maioria da sociedade.

A crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário finalmente veio a furo, e da pior maneira: favorecendo uma variante ainda mais autoritária, precisamente porque amputada da revolta contra a desigualdade, ainda que essa nova variante autoritária esteja a crescer precisamente porque passou a receber o apoio das emoções mais autênticas de quem mais sofre a desigualdade, como mostram os números da pesquisa DataFolha mais recente, nos quais, entre outras movimentações, se vê as mulheres pobres evangélicas sendo engolfadas pela onda Bolsonaro — mais uma vez, a desigualdade vai sendo posta a serviço da própria continuação.

Não vai faltar quem veja nessa onda uma revolta antilulista e/ou antipetista, como se uma movimentação tectônica pudesse ser explicada pelos ventos que varrem a superfície do fenômeno. Uma revolta por ordem contra uma ordem em crise sempre precisa de um fio condutor. Assim como a ascensão do nazismo não se deveu ao antissemitismo; também a ascensão do capitão Nascimento não pode ser explicada pelo antipetismo. Lula entra nessa história como o Judas indispensável a essas situações.

Em 16 de setembro de 2016, escrevi neste blog o artigo Consolidação do Autoritarismono qual, entre outras coisas, perguntava se o leitor poderia conceber coisa pior do que assistir a uma ascensão de Alckmin à testa de

um retrocesso no marco legal da vida político-social (com a correspondente gestão reacionária e fraudulenta dos recursos do Estado) e com a intensificação do arbítrio policial (com o apoio da religiosidade reacionária), tudo amarrado numa nova solda eleitoral do entulho autoritário (p-MDB + PM, com o beneplácito garantidor das Forças Armadas, cada vez mais “prestigiadas”).

Estamos a ver que nada é tão ruim que não possa se fazer pior.

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 3 DE 4

UM PLEBISCITO FUNESTO

Carlos Novaes, 02 de outubro de 2018

 

Ao contrário das eleições presidenciais anteriores, o emocionalismo que marca o início de toda eleição não só não está cedendo lugar à razão, como parece ganhar terreno contra ela. Por que?

Um motivo seria a conexão que tenho explorado em posts recentes, especialmente nesta série de que este é o terceiro: a revolta contra o sistema, sem a compreensão de que ela deveria se juntar com a revolta contra a desigualdade, leva a uma polarização entre as duas e, com isso, se instala um nós contra eles típico de programas de auditório, onde vale tudo que o animador/ditador deixar. Como a disputa é justamente para escolher o animador/ditador, a emoção não cede.

Mas penduremos os dados de outro modo no varal do juízo: e se parte desse emocionalismo estiver orientado pela razão, e se parte dessa emoção for apenas a forma entusiasmada da razão?

Tenho insistido em apontar que estamos cara-a-cara com uma crise de legitimação do Estado de direito no Brasil. E o Estado de direito que está em crise é o Estado de Direito Autoritário saído das lutas contra o Estado ditatorial instalado com o golpe paisano-militar de 1964. Essa circunstância levou a imensa maioria dos autointitulados democratas, bem como a da autointitulada esquerda, a cerrarem fileiras na defesa desse Estado, pois ele é a tradução de tudo o que eles fizeram nesses 30 anos — o Estado de direito em crise de legitimação é obra deles e eles são muito afeiçoados ao resultado das suas escolhas.

Mas se esse Estado de direito está em crise de legitimação, defende-lo é um caminho para a derrota, pois não há como sustentar uma ilegitimidade se ela já tiver sido identificada por aqueles que a sofrem. E é aqui que eu começo a rever aspecto central da minha análise: há uma parte da sociedade que já identificou a ilegitimidade do Estado e, por isso, mais e mais se volta para a única candidatura presidencial que propõe a derrubada desse Estado de direito ilegítimo: Bolsonaro — a catástrofe é que ele propõe um Estado ditatorial.

Dessa perspectiva, todas as outras candidaturas estão do lado errado, pois todas elas defendem o Estado de direito em crise de legitimação:

  • Haddad não faz autocrítica; não trata do sistema político corrupto, insistindo em persuadir os revoltados contra esse Estado de direito que a solução é uma volta ao passado (“feliz”!!) que construiu a ilegitimidade!
  • Alckmin é a face siamesa de Haddad, entre outras coisas porque atualiza a polarização fajuta entre PSDB e PT, uma polarização fajuta que está no cerne da crise de legitimação do Estado de direito, como já expliquei em vários posts anteriores.
  • Ciro faz uma campanha em que através de palavões e ofensas se apresenta como o candidato da pacificação sob esse Estado de direito em crise de legitimação. Ciro é o bipolar da polarização propondo a pacificação! (como diria o macaco Simão, a atuação dele é psicodélica).
  • Marina, depois de uma campanha reacionária em 2014, de apoiar tudo que deu errado nos anos seguintes (Aécio e o golpe do impeachment), e de ficar em silêncio ante situações de gravidade variada (de desastre ambiental a falas de general), se agarrou, claro, à defesa desse Estado de direito em crise de legitimação, endossando toda decisão emanada da Lava-Jato e das “instituições democráticas”, por mais arbitrárias que fossem — sem perceber, Marina passou da irrelevância para a condição de detalhe em meio àquilo que precisa ser vencido.

Como nenhum deles ofereceu uma alternativa transformadora, ou seja, uma alternativa que recusando esse Estado de Direito Autoritário propusesse um Estado de Direito Democrático; como todos eles entendem que o racional é defender um Estado de direito que aos olhos de muitos é indefensável, Bolsonaro está a avançar sozinho na avenida que se abriu em meio à maioria enraivecida: é o único candidato que se orienta pela crise de legitimação do Estado de direito, propondo outro Estado, totalmente diferente do atual. Dessa perspectiva, seus eleitores fizeram da emoção o papel de embrulho de um pacote racional: livrar o país de um Estado de direito que não presta.

Mas como o Estado de direito do Brasil não está em crise em razão das franquias democráticas que embutiu, a saída Bolsonaro não presta — se não se quiser olhar para a trajetória democrática da sociedade nesses 30 anos, que ao menos olhe-se para a apoteose democrática dessa campanha eleitoral, onde contingentes imensos vêm ganhando as ruas ainda sem nenhum incidente grave ( a possibilidade de ocorrerem agressões está inscrita não na democracia, mas no fato de que parte dos manifestantes ganha as ruas para exigir um Estado em que ninguém mais possa sair a elas…).

O Estado de direito do Brasil está em crise em razão das injustiças, dos vícios e das arbitrariedades que trouxe da ditadura, mas isso nenhum dos candidatos que defendem a “união nacional” pode reconhecer, pois foram eles que construíram essa engenhoca.

A desgraça dos alinhamentos eleitorais que essa situação produziu é essa polarização fajuta na forma de um plebiscito. Mas não um plebiscito entre Lula e o anti-Lula (Bolsonaro), como quer o marqueteiro dos marqueteiros, mas algo muito pior: um plebiscito entre o status quo (as facções estatais em guerra pela hegemonia no Estado de Direito Autoritário) e a regressão autoritária antissistema, na forma de um Estado ditatorial ou, no mínimo, ainda mais arbitrário. Dessa perspectiva, as manifestações do EleNão podem ter reforçado Bolsonaro, pois colocaram todos os que a ele se opõem num saco só, como defensores desse Estado ilegítimo — e na defensiva, o que é péssimo para o moral em situações conflagradas.

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 2 DE 4

ESSA COZINHA NOS PREPAROU UM PRATO-FEITO INDIGESTO

Carlos Novaes, 29 de setembro de 2018

[com acréscimo às 19:25h, em Fica o Registro]

No artigo anterior vimos a origem do Estado de Direito Autoritário que infelicita o Brasil, bem como mostramos que, ao não enxergar que está a viver a crise de legitimação dele, a maioria da sociedade brasileira se deixou levar para uma falsa polarização entre suas duas legítimas urgências máximas: a urgência social (revolta contra a desigualdade) e a urgência por ordem (revolta anti-sistema).

Essa polarização é falsa por duas razões fundamentais:

  1. a urgência social só é urgência porque a desigualdade não atinge desfavoravelmente apenas aos mais pobres, antes emperra toda a estrutura social em que os pobres e as camadas médias têm seu potencial criador represado numa ordem que privilegia os ricos e impede todos os demais de serem recompensados pelo que poderiam realizar;
  2. não haverá ordem se a desigualdade não for enfrentada em benefício dos pobres e das camadas médias; e não haverá solução social eficaz e duradoura se ela não for consolidada numa nova ordem, contraposta ao sistema atual.

Como a raiz da formação das preferências eleitorais da atual campanha presidencial é essa polarização falsa entre o social e a ordem, a disputa eleitoral também foi orientada para uma falsa polarização: aqueles cujas motivações estão mais orientadas para a urgência social acabaram por dar preferência à candidatura de Haddad; aqueles que se orientam preferencialmente pela urgência por ordem acabaram por dar preferência à candidatura de Bolsonaro.

Além de oriunda de uma polarização falsa, essa polarização que opõe Haddad a Bolsonaro é falsa por outras três razões subsidiárias:

  1. Bolsonaro, além de pessoalmente desqualificado para a tarefa presidencial, está em contradição intrínseca com as duas urgências: com a social porque está associado a quem acha que “social” é sinônimo de coisa para “pobre vagabundo”, sem sequer suspeitar das complexidades que associam a desigualdade aos entraves ao desenvolvimento do país; com a ordem ele está em contradição por dois motivos: (a) por achar que vai enfrentar a bandidagem de rua-violência apenas com repressão, sem equacionar a desigualdade; (b) por usar a bandidagem estatal-corrupção, que é parte da ilegitimidade do sistema, como pretexto para voltar a uma ordem ilegítima, o Estado ditatorial.
  2. Haddad, embora pessoalmente qualificado para a tarefa presidencial, não tem legitimidade para se propor a enfrentar as duas urgências: no caso da ordem porque está na condição de representante de uma das forças políticas que protagonizaram a desordem promovida pela bandidagem estatal-corrupção, quadro que piora com o fato de que ele resistiu a toda e qualquer forma de autocrítica; no caso da social ele não tem legitimidade por duas razões: (a) por pertencer à força política que, chegando ao governo, se acomodou aos interesses dos ricos, limitando os ganhos dos pobres à máxima de que “os ricos não podem perder”, levando aqueles ganhos a serem vistos como perda pelas camadas médias; (b) por pertencer à força política que, embora tenha governado o país pelo voto por um período de longevidade inédita, não fez do combate à desigualdade uma política voltada a uma nova ordem.
  3. Em razão dessas fragilidades mencionadas, nem Bolsonaro, nem Haddad podem ser uma resposta à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o que faz a polarização entre eles ser falsa outra vez: Bolsonaro não é resposta à crise de legitimação do Estado de direito porque ele representa o fim de quaisquer Estado de direito, defensor que é do Estado ditatorial; Haddad não é resposta à crise de legitimação do Estado de direito porque ele não se cansa de defender esse Estado de direito, essa forma estatal, na adesão à qual Lula e seu PT acabaram por se somar à luta das facções estatais que nos trouxe a essa crise de legitimação, uma crise que eles querem usar, facciosamente, para voltar a desfrutar de hegemonia para o exercício faccioso dos poderes institucionais, uma hegemonia da qual foram removidos pelo golpe do impeachment — tanto são facciosos que já estão mais uma vez aliados aos mesmos golpistas!

Como não é de surpreender, o acúmulo intercruzado dessas fajutices descritas nos itens 1, 2, 3, 4 e 5 acima vem demarcando a irracionalidade crescente do processo eleitoral, que se encaminha para dar ao primeiro turno um desfecho inédito: as motivações emocionais para o voto predominarão sobre as motivações racionais (as características de cada uma dessas motivações, bem como as diferenças entre elas foram explicadas aqui).

Toda essa insânia foi eleitoralmente bem sucedida porque a maioria da sociedade não produziu em sua dinâmica propriamente política uma alternativa eleitoral que reunisse as suas duas urgências numa perspectiva de superação da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, como ficou evidente na indigência política, programática e comportamental das outras candidaturas presidenciais, que não merecem que nos ocupemos delas mais do que já nos ocupamos.

Como toda insânia tem uma contrapartida racional, e como a eleição se mostrou infensa a toda forma de razão emancipatória, a racionalidade está a se apresentar pela outra ponta, e de maneira bifurcada: primeiro, na descrença quase generalizada de que a eleição vá abrir caminho para o país encontrar uma saída; segundo, na disposição antidemocrática dos que só reconhecem o resultado da eleição como bom e alvissareiro se ele trouxer como vencedor o seu candidato (claro!).

Ambas são formas perversas da razão e alimentam uma à outra: a descrença é perversa porque é inerte, não se dá ao trabalho de compreender e tirar consequências do impasse que antevê; a disposição antidemocrática é perversa porque faz uso das franquias democráticas para voltar ao Estado ditatorial cujos resquícios alimentaram toda essa insânia. Elas reforçam uma à outra porque ambas apontam para a escuridão.

Como ninguém apresentou uma alternativa transformadora para o país, não há como se ver representado nesse primeiro turno, pois no primeiro turno a gente escolhe o que nos parece o melhor — não só não há em quem votar no primeiro turno, como temos que expressar na urna todo o nosso repúdio a esse processo espúrio.

O resultado eleitoral do primeiro turno, e seus desdobramentos propriamente  político-sociais no meio da rua, nos levarão à decisão do que fazer no segundo turno, que não será outra eleição (até porque estamos a repetir, e pelas mesmas razões, só que piorado, o resultado do primeiro turno de 2014), mas outra realidade, meeeesmo.

Fica o Registro:

  • Os atos públicos convocados pelo movimento EleNão, que nesse momento se espalham por cidades brasileiras e estrangeiras, com destaque para as maravilhas que acontecem em São Paulo e no Rio, dão testemunho do que poderia ser feito se nos voltássemos não apenas contra Bolsonaro e a regressão ditatorial de que ele é marionete, mas também contra esse Estado de Direito Autoritário que há trinta anos nos sufoca — vamos ver o que vai acontecer na passagem do primeiro para o segundo turno e/ou depois que tiver ficado clara a derrota de Bolsonaro, pois ainda é possível que ele não vá ao segundo turno.
  • É interessante observar o contraste entre essa mobilização e os métodos antidemocráticos dos apoiadores de Bolsonaro, que insistem em ameaçar e agredir quem pensa diferente — eles simplesmente não se dão conta de que seus métodos alertaram milhões para os riscos a que estamos expostos.
  • Quem ainda tinha alguma dúvida acerca de o quão libertária é a transversalidade do movimento feminista…

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 1 DE 4

QUANDO O ESTADO DE DIREITO SE OPÕE À DEMOCRACIA

Carlos Novaes, 28 de setembro de 2018

[com + e + acréscimos em Fica o Registro – 29/09]

Esta série de quatro artigos será uma tentativa de apresentar de maneira clara os fundamentos que orientarão meu voto em cada um dos turnos dessa eleição presidencial.

Quando um país se livra de uma ditadura, seja através de uma derrubada abrupta ou através de uma transição, o que se deu foi uma luta democrática, isto é, uma luta que contou com o engajamento dos cidadãos animados pelo desejo de viver sob um Estado de Direito Democrático, desejo este traduzido segundo motivações e práticas propriamente democráticas, expressas na desobediência crescente ao arcabouço legal da ditadura, uma desobediência que aparece na paulatina difusão oral e escrita da opinião contrária à ditadura, acompanhada do exercício não menos crescente da vontade de reunião e manifestação contra a ditadura. A luta contra uma ditadura se dá democraticamente na sociedade, é exercida nela, contra o Estado ditatorial.

Na derrubada de uma ditadura, a democracia surge antes do Estado de direito, ela é a condição prévia para que ele seja alcançado – a nova forma estatal, o Estado de direito, herda da sociedade o impulso democrático e tem de traduzir no novo ordenamento institucional a prática democrática exercida pela sociedade em sua luta contra o Estado ditatorial. No plano do exercício das liberdades, que é o da sociedade, o antagonista da repressão ditatorial é a prática da democracia; no plano institucional, que é o do aparato estatal, o oposto da forma ditatorial é o Estado de Direito Democrático. A forma estatal final, almejada pela sociedade mobilizada contra a ditadura é, portanto, o Estado de Direito Democrático, que recebe este nome precisamente porque deve dar forma (consolidar) nas suas instituições (no direito) ao impulso e às práticas democráticas vindos da sociedade. Entretanto, a história tem mostrado que essa forma estatal final nem sempre é alcançada, ainda que o Estado ditatorial tenha dado lugar a um Estado de direito.

O intervalo entre o começo da luta democrática e a queda da ditadura pode ser curto ou longo, a depender tanto da força disponível em cada lado, quanto do grau de antagonismo entre aqueles que hegemonizam (enquanto hegemonizam) cada lado da disputa. Se a força democrática vinda da sociedade é irresistível, como nas revoltas generalizadas (revolucionárias ou não), a ditadura é derrubada em dias ou semanas. Se a força democrática vinda da sociedade existe, mas o Estado ditatorial, embora não possa esmaga-la, tem como resistir a ela, instala-se um período de transição democrática – a transição se chama democrática precisamente porque o que deve transitar é a democracia: trata-se de fazê-la transitar da sociedade, onde ela já está viva, para o Estado, infenso a ela porque ditatorial.

Além de depender da força disponível em cada lado, o ritmo e a duração dessa transição dependem também do grau de antagonismo entre aqueles que hegemonizam (qua hegemonizam) os lados da disputa, porque é também esse antagonismo que vai definir o quanto a transição será realmente democrática, e quanto ela arrastará da forma autoritária. Tudo o que é vivo busca permanecer, e as transições são uma negociação atritada entre formas vivas: por um lado, a forma ditatorial, querendo se conservar tão menos democrática quanto possa; por outro lado, a forma de direito, querendo se estabelecer tão democrática quanto possa.

Nessa negociação atritada, o que define o lugar da negociação e o grau de atrito é a combinação da magnitude das forças arregimentadas com o antagonismo de propósitos entre as vanguardas de cada lado da disputa. Se, como está dado, nenhum dos dois lados tem força para simplesmente derrotar o outro (por isso a transição, e não a derrubada da ditadura ou sua reafirmação), mas ambos contam com vanguardas irremediavelmente antagônicas em seus propósitos, o que predomina na transição é o atrito, não a negociação, e o que cada lado busca no curso do tempo da transição é aumentar sua própria capacidade de arregimentação contra o outro, para impor-lhe uma derrota final. Agora, se as vanguardas não forem irremediavelmente antagônicas, se a transição contrapõe forças plurais que reúnem em suas fileiras contingentes menos ou mais avessos à negociação dos seus propósitos, a negociação pode predominar sobre o atrito, processo que não raramente leva a mudanças na composição das vanguardas de cada lado.

O resultado de uma transição democrática marcada pela negociação e não pelo atrito será sempre um compromisso entre as partes: o Estado ganha a forma de direito, mas conserva dispositivos e práticas da forma ditatorial.

A transição democrática brasileira foi uma transição desse tipo. Primeiro, porque não havia força para simplesmente derrotar a ditadura; segundo, o grau de antagonismo entre as vanguardas dos dois lados sempre esteve longe de ser irremediável: pelo lado da ditadura, o Estado estava sob comando hegemônico de uma vanguarda que queria alguma abertura (Geisel e Golbery); pelo lado da oposição, a sociedade estava representada por uma vanguarda cuja hegemonia era exercida por quem vinha da política profissional consentida pela ditadura (p-MDB e setores da ARENA, depois PFL e DEM) e, por isso, seus profissionais não estavam dispostos a promover alterações que pusessem em risco os mecanismos que lhes haviam permitido tornarem-se o que eram: políticos profissionais eleitoralmente bem-sucedidos.

O resultado foi que ao Estado Ditatorial sobreveio não um Estado de Direito Democrático, mas um Estado de Direito Autoritário: o Estado se tornou de direito porque deu forma institucional a aspectos fundamentais da dinâmica democrática que a sociedade mobilizara na luta contra o Estado ditatorial (liberdades de imprensa, de opinião e de manifestação, amplo e livre direito de voto etc), mas não se tornou democrático porque além de ter conservado na nova forma estatal dispositivos ditatoriais paisanos (p-MDB, PFL e satélites) e militares (Polícia Militar, prerrogativas e privilégios constitucionais das FFAA), também assegurou normas legais que não obstam, e até protegem, as práticas institucionais antidemocráticas desses dispositivos (estrutura eleitoral e partidária; judiciário próprio para policiais e militares, etc). Além disso, essas normas legais garantem privilégios (remuneratórios, salariais, previdenciários, compensatórios) e dão prerrogativas (foro especial e de iniciativa) aos hierarcas do serviço público civil que são assimétricas com, e agravam, as condições de vida da imensa maioria que labuta na chamada iniciativa privada e não é rica.

Tudo o que se acaba de recuperar realimentou o exercício faccioso dos poderes institucionais próprio do Estado ditatorial (faccioso porque contrário à democracia e porque se organiza, mesmo, por meio de facções estatais, que são formações não transparentes de defesa de interesses, que se montam e desmontam ao sabor das conveniências em jogo, como dá péssimo exemplo a prática diária da instituição tida como a guardiã da Constituição, o Supremo Tribunal Federal-STF, tão cindido pelas facções quanto nossos presídios). Em suma, nossa transição democrática foi truncada e resultou num Estado de Direito Autoritário: conseguiu trazer o direito, mas não consolidou a democracia.

Como já detalhei aqui, o resultado desse arranjo não poderia deixar de ser a permanente oposição entre esse Estado de Direito Autoritário e a sociedade democrática, uma oposição que se desenvolveu por trinta longos anos e, agora, apresenta toda a sua desfuncionalidade numa crise de legitimação que desgraçadamente separou sua dimensão econômico-social (desigualdade) da sua dimensão sistêmica (a ordem político-estatal facciosa).

A revolta, mais fortemente vocalizada pelas camadas médias, contra o sistema (bandidagem de Estado-corrupção; privilégios e regalias de facções estatais; e tributação injusta) não é senão a tradução da ilegitimidade do Estado de Direito Autoritário, um Estado faccioso voltado para si mesmo, para os seus. Nessa revolta a maioria da sociedade está a escancarar, sem enxergar, que o Estado é ilegítimo.

A revolta, mais fortemente vocalizada pelos pobres, contra os sofrimentos da desigualdade (emprego, educação, saúde, salário, bandidagem de rua-violência e arbítrio policial-violência) não é senão a tradução da ilegitimidade do Estado de Direito Autoritário, um Estado faccioso a serviço dos ricos. Nessa revolta a maioria da sociedade também está a escancarar, sem enxergar, que o Estado é ilegítimo.

Embora sejam aspectos da mesma realidade, essas duas revoltas não conversam uma com a outra. São essas cegueira e mutismo político diante de uma crise de legitimação tão flagrante e monumental que explicam a indigência dessa eleição presidencial: a maioria da sociedade não conseguiu construir um vetor de transformação que reunisse suas duas urgências e está, mais uma vez, a se dividir improdutivamente entre candidaturas amputadas, que ora simulam defender o social, ora defendem a ordem, mas sem reunir os dois hemisférios de um modo transformador em benefício da maioria e contra os interesses imediatos das minorias encasteladas no Estado e no Mercado, que armam juntas o circo eleitoral.

É por isso que Haddad pode aparecer como campeão do social e da ponderação (embora Lula e seu PT tenham aderido ao sistema, tenham traído a luta contra a desigualdade e vivam a gritar da boca para fora contra as elites). Por outro lado, não é outra a explicação para Bolsonaro poder aparecer como campeão anti-sistema (embora seja o representante da truculência antidemocrática e antissocial desse mesmo sistema); e para Alckmin poder aspirar ser o ponto de equilíbrio do sistema, como se tudo fosse uma questão de ajuste no âmbito do próprio Estado de Direito Autoritário, um arranjo estatal que simplesmente não tem conserto, é inviável, e, mais cedo ou mais tarde, acabará por ceder ou a uma outra ditadura ou a uma transformação – essa eleição é apenas um sofrido ritual de passagem para mais e maiores sofrimentos.

[29/09] – Fica o Registro:

  • A decisão de Fux, do Supremo, de proibir a realização e/ou censurar a publicação de entrevista de Lula à Folha de S.Paulo é ainda mais grave do que parece: além de ser facciosamente antidemocrática (embora dentro do Estado de direito…); além de vir embasada em uma justificativa falsa, pois a essa altura da campanha não há como supor que o eleitor letrado possa ser desinformado sobre quem é o candidato do PT se Lula for ouvido (até porque, na própria entrevista, Lula não poderá deixar de repisar que o candidato dele é Haddad); além de se opor a uma decisão, dessa vez bem fundamentada, do não menos faccioso colega Lewandowsky, que permitiu a realização da entrevista; a decisão de Fux é grave e perniciosa sobretudo porque antecipa, chancela e traz para dentro do STF o ânimo golpista que se instalará se Haddad passar ao segundo turno.
  • Bolsonaro já deu o sinal verde para a largada das hordas golpistas contra o Estado de direito (querem de volta o Estado ditatorial) ao declarar, em entrevista ao Datena (vejam a conexão: falou ao mais notório apresentador de programas de TV que enaltecem a truculência antidemocrática da polícia – truculência essa protegida pelo Estado de direito), que não aceita nada que não seja a própria vitória, ecoando fala anterior de Villas Bôas, cujo sentido comentei aqui — a situação se agrava, leitor.
  • O UOL acaba de noticiar que um juiz de Goiás, apoiador de Bolsonaro, planejou meticulosamente, e combinou facciosamente com o exército local, recolher as urnas eletrônicas, sob o argumento bolsonariano de que elas podem fraudar o voto do eleitor. Note-se que o referido juiz já agiu não apenas antidemocraticamente, mas inteiramente ao arrepio do próprio Estado de direito, pois, segundo o Conselho Nacional de Justiça, além de ele não ter poderes para tomar a decisão, ainda deixou de obedecer à norma de informar outros órgãos sobre o que pretendia fazer. Ou seja, já estamos vivendo a síndrome ditatorial do chamado “arbítrio de guarda de trânsito”…
  • Para se ter uma ideia de como Ciro está à altura do cargo que disputa… : a nove dias do primeiro turno, a imprensa nos informa que entre as dicas de campanha próprias de reta final, ainda está o conselho para Ciro evitar palavrões quando se dirigir “às mulheres”!!…. (vejam a “sutileza”: quem deu o conselho, sabendo que o candidato não tem conserto, concedeu que seja apenas quando se dirigir a mulheres, como se fosse possível, numa campanha eleitoral, selecionar a difusão dos palavrões do candidato segundo o gênero de quem os ouve). Agora é tarde!

DUAS FARSAS NOS PUSERAM ENTRE A TRAGÉDIA E O DRAMA

Carlos Novaes, 23 de setembro de 2018

[com acréscimos em 25/09, em Fica o Registro]

 

Em 1988, depois de uma intensa luta, de cujos enganos já tratei em texto e vídeo, foi promulgada essa Constituição que muitos supunham nos garantir um Estado democrático de direito.

No rastro dessa esperança, em 1989 a maioria da sociedade viveu a alegria de votar para escolher o presidente da República, imaginando que estava a tornar coisa do passado a ditadura paisano-militar — começava ali a produção de uma farsa parcialmente lastreada nas expressões mais visíveis do que havíamos alcançado de melhor na nova dinâmica política: o PSDB e o PT. Em movimentação que parecia paralela, mas que iria se mostrar convergente, já no ano seguinte, na eleição de 1990 para o Congresso, os votos de uma minoria ressentida elegeram Jair Bolsonaro deputado federal — começava ali a produção de uma farsa inteiramente gerada nas dobras mais profundas do que havíamos conservado de pior da velha cultura política: os dispositivos militar e paisano da ditadura.

Entre 1988 e 2018 temos os trinta anos em que criamos as condições para que essas farsas — contorcendo-se como duas serpentes entre oportunidades oferecidas pela rotina eleitoral a que a imensa maioria de nós se abandonou — ganhassem força, se entrelaçassem e acabassem por se colocar cara a cara, prestes a nos engolfar num espetáculo inédito: a dança macabra entre duas farsas vai produzir ou um drama, ou uma tragédia.

A primeira farsa consistiu numa polarização fajuta, PSDBxPT, que arregimentou e nutriu forças que deveriam ter sido vencidas (p-MDB e ARENA/PDS/PFL/DEM), trazendo o país a uma situação pior do que a existente nos dias do golpe de 1964 contra a democracia; a segunda farsa vem costurando a mortalha da democracia que parecia recuperada retorcendo os fios da história deixados pelos primeiros farsantes, que renunciaram ao trabalho de levar a luta contra o legado de 1964 até o fim; o drama será o aprofundamento da crise de legitimação desse Estado de Direito Autoritário em que a primeira farsa fez seu ninho manipulando a palha frágil da democracia eleitoral; a tragédia será o retorno do país, via democracia eleitoral, à situação brutal em que a desigualdade é incrementada com o arbítrio, que sufoca até a liberdade de nos dizermos contra ela.

Onde está o nó de amarração dessa disjuntiva amarga?

A DESORIENTADORA CENTRALIDADE DA DESIGUALDADE

A desigualdade é a chave para entendermos esses trinta anos, pois foi em torno dela que mobilizaram o engano, o erro e a mentira contra o potencial transformador da verdade. A verdade é que o Brasil tem uma desigualdade cruel, sem paralelo no mundo, que condena ao sofrimento a maioria da sociedade; o engano está em supor que o fundamental nessa desigualdade seja o fato (indiscutível) de os interesses dos muito ricos provocarem o sofrimento extremo dos muito pobres; o erro, saído desse engano, foi rebaixar a luta contra a “desigualdade” à busca da compaixão daqueles que foram levados a supor que não sofrem com a desigualdade; a mentira está em difundir que essa “desigualdade” tem sido combatida com esses programas sociais que agradam aos pobres, são tolerados pelos ricos e vividos como perda pelas camadas médias.

Os sabichões da nossa autointitulada esquerda contribuíram decisivamente para esse estado de coisas. Vejamos como eles têm interpretado os números e desenhado os gráficos com que pretendem ilustrar a nossa desigualdade. É sempre a mesma ladainha, com três invocações básicas:

  1. Mostram os grandes contrastes de renda e riqueza entre, de um lado, os muito ricos (variando entre os 1%, os 5% e os 10% mais ricos) e, de outro lado, a imensa maioria mais pobre (geralmente os 50% mais pobres);
  2. Comparam a situação com outros países, falando da injustiça de uma situação assim única no mundo;
  3. Pretendem levar a platéia a achar que a solução é tirar dos ricos para distribuir aos pobres, não sem ressaltar que não se trata de caridade, embora toda a argumentação tenha por base despertar a adesão inerte dos pobres e a compaixão/solidariedade das camadas médias.

Toda essa arenga deixa de fora o essencial: os 49%, 45% ou 40% que não estão em nenhum dos dois blocos polarizados acima: as camadas médias. Por que isso é essencial?

  1. Desde logo porque se trata de quase metade da população;
  2. Como a desigualdade é brutal, ela distribui sofrimentos palpáveis por todas as camadas da pirâmide social que estão abaixo dos ricos. As camadas médias sofrem a desigualdade na má qualidade da vida que levam, um sofrimento desnecessário quando se considera o que o país poderia oferecer: vias de transporte precárias, saúde e educação ruins (quando públicas) ou caras (quando privadas), transportes coletivos caros e sucateados (trens e ônibus) ou caros e aquém da demanda (metrô), violência crescente, segurança cara e inconfiável (quando privada) ou ruim e arbitrária (quando pública);
  3. Não há como sair disso pela reparação aos mais pobres, porque reparação não move as estruturas pesadas que têm de ser transformadas. Focar nos mais pobres excluindo as camadas médias permite proteger os ricos, pois o que tem sido distribuído aos mais pobres é pouco, embora os contente, e pesa muito, por via direta e indireta, nas costas das camadas médias.

Foi uma arranjo bom para cativar eleitores, mas péssimo para o país: cativou eleitores porque os pobres ficaram gratos e parte das camadas médias não protestou porque aderiu ao chamado à compaixão e/ou preservou seus privilégios corporativos no serviço público; foi péssimo para o país porque armou esse desastre que é a ressaca decorrente da união da frustração dos pobres com a raiva aberta dos segmentos de classe média que nunca aderiram à compaixão e estavam contidos em sua contrariedade.

Veja bem, leitor: a raiva que hoje vemos nessa classe média contrariada foi nutrida por dois pratos indigestos: primeiro, ela foi levada ao caminho mais fácil de acreditar que seus sofrimentos devem-se ao que foi dado aos pobres; segundo, e mais importante, depois de ser confrontada por anos com o discurso hegemônico da compaixão, um discurso que a incomodava também por explicitar o conflito entre a sua mesquinhez real e os seus alegados valores cristãos, deixando-a em desconforto moral consigo mesma, essa classe média recebeu como um bálsamo legitimador do pior de si a descoberta de que os pregadores da compaixão pelos pobres, que tanto a espezinhavam, tinham feito da corrupção um meio de enriquecimento pessoal, pelo qual traíam a boa fé dos pobres a quem cativavam às custas dela!

Essa é, em última instância, a explicação para o fato de nesta eleição a sociedade estar improdutivamente polarizada entre as suas duas urgências fundamentais: a urgência social e a urgência por ordem.

RESÍDUOS NEFASTOS DESSE MALOGRO HISTÓRICO

O que resta da primeira farsa, protagonizada por PT e PSDB, são, enquanto candidaturas que importam, Haddad e Alckmin. A segunda farsa emerge com a força de Bolsonaro, que se fez vetor dessa ampla revolta cujas bases tentei apresentar acima. Haddad e Alckmin resistem porque a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário não encontrou saída transformadora; Bolsonaro emerge precisamente porque, não havendo alternativa transformadora, a volta ao passado, para antes dos 30 anos da farsa, aparece para os mais conservadores como a saída mais viável — daí a mistificação sobre a ditadura ter sido uma época de progresso e segurança.

Ambas as farsas compartilham o fundamental, ainda que divirjam no método:

  • Compartilham o empenho em mostrar credenciais de governança aos ricos (simbolizados no tal Mercado), deixando claro que continuarão a servi-los, sem mexer na desigualdade;
  • Divergem na forma de fazer o exercício faccioso dos poderes institucionais:  os primeiros pretendem, sem saber bem como, estender a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, isto é, insistem em manter uma equação que não fecha: desigualdade extrema com democracia eleitoral; o segundo propõe o fim da crise de legitimação pela pura e simples entronização da ilegitimidade, com o fim da democracia.

Alckmin está em situação difícil porque, embora tenha a confiança do Mercado e seja seu preferido, quando se passa às massas eleitorais, incontornáveis numa democracia eleitoral, sua candidatura está espremida entre as duas urgências: perdeu o social para a Haddad e perdeu a ordem para Bolsonaro.

Alckmin perdeu o social para Haddad em razão do fator Lula, sobre o qual já falei bastante nesse blog — em resumo: entre os pobres, Lula se beneficia de ressentimentos e esperanças cativas, obtidos com o logro do assistencialismo e a manipulação de um inegável laço simbólico, que ele traiu; nas camadas médias, quando não é visto como o caminho para se dar bem, Lula oferece apoio ao escapismo ideológico de quem não quer encarar a própria derrota, que está patente, entre outras coisas, nesse êxito de Lula entre os pobres.

Alckmin perdeu a ordem para Bolsonaro precisamente porque o divórcio entre o social e a ordem, que o PSDB ajudou a promover junto com o PT, abriu a brecha para que o ex-capitão explicitasse, tornasse motivação de massa, aquilo que Alckmin já fazia, farsescamente, na encolha: o uso arbitrário da força contra os pobres, feito espetáculo diário em programas de televisão — Alckmin providenciou os pregos e o martelo com que estão a pregar a tampa do seu caixão. Tanto é assim que Bolsonaro está muito na frente de Alckmin no Estado de São Paulo. Boa parte disso se explica pela transformação em força eleitoral do que havia de simpatia entre os paulistas pelos métodos do dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura, a PM.

Além de estar em lugar de destaque nas principais campanhas para governador e ter vários candidatos fortes para o Legislativo, a PM paulista aderiu, em peso, à candidatura de Bolsonaro, numa ação concatenada que mostra a existência de um projeto de militarização da política que sempre esteve além de um Alckmin — viram no ex-capitão uma oportunidade de deixar para trás o “legalismo” dosado dos tucanos, que vinham tendo que tolerar.

Os ricos pensam que Bolsonaro poderá organizar a Casa Grande e pôr ordem na senzala (a essa altura, vão ter de matar bem mais de 30 mil…); as camadas médias em que a raiva tomou o lugar dos dilemas da compaixão, e os pobres nos quais o ressentimento é maior do que a esperança, têm em Bolsonaro o portador de uma vingança (cada um supõe saber de quem está a se vingar e rói lá no íntimo o pão sovado da vingança) — esse processo, que é irracional, acaba por fazer a convergência eleitoral entre segmentos de perdedores que, não obstante partilhem a condição de perdedor, se odeiam, ódio recíproco que, por sua vez, é um equívoco, pois ambos são vítimas dos ricos aos quais se uniram em busca de uma ordem que acabará por garantir a permanência do pior do status quo que os infelicita!

A ALTERNATIVA

A desigualdade brasileira é de tal magnitude, ela amarra o país de tal forma ao atraso, que ela é sim um jogo de soma zero: o país só pode ganhar se os ricos perderem, ainda que o que iremos ganhar não se resuma ao que os ricos perderão, pois a perda deles é apenas parte do esforço para desatar forças produtoras de riqueza social.

Temos que tirar dos ricos, deixá-los menos ricos, não exatamente para distribuir aos pobres, mas principalmente para alterar estruturas e incrementar as condições que permitam tirar o país do atraso e, assim, mais adiante, alavancar milhões do fundo da pobreza.

Não há bala de prata distributiva contra a desigualdade. São mudanças tributárias, previdenciárias, salariais e em serviços sociais. Por um lado, temos de redistribuir o ônus da obtenção da receita pública, cobrando mais de quem tem mais, mas cobrando, sim, de quem tem menos; por outro, melhorar a qualidade do gasto público, redefinindo prioridades de modo a que os 40% que não são ricos sem serem pobres também constatem que haverá melhora para si.

O ônus da obtenção da receita se redistribui via reforma tributária, menos para aliviar os pobres ou as camadas médias, e mais para agravar os ricos. Do lado do gasto, fazer uma reforma da previdência partindo de que todos os diretamente implicados perderão alguma coisa, sendo que alguns perderão mais do que outros, sempre em benefício do bem comum no futuro. Esse bem comum deveria aparecer na forma de projetos claros de incremento do gasto público em Educação, Saúde, Segurança e Infraestrutura. Seria necessário propor um projeto que abarcasse com detalhes todas essas variáveis ao mesmo tempo, de modo a que os números das perdas e dos ganhos ficassem claros para todos os interessados, mostrando, na linha do tempo, para onde irão as receitas saídas da tributação dos mais ricos e economizadas com as concessões inescapáveis que todos teremos de fazer na Previdência.

Só que não. Os políticos profissionais preferiram o atalho do engano, do erro e da mentira. Separaram as urgências, quando a saída exige juntá-las. Se as tivéssemos juntado, os ricos teriam ficado isolados, e as camadas médias, ainda que com defecções importantes, claro, poderiam se unir aos pobres para fazer maioria social pela transformação, uma transformação cujos rumos seriam (e serão, um dia) disputados entre idas e vindas de maiorias eleitorais que a ninguém é dado prever.

No momento, a sociedade brasileira vê o Brasil em crise sem enxergar que ele está como uma caravela montada dentro de uma garrafa: o gargalo oferecido por esta eleição é estreito demais para que a caravela possa enfunar velas e ganhar alto-mar — há que quebrar a garrafa, mas sem arrebentar o barco.

[em 25/09] – Fica o Registro:

  • A Polícia Federal anunciou que irá abrir outro inquérito sobre o agressor de Bolsonaro, agora para “devassar” os dois anos mais recentes da vida de Adelio Bispo. O inquérito atual, já concluído, indica que Adelio vagava pelo país “ostentando” quatro celulares e um laptop — os restos de uma “inclusão” vicária, realizada via aquisição de bens de consumo já inservíveis, pois quebrados há tempos. Esse novo inquérito será uma oportunidade única para conhecermos em detalhes dois anos inteiros da vida de um brasileiro pobre em meio à crise e à violência, bem como as conexões dessas circunstâncias com o desenvolvimento dos problemas mentais do agressor. Essa recuperação sociológica sobre o legado da primeira farsa será valiosa para compreendermos os fundamentos sociais da atração perversa que a segunda farsa, o cabo de alta-tensão da violência (Bolsonaro), exerceu sobre o fio desencapado da loucura (Bispo) até o desenlace no curto-circuito da facada.
  • O lugar da mentira nessa campanha eleitoral é proporcional à verdade (desigualdade) que ela busca soterrar. A campanha de Bolsonaro é a campeã da mentira, apropriando-se até de imagens que não são suas para simular manifestações favoráveis ao candidato. O próprio candidato se atrapalha em sua ânsia por confundir os outros: na primeira entrevista depois da facada, sustenta que Bispo não agiu sozinho, que só se arriscou porque contaria com ajuda para não ser linchado e, ao mesmo tempo, diz que Bispo forjou um álibi para si, como se o agressor, ao mesmo tempo em que tinha como certo que seria apanhado, tivesse julgado ser possível escapar incógnito da cena do crime. E o candidato da mentira diz pretender trazer de volta o ensino de moral e cívica (bem, faz sentido…).

RESUMO DA ÓPERA

AVISO: no dia 21 de julho publiquei aqui no blog um artigo com o título RESUMO DA ÓPERA. Horas depois, houve um incidente no DataCenter que hospeda o provedor deste blog e ele saiu do ar. A situação ainda não foi inteiramente normalizada, mas já é possível algum acesso. Não consegui, porém, recuperar aquele post publicado no dia da pane. Abaixo, publico uma outra versão do texto, feita com base num rascunho que fora salvo. 24/07/2018.

Carlos Novaes, 21 de julho de 2018

Estamos em vésperas de eleição, o país não produziu uma alternativa crível para a transformação política de que precisa, mas as candidaturas manjadas que estão aí dão a impressão de que tudo pode acontecer. Como é possível que o marasmo possa carregar tanta incerteza?

É simples: dado o abismo entre a maioria da sociedade e o Estado ocupado e disputado pelas facções estatais, abismo esse que é a própria crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o jogo político está a ser feito apenas dentro do Estado conflagrado, enquanto a sociedade assiste para ver no que vai dar.

Tudo pode acontecer precisamente porque as facções não têm compromisso, sequer laços minimamente consistentes, com a maioria da sociedade. Se houvessem compromissos ou laços, o jogo seria mais previsível porque a organicidade da política, seu caráter programático ou ideológico, vem das relações que a política constrói na sociedade para orientar a disputa pelo poder de Estado.

Como não há essas relações, como os políticos profissionais sequestraram a política, como os partidos são meras fachadas para as facções conflagradas entre si em busca de reunir poder para fazer dinheiro, não há diferenças programáticas ou ideológicas para valer, que servissem de baliza para as disputas entre eles – a disputa por poder pelo dinheiro iguala a todos.

O resultado mais visível é esse aparente paradoxo: numa eleição presidencial e congressual que deveria ser decisiva, pois a crise é imensa, a sociedade está à margem do processo político e o jogo dos políticos profissionais se fez totalmente imprevisível, pois dos arranjos entre eles pode sair qualquer tipo de variação – e isso não porque eles sejam diferentes, mas porque eles são parecidíssimos: qualquer combinação é possível. A eleição só é previsível num aspecto: ela não vai produzir uma saída para o país.

Uma evidência de que a eleição não produzirá uma saída para o país, uma evidência de que, pelo contrário, ela produzirá no máximo uma saída para as facções conflagradas, está no papel central que o chamado Centrão vem tendo no processo. O Centrão é um amontoado incerto de partidos que faz um movimento pendular faccioso entre os dois dispositivos que a Nova República herdou da ditadura paisano-militar, o DEM (ex-ARENA/PDS/PFL) e o p-MDB. Por isso, ele tanto pôde ser “liderado” por Cunha, como agora pode ser “liderado” por Maia.

Na época da ditadura, só eram permitidos dois partidos, a ARENA e o MDB, que para acomodar suas disputas internas tinham sublegendas, isto é, facções internas, que podiam disputar as eleições umas contra as outras. Com a chamada redemocratização, essas sublegendas foram se reconfigurando e dando origem a vários partidos, que trouxeram os mesmos comportamentos que já tinham sob a ditadura. Na mesma redemocratização, a maioria da sociedade produziu duas alternativas que a levassem para longe da ditadura, o PSDB e o PT, a foi a esses partidos que ela favoreceu, pois confiava neles.

Como a transição foi lenta, gradual e segura, os antigos dispositivos paisanos da ditadura (PDS/PFL/DEM e p-MDB) continuaram funcionando, senhores supremos da política miúda para negócios graúdos. É por isso que o Centrão oscila entre ser liderado pelo DEM e pelo p-MDB, a depender das vantagens oferecidas, todos se revezando como o marisco da vez no casco do Estado de Direito Autoritário em cujo topo vieram se revezando, por sua vez, os dois partidos aos quais a maioria da sociedade imprudente e comodamente delegara o seu destino: o PSDB e o PT.

Ou seja, esses trinta anos da chamada redemocratização foi o tempo necessário para que as velhas forças cooptassem, corroessem e, por fim, descartassem os dois partidos que a sociedade havia favorecido na busca pela consolidação democrática num Estado de Direito Democrático.

Ficamos atolados num Estado de Direito Autoritário porque os partidos saídos dos dispositivos paisanos da ditadura jamais deixaram de manejar o processo político, negociando a chamada governabilidade na base de vantagens arrancadas do Executivo federal e do manejo de postos de mando nos entes federados. Essas vantagens dependem da ocupação dos cargos de confiança e dos benefícios que conseguem do orçamento federal.

É esse arranjo que está na base do nosso presidencialismo de coalizão, uma coalizão que oscila conforme os cálculos que esses partidos fazem acerca do que podem receber – essa é a base do nosso sistema, celebrado pela nossa ciência política acadêmica como um modelo de bom funcionamento do nosso multipartidarismo.

Para essa gente, o fato de dos quatro últimos presidentes eleitos, dois terem sofrido impeachment pela ação desses fisiológicos insurgidos (Collor e Dilma) e os outros dois (FHC e Lula) terem traído completamente seus programas de mudança e/ou transformação para se acomodarem a esse mesmo fisiologismo regado a corrupção, que condena o país ao atraso e o povo ao sofrimento, são prova inquestionável de que o sistema político brasileiro é sólido!

Eles celebram como um caso de sucesso democrático o fato de a eleição não fazer diferença, pois o resultado é sempre o mesmo: um acerto entre os políticos que lhes permite desfrutar do poder para fazer dinheiro. Acredite, leitor: tem muita gente que fez e faz carreira acadêmica no Brasil sustentando essa tese esdrúxula.

Sabe como eles provam isso? Eles pegam os números saídos das votações congressuais (fora as dos impeachments, claro) e mostram como os parlamentares são obedientes ao que o presidente da República enviou ao Congresso. Como os números se mostram semelhantes aos de outros países, eles imaginam ter provado que nosso sistema funciona.

Ou seja, para esses cientistas políticos, não importa como a linguiça é feita, seus custos ou se ela provoca ou não indigestão em quem a consome, o que importa é que o jeitão dela se parece muito com a linguiça estrangeira – é mais ou menos como o LamborgUNO, o Lamborghini feito por um brasileiro através da transformação habilidosa de um Fiat Uno…ficou igualzinho…

Para essa ciência política, pouco importa se o voto do congressista favorável ao presidente tem as seguintes origens:

– o presidente consultou antes, e envia o que sabe que agrada ao parlamentar (como a maioria dos parlamentares é eleita através de esquemas eleitorais e de interesse que vêm desde a ditadura, imagine o que agrada a eles…);

– o presidente ofereceu ao parlamentar cargos, obras ou verbas, e recebe o voto em troca — isso se não estiver pedindo demais (e pedir demais é pedir qualquer coisa que, por exemplo, enfrente a desigualdade ou provoque alterações políticas que dificultem a reeleição do parlamentar…);

– o presidente deu ao parlamentar, direta ou indiretamente, dinheiro saído da corrupção e recebe de volta a governabilidade (uma governabilidade que dura enquanto não surja uma crise maior do que o arranjo pode digerir, o que sinaliza que é hora da manobra do impeachment…).

Num sistema assim, só não obtém governabilidade quem for inepto, certo? Por isso, Collor e Dilma caíram. A diferença é que na queda de Collor ainda haviam esperanças em PSDB e PT; já a queda de Dilma arrastou para a vala comum PSDB e PT. No pós-Collor a maioria da sociedade se acomodou à expectativa de consolidar a democracia num Estado de Direito Democrático pelo protagonismo de PSDB e PT; no pós-Dilma a maioria da sociedade vive a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário a que PSDB e PT se acomodaram para poderem brincar de protagonismo.

Com isso, chegamos em frangalhos a uma eleição presidencial em que o protagonista é o Centrão – o cachorro alcançou o próprio rabo.

Veja bem, leitor: o Centrão era uma arregimentação confinada ao jogo intra-muros, longe do eleitorado. O Centrão nunca foi uma força propriamente eleitoral, foi sempre uma fenômeno do jogo pós-eleitoral, do jogo que se faz no Congresso depois das eleições, um jogo destinado a submeter aos interesses congressuais atrasados o que quer que tenha saído da escolha da maioria da sociedade na eleição presidencial.

A crise é de tal ordem, a desorientação da maioria da sociedade é tamanha, que o Centrão está a acreditar que pode fazer a encomenda desde já! Ou seja, para que esperar a trabalheira congressual se podem obter desde já o presidente que lhes vai atender? Com a ruína de PSDB e PT o facciosismo deixou o Estado e busca colonizar a própria dinâmica pela mudança que, mal ou bem, as eleições presidenciais vieram significando no curso desses trinta últimos anos.

Já não contentes em roer a carga, os ratos subiram do porão para o convés e querem assumir diretamente o comando do navio, numa consagração do “parlamentarismo de ocasião” enjambrado por Temer, cuja “exitosa” governabilidade exibe números de fazer inveja a Obamas e Trumps.

Pelo andar da carruagem, nossos cientistas políticos de carreira vão obter números consagradores para suas teorias novidadeiras — pelo menos até que a crise recrudesça.

Fica o Registro:

  • Ciro e Alckmin se mostraram faces da mesma moeda, ambos saídos do que outrora foi o PSDB e, por isso mesmo, ambos disputando o apoio do Centrão “liderado” pelo DEM, inteiramente imersos na luta de facções, que pouco caso faz da maioria da sociedade.
  • Lula, que também queria o apoio do Centrão, alardeia compromisso com bandeiras há muito esquecidas para obter coesão de incautos à esquerda. Ao mesmo tempo, fica enviando recados aos de cima, como se ainda fosse necessário sublinhar que não é bem assim…

FACCIOSISMO FEZ DE LULA UM PRESO POLÍTICO

Carlos Novaes, 08 de julho de 2018

[Com acréscimos em 09/07 e em 10/07, em Fica o Registro]

Como já dito, detalhado e explicado: embora não tenha nenhuma simpatia política por Lula, entendo que a condenação que o levou à prisão foi exarada sem provas. A prisão dele foi uma decorrência não do funcionamento da Justiça, mas do fato de que Lula chefia uma facção estatal que foi desalojada da condição de protagonista no exercício faccioso dos poderes institucionais pela ação convergente das facções concorrentes no âmbito desse teatro de operações em que a Lava Jato se transformou faz tempo. Por isso mesmo, todo o esforço de Lula e dos lulopetistas que sabem o que estão fazendo está voltado não para transformar o Brasil, mas para voltarem à condição de protagonistas no exercício do mando em nosso Estado de Direito Autoritário, como ficou claro nas circunstâncias em que se deu a prisão do petista, discutidas aqui e aqui.

Diante desse esforço do lulopetismo, as facções adversárias têm reações diferentes, conforme tenham mais ou menos razões para temer que Lula tenha êxito. As facções mais orientadas pelos interesses eleitorais tucanos atuam de modo a manter Lula na prisão, temendo mais os prejuízos eleitorais de uma volta dele ao cenário do que os prejuízos evidentes infligidos ao país por uma prisão assim arbitrária. As facções que sabem poder compor eleitoralmente com Lula, nas quais o p-MDB tem papel articulador, têm dado sinais crescentes, embora não unânimes, de que aceitariam um rearranjo em torno do petista.

Girando para além do eixo propriamente eleitoral, braços mais ajuizados das facções estatais estão cientes não apenas de que a eleição programada, tenha o resultado que tenha, não resolverá a crise de legitimação do Estado, mas também de que a situação de Lula fragiliza ainda mais o exercício faccioso dos poderes institucionais. E isso por duas razões: primeiro, Lula preso mantém na ordem do dia a exigência de que outros implicados também sejam presos, o que impede a reestabilização do arranjo mais geral; segundo, a força do prestígio de Lula, revigorada pela prisão sem provas, torna impossível simular para a sociedade, sem a participação do petista, que a crise de legitimação do Estado foi superada.

Em outras palavras, para os facciosos que querem manter o status quo e têm juízo o impeachment deu tão errado que o ideal, agora, seria poder voltar à situação pré-eleitoral de 2014: tentar a sorte optando por se alinhar contra ou ao lado de Lula, buscando os arranjos de poder que a escolha implicar (tal como teria sido possível se Lula tivesse assumido a Casa Civil sob Dilma). São essas circunstâncias complexas e os cálculos não menos complexos delas decorrentes que explicam sejam as decisões em série da maioria facciosa da segunda turma do STF, determinada a tamponar as vias transformadoras que foram abertas contra o autoritarismo do Estado de direito brasileiro; sejam as movimentações dos militares, que não estão dispostos a “matar os 30 mil” do Bolsonaro para manter vantagens que podem conservar se repavimentarem as pontes com Lula; seja a concatenação facciosa escancarada entre Fachin, TRF-4 e Moro, que insistem em manter um programa máximo unilateral que torna uma piada de mau gosto o que quer que se possa entender com uma causa republicana.

A movimentação ocorrida neste domingo em torno do habeas corpus de Lula deve ser examinada à luz do entendimento exposto acima. A frenética concatenação entre Moro e o TRF-4 escancara uma articulação facciosa que já fora possível perceber quando Fachin recebeu celeremente do mesmo TRF-4, como que por encomenda, a decisão que lhe permitiu evitar a votação de um pedido de soltura de Lula na mesma segunda Turma. Como a decisão de soltar Lula também foi facciosa, a conflagração das facções estatais atingiu um ponto que torna ridículo que alguém ainda fale em Estado democrático de direito, como fazem as facções em disputa, cada uma reivindicando sua própria causa como um resgate ou afirmação dessa quimera.

Como quer que você se alinhe, leitor, o fato é que hoje Lula obteve um triunfo inegável: viu explicitar-se para o observador recalcitrante a sua condição de preso político. A crise de legitimação só faz crescer, o que apequena a eleição e deixa cada vez mais clara a fraqueza dos candidatos à presidência.

Em 09/07 — Fica o Registro:

  • O tom predominante do que hoje aparece na mídia sobre esse episódio do habeas corpus do Lula é o de que houve falha jurídica, trapalhada, palhaçada, atropelo de hierarquia, bizarrice, partidarismo jurídico e por aí vai:  puro escapismo de quem não vê ou finge não ver a gravidade do que se passa no Estado brasileiro. Todas essas “análises” tem em comum o fato de se concentrarem improdutivamente na conduta particular dos personagens envolvidos (e, até, no caráter deles!), como se a enormidade do que se passa pudesse ser explicada pelas escolhas desses indivíduos, como se fosse possível não estabelecer conexão direta entre esse episódio e todas as outras decisões mais recentes no STF pró e contra Lula e outros réus e suspeitos da Lava Jato, ou mesmo as mais recentes decisões pestilentas do Congresso sobre agrotóxicos, ou ainda a manutenção de vantagens estatais para facções estatais, como o auxílio-moradia aos juízes — a crise também é crise de legitimação ali onde as facções enxergam oportunidades, leitor. Enfim, olhados em seu conjunto, esses embates nada têm de personalizados e deixam claro que está a ficar a cada dia mais aguda a guerra de facções no curso da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário — como já foi dito há tempos, só na rua o Brasil tomará o rumo de um Estado de Direito Democrático.
  • 10/07 — Mais claro, nem por encomenda: a imprensa traz hoje relato detalhado de como deputados do PT, inclusive à revelia da defesa técnica de Lula, agiram para exibir deliberadamente a guerra de facções estatais em que se movem os lulopetistas e seus adversários, justificando inteiramente o texto publicado aqui quando Lula se entregou sem se fazer prender: Lula dobrou sua aposta na guerra de facções. Tal como as outras facções, os lulopetistas tentam manejar a opinião pública que já é, e que pode vir a ser, favorável à causa deles não para tirá-la da inércia, mas apenas para aumentar-lhes o cacife tanto na guerra faccional em si quanto nessa eleição ridícula, voltada a simular a superação da crise de legitimação que engolfou a todas as facções. Como é próprio de situações assim agônicas, em que a marca dos protagonistas é a cegueira para o abismo em cuja borda estão a dançar, essas facções estatais não param de ver oportunidades ali onde abrem portas para o caos: as facções no Judiciário (judicação) querem incorporar o auxílio-moradia aos salários; as facções nos presídios (violação) se mostram mais sangrentas do que nunca em sua própria luta por hegemonia; as facções no Executivo (gestão) prevaricam na selva e na cidade em troca de vantagens imediatas, pouco se lixando para o futuro (em que já estarão mortos); e as facções no Congresso (representação) têm aprovado toda sorte de legislação retrógrada e nociva, ao mesmo tempo em que se redistribuem entre as candidaturas presidenciais, garantindo interlocutores seguros por toda parte para, naturalmente, voltarem a se acertar depois das eleições no intuito de mostrar quem manda ao novo presidente da “República”, que docemente constrangido aceitará a canga — a menos que a maioria da sociedade se mexa.

SOCIEDADE DEMOCRÁTICA CONTRA ESTADO DE DIREITO AUTORITÁRIO

Carlos Novaes, 09 de junho de 2018 – 21:59H

[com acréscimos em Fica o Registro, em 13/06]

 

Em junho de 2013 o estopim para que a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário ganhasse as ruas foi o aumento de R$ 0,20 no transporte de gente; em junho de 2018 estamos às voltas com uma redução de R$ 0,46 para o transporte de cargas: assim como os 0,20 não resolveram, os 0,46 também não resolverão — é que o veículo que transporta a equação que há trinta anos não fecha precisa de uma troca de eixos, leitor, e em movimento.

Em 1989, em pleno impulso democrático para deixar a ditadura para trás, realizamos eleições presidenciais solteiras com ampla representação das motivações e interesses presentes na sociedade brasileira de então; em 2018, em plena crise de legitimação do Estado de direito enjambrado em 1989, realizaremos, além de eleições presidenciais, eleições para todos os outros cargos eletivos estaduais e nacionais. Não obstante essa profusão de cargos em disputa, não há em 2018 nada que se compare ao intenso engajamento eleitoral havido para a disputa de um único cargo em 1989 – é que os políticos profissionais que em 1989 arremedavam representar as preferências e interesses saídos do pendor democrático da maioria da sociedade estão hoje entrincheirados em facções na defesa de preferências e interesses autoritariamente contrários ao pendor democrático da maioria da sociedade (eles levaram 30 anos se unindo e agora atuam afinados, ainda que disputando uns contra os outros os postos de mando, estejam em palácio ou em presídio).

Produziu-se assim uma situação a que os louvadores de um suposto “Estado democrático de direito” a ser preservado estão a chamar de paradoxo: uma sociedade que vive a crise da sua democracia e precisa de mudança para ir adiante se mostra desinteressada de uma eleição geral a se realizar daqui a menos de seis meses. Mas não há paradoxo algum, pois não só a crise não é da democracia (que vai muito bem, obrigado), mas do Estado de Direito Autoritário, como também a maioria da sociedade está a se dar conta de que o buraco real é muito mais embaixo do que a boca virtual da urna: mais uma eleição no formato da política tradicional não nos serve, pois nesse formato a política vai continuar a ser essa engenhoca com o eixo das facções estatais a girar na vertical (feito moenda), e o nosso, o da sociedade, a rodar na horizontal (empurrado sem proveito comum), nos condenando a continuar a marchar em círculos cada vez mais torturantes – sendo “de legitimação”, a crise é muito maior do que uma eleição no Estado ilegítimo pode dar conta! Nem sobre os trilhos da bitola militar esse veículo esdrúxulo poderá ir adiante.

A equação que não fecha (dimensão social, política e econômica da crise) e o facciosismo político conflagrado (dimensão estatal da crise) foram sendo armados no curso desses trinta anos em que, de um lado, a maioria da sociedade brasileira tirou consequências do seu pendor democrático e, de outro lado, a minoria que se adonou do Estado de direito tirou proveito do exercício faccioso dos poderes institucionais. Correndo por baixo desses dois movimentos opostos (um vindo de baixo, da sociedade; outro vindo de cima, do Estado), mas dando solda contraditória a eles, a desigualdade deu fundamento ao que só poderia desembocar nessa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário: à vivacidade de luta democrática da maioria da sociedade contra os sofrimentos impostos pela desigualdade correspondeu o apego crescente das facções estatais às regalias oferecidas pela mesma desigualdade – embaixo se lutava por direitos democráticos (todo o rol conhecido: educação, saúde, moradia, reconhecimento, emprego, terra, expressão de si etc.); de cima, com a força, se negavam à maioria os seus direitos, e, com a caneta, se defendiam privilégios e roubo (salários acima do teto, auxílios, bonificações, corrupção, previdência própria etc.).

Enquanto a desigualdade corria (e corroía) por baixo, adejava por cima a fantasia vampira do “Estado democrático de direito”, pela qual se tentou precisamente esconder esse abismo entre a sofrida disposição de luta dos de baixo e a regalada locupletação bruta dos de cima. É a esse Estado imaginário que querem que a gente defenda nessa hora tão pouco propensa à fantasia — como disse Riobaldo, “quem mói no aspro não fantaseia”.

Ilusão chama fantasia. Uma fantasia nociva do momento se parece muito com uma outra, de há não muito tempo: em junho de 2013, se disse fantasiosamente que o movimento contra o aumento das tarifas do transporte de gente se desdobrou daquele modo em razão da fraqueza do governo Dilma; em junho de 2018 estão a dizer que o movimento em favor do aumento das tarifas do transporte de carga está a se desdobrar desse jeito em razão da fraqueza do governo Temer. Não. Ambos os movimentos são expressão de algo que não apenas está além, mas explica a fraqueza desses governos: a crise de legitimação de um Estado de Direito Autoritário em profunda incongruência com a dinâmica democrática da maioria da sociedade que ele oprime para manter a desigualdade que a infelicita. Veja bem, leitor, essa incongruência está muito clara: num país de população ainda moça, com mais de 150 milhões de eleitores, tentaram manter uma desigualdade de burro de carga junto com liberdades de opinião, imprensa, manifestação, organização e voto!!

Fica claro, portanto, que houve nesses 30 anos dois movimentos contrapostos saídos da luta contra a ditadura paisano-militar: um dinâmico, rico e maravilhoso empuxe por direitos vindo da sociedade (que vai da parada gay aos sem-terra, sem-teto, sem-nada, passando por toda sorte de demandas econômicas, comportamentais, sociais, ambientais, étnicas e culturais); e uma reação resiliente, engenhosa, corrupta e brutal vinda do Estado (que vai do atrelamento da economia ao Mercado à matança dos pobres nas favelas, passando por toda sorte de arbitrariedades saídas do exercício faccioso dos poderes institucionais, exercício este que também serviu para cooptar e degenerar as duas forças políticas em que a sociedade havia confiado justamente para se contrapor a esse estado de coisas: PSDB e PT).

Como é que alguém pode dizer que é a democracia que está em crise, que um quimérico Estado democrático de direito está ameaçado?! Não. Encarar a crise desse modo é desviar as energias para um combate errado e implausível, é pretender que as pessoas se mobilizem para salvar esse Estado, que elas, finalmente, estão em vias de enxergar que é o problema, não a solução, pois até a Constituição já foi rasgada. Dizer a democracia em crise é jogar fora todo o esforço de luta feito pela sociedade no curso desses trinta anos.

Querer salvar o Estado de Direito Autoritário vai ajudar a que nossos adversários encontrem uma saída, e essa saída só poderá ser pela, aí sim, diminuição das franquias democráticas que nutrimos até aqui, pois se permitirem a continuidade do nosso dinamismo democrático eles não conseguirão a re-estabilização que pretendem com essa eleição ridícula, com esses candidatos ridículos, que há menos de seis meses para a eleição, numa hora grave dessas, comparecem a entrevistas e sabatinas para dizerem que ainda estão pensando no que propor para problemas com os quais o país está a lidar faz décadas. Tem gente que está na segunda ou terceira tentativa de chegar à presidência e ainda não deu conta de fazer um diagnóstico claro, com propostas claras, tudo está “aberto ao debate” – por que diabos deveria o eleitor incauto acreditar que farão nos próximos três meses o que não deram conta de preparar nos últimos dez anos?!

Em suma, na Nova República saída da luta contra a ditadura paisano-militar, a democracia deu certo, pois ela dependia do povo; e o Estado de direito deu errado, porque ele foi deixado nas mãos dos políticos profissionais e hierarcas. Esse Estado de direito já não dá conta de viver com essa democracia, está sem legitimidade, e as pessoas estão a se dar conta disso. Essas instituições não nos servem e os políticos e hierarcas que gravitam nelas também não, precisamos transitar para uma nova ordem institucional.

Que essa crise tenha ganho as ruas em 2013, e volte a elas em 2018 pela mesma razão não é casual. Esses movimentos tarifários remetem, ambos, diretamente, à fonte energética básica da economia e, com ela, da sociedade: o petróleo – uma riqueza mineral que é de todos e sem a qual o país não anda. Como a economia está centrada na manutenção e reiteração da desigualdade, sua fonte básica de energia não poderia deixar de, um dia, refletir as contradições acumuladas, e nos dois módulos do ir e vir: o das gentes, tão sofridas na luta por bens; e o dos bens, tão desigualmente distribuídos entre a gente. Esse dia chegou e resolver o problema está além de improvisos na boca do caixa ou na estrutura tributária. Precisamos de outra ordem econômica, com outra arrumação para o petróleo.

Assim como apoiou o movimento dos transportadores até o limite em que entre eles apareceu a demanda ditatorial, a maioria da sociedade brasileira pode ser levada a entender que chegou a hora de uma desobediência civil que exija eleições gerais constituintes sem limitações de ordem partidária, com igual oportunidade para todos, muito além da bitola estreita dessa eleição acanhada que estão a nos impor. Do contrário, a crise ressurgirá com força total depois da eleição, se não for antes…

[13/06] Fica o Registro:

  • Em artigo na Folha de hoje, Vinicius Torres Freire traduz de modo muito instrutivo a média do desespero que corre pelas redações com a situação do país, especialmente quando se leva em conta o que venho dizendo aqui sobre a crise de legitimação do Estado e o divórcio respectivo entre a guerra das facções estatais entre si e contra a maioria da sociedade. Freire aponta o que chama de “vale tudo” (sem notar que não é bem “vale tudo”: para eles, não vale dar força ao que há de republicano nas facções — contra isso eles se unem); diz que “nosso buraco é muito mais embaixo”; afirma dos políticos que a “atitude preponderante é saquear”; nos diz em “um ambiente de desagregação partidária e sociedade desorientada”… Entretanto, a despeito de todas essas constatações, nas quais o leitor deste blog pode ver aspectos da guerra de facções que caracteriza a face propriamente estatal da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, Freire fica a oscilar entre a fantasia e a desistência: ou sonha com um entendimento entre o Congresso atual e o próximo presidente, no que seria uma antecipação da governabilidade… ou entrega os pontos, se rendendo aos “defensores das trincheiras econômicas”… A desorientação de Freire é a mesma de todos os que não enxergam a crise de legitimação do Estado — não querem ver que não há a quem recorrer olhando para o alto, simples assim. Essa “antecipação da governabilidade” seria o sinal de que o  próximo presidente já estaria engolido pela lógica das facções antes mesmo da posse, arranjo que só poderia dar certo com um aprofundamento do exercício faccioso dos poderes institucionais, na linha de transpor a crise de legitimação com mais autoritarismo, não mais democracia. Uma “antecipação” dessas seria, aliás, a solução dos sonhos para os tais “defensores das trincheiras econômicas”. Quanta cegueira!
  • Em um outro artigo, também na Folha de hoje, Paula Martins, Camila Barroso e Mariana Rielli apontam minuciosamente o recrudescimento, desde junho de 2013, das ações do Estado contra o direito democrático de manifestação da sociedade. Elas demonstram que “a articulação entre Executivo, Legislativo e Judiciário se tornou mais orgânica” e constatam que “a repressão a protestos urbanos de massa – que, vale dizer, reproduz a prática corriqueira da violência estatal em espaços periféricos do país – nunca cessou”. Não obstante, as autoras não articulam esse estado de coisas tão bem descrito com o fato de que essa “coesão orgânica” se dá em meio a uma luta de facções no âmbito do mesmo Estado que vêem mais coeso. E não o fazem porque não enxergam que essa “articulação mais orgânica” do Estado contra a sociedade é uma resposta regressiva e precária, dele, à sua própria fragilidade estrutural, à sua crise de legitimação. Ou seja, a tal “coesão orgânica” é só do guichê para fora, pois para dentro é pau puro, pelo menos até que se resolva uma nova hegemonia para o exercício faccioso dos poderes institucionais. Um dia se dirá que o cavalo passou encilhado e só Carolina não viu.

A INÉRCIA TEM SENTIDOS…

Carlos Novaes, 31 de maio de 2018 – 17:38h

[com acréscimos em 01 de junho, em 02 de junho — e em 03 de junho]

Ao final do artigo de ontem acrescentei uma interpretação rápida dos números da pesquisa telefônica do DataFolha sobre a paralisação dos transportadores rodoviários de cargas – infelizmente, não disponho do banco de dados da pesquisa e, assim, estou impedido de explorar os números em sua efetiva riqueza. Não obstante, nas linhas a seguir, vou tentar desenvolver aquelas observações sumárias, ajustando-as com mais precisão (suponho) ao que venho escrevendo sobre a situação brasileira. Sigamos a passo.

Faz tempo, muito tempo, que venho apontando o curso por assim dizer paralelo entre a progressão da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário e a inércia da maioria da sociedade que sofre desde sempre sob o exercício faccioso dos poderes institucionais desse mesmo Estado, facciosismo este que, como já expliquei aqui e em muitos outros artigos, se estende dos presídios até o palácio do Planalto, engolfando todas as instituições de Estado do país, inclusive o STF – de Marcola a Temer, de Beira-Mar a Gilmar, passando pelos bem intencionados, mas não menos facciosos, Janot, Facchin, Barroso & Cia. A conflagração é geral porque já não há solo institucional comum e o Estado democrático de direito não existe nem jamais existiu, foi uma ilusão cujo véu se rompeu quando a crueza do facciosismo, apoiada nos dispositivos paisanos e militares herdados da ditadura paisano-militar, se espraiou das favelas para os palácios e seus jardins.

Uma crise assim prolongada e escancarada pode, como estamos a ver, deixar de ser enfrentada, mas não pode deixar de ser sentida. É o que mostra a pesquisa DataFolha: 87% dos entrevistados disseram apoiar a paralisação e nada menos do que 56% entenderam que o movimento devia continuar, mesmo diante da cobertura contrária da mídia (que foi mudando de sentido segundo crescia a virulência do movimento – nunca se sabe…). Não obstante essa expressiva “adesão” de opinião, não houve engajamento, ou seja, a inércia permaneceu. Num primeiro momento, ontem, me deixei levar pela inércia das minhas próprias reflexões e tomei essa inércia da maioria da sociedade como mais um sinal da sua inconsequência: vê, mas não quer enxergar; ou, quando enxerga, não quer se dar ao trabalho de lutar. Talvez não seja bem assim, ou melhor, talvez não seja só isso.

Uma “adesão” de opinião tão maciça não decorre de uma mera solidariedade com as dificuldades dos transportadores, afinal, eles não vivem nenhuma tragédia, seus sofrimentos nada têm de inauditos, que justificassem uma solidariedade propriamente de massas, como houve. Antes pelo contrário, a adesão resultou justamente do caráter comum, generalizável, dos sofrimentos vividos por mais esse segmento da atividade laboral no país. Ou seja, ao adotarem opinião favorável ao movimento as pessoas estavam falando de si, estavam expressando o modo como sentem em suas vidas a erosão do pacto do Real, que pretendeu levar adiante um país de 200 milhões de habitantes mantendo uma desigualdade de harém sob um Estado de Direito Autoritário ao qual aderiram as duas forças traidoras saídas da luta contra essa mesma desigualdade, PT e PSDB. Como a equação não fecha, 87% apoiaram o movimento.

Temer, esse golpista mafioso, do p-MDB, claro, está na presidência, mas não governa, pois já não há governo faz tempo (e, atenção, isso não é força de expressão): a crise de legitimação do Estado chegou a um ponto em que a conflagração das facções já não permite gestão (Executivo), nem representação (Legislativo), sendo que a judicação (Judiciário) que persiste é facciosismo escancarado, como dão exemplo, entre outros, a desfaçatez deletéria de Gilmar e o voluntarismo benéfico de Barroso. Pois bem, numa situação assim, qualquer reação (esse é o termo) estatal a reivindicações da sociedade será sempre recebida como insuficiente, pois a suficiência só seria atingida com a capitulação definitiva da ordem malsã, isto é, com a superação da crise de legitimação do Estado que já não tem como acertar. É por isso que a resposta às enormes concessões de Temer aos transportadores foi de recusa – nada que ele fizesse seria bem recebido, porque não se trata da resposta, mas do que ela simboliza (a permanência da (des)ordem).

Nada mais errado, portanto, do que interpretar os 77% e os 96% de desaprovação à reação do golpista como reflexo do desprestígio do seu governo, como dizem equivocadamente hoje os próprios analistas do DataFolha. Não. A crise já está um passo adiante: já não é o governo Temer que está em questão, mas o Estado de Direito Autoritário, ainda que as pessoas não tenham clareza disso, é óbvio. Afinal, de que outra forma interpretar os 96% que entenderam que Temer demorou a responder, se a maioria absoluta (56%) acha que o movimento deve continuar, e se 87% o apoiam?! Não se pode querer maciçamente resposta rápida para dissipar movimento benéfico que se quer ver continuar! Ou seja, os números não são contraditórios se entendermos que é como se a maioria das pessoas dissesse “apoio e quero que continue porque o que interessa no movimento não é exatamente o que pedem os transportadores, mas a contestação enquanto tal”.

Primeira conclusão: 87% apoiaram o movimento porque sentem a encruzilhada do fim do pacto do Real e 56%, 77% e 96% queriam, respectivamente, a continuidade do movimento e criticaram a resposta de Temer porque estão a se dar conta, com maior ou menor clareza, de que estão imersos numa crise de Estado, numa crise de legitimação, para a qual intuem, mas não encaram, que só há saída se a sociedade se puser em movimento.

Ao não encarar a exigência de agir, ao aferrar-se à inércia, a maioria se limitou a “apoiar” o movimento, mas recusando pagar-lhe a conta (outros 87%). Coerentemente, a maioria absoluta não deixou de registrar que os mais prejudicados são “os brasileiros em geral” (56%). Considerando que a ninguém pode escapar a evidência de que resolver um movimento desse porte não pode deixar de ter custos, a recusa em “pagar a conta” não é mera irracionalidade: as pessoas estão, por via indireta, indicando que solução para o transporte de cargas no país não virá de subsídios ao diesel ou de ajustes tributários precários, ou seja, elas intuem que será necessário um rearranjo mais geral, algo que não está ao alcance deste Estado, fundado nesse pacto falido, aferrado à manutenção da desigualdade. Mais uma vez, a crise de legitimação está no limiar de vir a furo e a recusa em “pagar a conta” pode não ser só inércia.

A virulência danosa do movimento emparedou as facções estatais e a facção palaciana não obteve das facções policiais e, sobretudo, militares, a obediência que teria recebido se o Estado de Direito Autoritário estivesse em condições de fazer um uso legítimo da força. Em outras palavras, o fato de a PRF e o Exército terem pipocado, a ponto de terem assistido, ao vivo e em cores, a pura e simples manutenção de bloqueios e até a destruição de caminhões, não fala propriamente da fraqueza do governo Temer, mas da crise de legitimação do Estado: cada facção está fazendo seus próprios cálculos, pois não sabe o dia de amanhã. E é aqui que entramos no que de mais difícil apreensão houve nesse episódio.

Mesmo depois de dias de turbulência — com a imprensa (vide o Jornal Nacional) tendo deixado de flertar com o movimento pelo que viu nele de anti-Temer, e passado a combatê-lo pelo que havia nele de além-Temer – e de o governo ter feito generosas concessões, os entrevistados não hesitaram em dar preferência à negociação se o movimento continuasse: 88% disseram preferir a negociação e apenas 9% declaram preferir o uso das FFAA e da polícia.

Uma recusa tão abrangente ao uso da força não deixa de intrigar quando pensamos na deriva autoritária de parte do movimento, que foi crescentemente expondo a demanda por “intervenção militar já”. Ora, se o apoio não-ativo da maioria fosse apenas inércia, seria natural que houvesse uma adesão mais expressiva à ideia de uma ação militar, ou seja, seria de esperar que mais gente inerte aderisse aos apelos para que “alguém”, no caso, as FFAA, fizesse alguma coisa. Mas não foi assim. Como já explorado no artigo de ontem, as expectativas de sentido democrático com a eleição de outubro jogaram aqui o seu papel, mas talvez não tenha sido só isso. Talvez a maioria das pessoas não tenha apoiado mais ativamente o movimento precisamente por ter sentido seu viés autoritário – nessa leitura, o distanciamento das pessoas se deu exatamente porque elas sentiram que reforçar o movimento seria incrementar a demanda por “intervenção militar já”.

Segunda quase-conclusão: o apoio da maioria da sociedade aos transportadores de carga teria parado ali onde o movimento deles indicou a abertura de uma via autoritária para a superação da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário; situação que, a contrapelo, indica que a crise brasileira está desfalcada de liderança democrática resoluta e transformadora, que possa dirigir auspiciosamente a opinião pública, o que dá ocasião a todo tipo de oportunismo “democrático”.

Dessa perspectiva, as declarações de Bolsonaro, cujo sentido busquei agarrar já no artigo de ontem, merecem tratamento mais detido.

Ao fazer profissão de fé pela democracia, mas indicando a meta de trazer os militares de volta pelo voto, o ex-capitão explicitou um movimento estratégico que está em curso pelo menos desde que os arroubos golpistas do general Mourão foram suavemente contidos (hoje ele é candidato a deputado – vão vendo…): tal como apontado aqui e aqui, os militares descobriram, na prática, que podem voltar à situação pré-redemocratização eleitoral sem precisarem reinstaurar uma ditadura (ainda que facções minoritárias entre eles venham atuando por um golpe puro e simples).

Na verdade, eles estão sonhando com uma situação em que além de ampliarem no Congresso (representação) os contingentes paisanos com que já contam (bancada BBB, bala+boi+bíblia), poderão também alcançar a presidência da República (gestão orçamentária) através de uma marionete, o que lhes proporcionaria cada vez mais desenvoltura para atuar na cena cotidiana. Daí terem pipocado na repressão ao movimento dos transportadores e não terem embarcado na insânia da “intervenção militar já”, não obstante aproveitem o alarido boçal como banho-maria para o “prestígio dos militares” medido pelas pesquisas, “prestígio” esse que se deve antes ao conservadorismo de quem responde às pesquisas de avaliação institucional sentindo que não tem para onde correr do que a uma presumida confiança neles.

Num cenário desses, o lulopetismo não tem como escapar de ficar brincando de autoafirmação, pois não pode ver como oportunidade emancipatória a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que ele próprio ajudou a conservar segundo a mais baixa das formas de adesão ao establishment: a corrupção. De braços dados com isso, numa prova de indigência intelectual e covardia política, o restante da autointitulada esquerda fica a paparicar o líder decaído dessa traição histórica e a se pavonear como defensora de uma Constituição que já foi rasgada, revestindo essa capitulação de toda uma parafernália conceitual que já de nada serve, enquanto se descredencia como agente transformador, ficando à margem do afloramento raro de contradições que gerações de militantes jamais viveram, embora ele tenha povoado os seus melhores sonhos.

É quase desesperador, pois enquanto não há no horizonte movimento capaz de indicar uma saída não-autoritária para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, as forças reacionárias e conservadoras contam com vários candidatos para levar a cabo um simulacro de legitimação nas eleições de outubro.

[01/06] Fica o Registro:

  • Os soldados de baixa patente que tentaram impedir o acesso de três mulheres à confeitaria Colombo que fica na área do forte de Copacabana dão um pequeno exemplo do que será a rotina do cidadão comum em caso de vitória de Bolsonaro, Alckmin ou assemelhados na eleição de outubro — qualquer um que envergue uma farda vai ser arvorar em intérprete e executor de normas estúpidas.
  • Artigo de Vladimir Safatle publicado na Folha de hoje pode parecer convergente com o que venho dizendo, e, de certa forma, é, mas há uma diferença fundamental: para Safatle, há que fomentar o sentido anti-institucional da inércia (como se fosse possível fomentar uma revolução); para mim esse seria o caminho certo da derrota e, assim, entendo que o fundamental é explorar na inércia seu sentido de criar novas instituições. Em outras palavras: Safatle raciocina de um modo que embrulha no mesmo pacote de inservíveis tanto o Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação quanto as franquias democráticas de que a sociedade brasileira ainda faz uso; para mim, separar essas duas instâncias é fundamental: quero explorar o sentido democrático da inércia no âmbito das franquias igualmente democráticas ainda existentes para superar a crise de legitimação do Estado numa perspectiva emancipatória. Dizendo o mesmo de ainda outro modo: Safatle supõe ser possível zerar a memória do que há e está disposto a correr os riscos autoritários de mais uma tentativa desse tipo; eu entendo que não há como ir adiante sem alguma memória do que há, e prefiro correr o risco de mudar menos do que gostaria, mas evitando dar o flanco ao inimigo.
  • [02/06] – O artigo de André Singer na Folha de hoje é uma pérola do besteirol covarde a que foram condenados os “teóricos” da autointitulada esquerda lulopetista depois que abandonaram a luta contra a desigualdade e aderiram ao Estado de Direito Autoritário: tal como Haddad, Singer não vê senão ameaças a um quimérico “Estado democrático de direito” em toda e qualquer movimentação social que não esteja sob o domínio das burocracias oligárquicas com as quais conviveu acriticamente no curso dos últimos 30 anos. Como se recusa a encarar que o lulopetismo é parte do entulho a ser deixado para trás, é para ele impossível enxergar alguma virtualidade emancipatória em movimentações contraditórias, cujo sentido poderia estar mais claramente em disputa (mas está) se a autointitulada esquerda brasileira não tivesse se deixado arrastar no roldão de desmoralização que atingiu o lulopetismo. Como um verdadeiro conservador, Singer viu nas incertezas do movimento “o mais perigoso vazio”, a tudo viu como conspiração e, junto com Temer, deu “graças a Deus” que tenha terminado como terminou.
  • Na mesma edição da Folha, Demétrio Magnoli, fazendo par conservador com Singer, mais uma vez mobiliza contra manifestações públicas a bobajada de sempre sobre a agressão delas ao “direito de ir e vir”. Como sabe qualquer liberal ilustrado, se esse direito estivesse em questão em obstruções circunstanciais do tráfego os engarrafamentos de nossas grandes cidades teriam de, há muito, ter se tornado matéria de nossa Corte constitucional. Enfrentando um aspecto que espertamente Singer evitou, Magnoli não vê no apoio da maioria da sociedade ao movimento senão uma forma de pensamento mágico em que uma suposta “dissociação absoluta entre causa e efeito faz parte do raciocínio”. Triste figura faz quem subestima aquele cujo desígnios não alcança, pois se é o caso de não desprezar as forças fascistas que atuaram no movimento (e é!), também não se deve classificar como irracionais as complexas escolhas que nosso povo está obrigado a fazer sozinho — por isso mesmo, quando tudo tiver dado errado, não terá sido por termos deixado de defender um presumido Estado democrático de direito, quimera que só tem servido para esconder o cotidiano exercício faccioso dos poderes institucionais contra esse mesmo povo.
  • [03/06] Francisco Bosco, em artigo publicado na Ilustríssima de hoje, dá uma prolixa volta para nos advertir de que a greve dos transportadores rodoviários de carga pode ter sentido oposto às manifestações de 2013. Chega a dar preguiça. Depois de ter feito o esforço de compadrio para comprar como boas todas as análises “amigas” da situação brasileira contemporânea (esforço no qual mistura o equivocado “pemedebismo” de Marcos Nobre e o risível “lulismo” de André Singer), Bosco vai concluir que ainda é muito cedo para avaliar junho de 2013, como se conhecer o sentido de junho de 2013 fosse um resultado intelectual definitivo, não uma tarefa prática aberta que nunca termina, pois a memória refaz o passado. Ora, o sentido de junho de 2013 sairá da capacidade que tivermos, ou não, de dar sentido emancipatório para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que vem em curso, da qual junho de 2013 foi sintoma tanto quanto a manifestação dos transportadores acaba de sê-lo. Nessa disputa pelo sentido da crise, tem pouca valia se contrapor diretamente ao afeto antipetista, pois não só o lulopetismo deu motivo de sobra (a traição, a corrupção e seus conexos) para essa insânia como ela é uma resposta proporcional ao desfazimento da fantasia coletiva da decolagem nacional que o mesmo lulopetismo tinha encenado (também daí o ódio). Não dá para ser emancipatório e, ao mesmo tempo, se empenhar em salvar Lula e o PT — eles se tornaram definitivamente parte do problema, não da solução. Olhada com atenção, essa floreada abordagem de Bosco, assim como outras que ficam se refugiando na interpretação de junho de 2013, reflete o cagaço diante da radicalização da crise que naquela altura estava a dar apenas os seus primeiros sinais de rua — vamos perder essa parada porque nossa vanguarda bem pensante ficou defendendo o ilusório Estado democrático de direito a que se acomodou ao invés de contribuir para a generalização da compreensão de que estamos diante de uma benfazeja clássica crise de legitimação do Estado que, na outra ponta, gente como Sheherazade, Kataguri e Villas Boas quer manter em sua forma de Estado de Direito Autoritário (daí compartilharem o cagaço).

CRISE DE LEGITIMAÇÃO, INÉRCIA E ELEIÇÕES

No contexto da paralisação do transporte de cargas

Carlos Novaes, 30 de maio de 2018 — 01:13h

[com acréscimos às 13:00h]

Quem acompanha este blog está familiarizado com a articulação que vejo entre o caráter prolongado da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário e a inércia da maioria da sociedade brasileira diante das tarefas que essa crise impõe. Quero crer que também já deixei claro que essa crise de legitimação só se resolverá se a maioria da sociedade de mexer em desobediência civil contra o Estado, ou se as facções estatais agora conflagradas lograrem resolver sua crise de hegemonia para voltar à rotina do exercício faccioso dos poderes institucionais conferidos pelo Estado de Direito Autoritário àqueles que alcançam seus postos de mando, seja por via eleitoral, seja por concurso ou nomeação. É evidente que se enveredarmos por um caminho francamente autoritário, via intervenção militar, a crise de legitimação será abolida pela entronização da própria ilegitimidade do Estado, que, então, já não será “de direito”.

De novo: a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário brasileiro vem prolongada porque nem as facções estatais conflagradas têm como encontrar por si mesmas um novo arranjo de arbitragem para a própria locupletação (pois elas já não contam com laços sociais que possam invocar umas contra as outras para, então, parar a sangria); nem a maioria da sociedade tem claro que essa dificuldade vivida pelas facções estatais é a evidência mesma de que já não há o que esperar delas para sequer um arremedo de bem comum.

O fio no qual vêm precariamente se equilibrando essa conflagração (no Estado) e essa inércia (na sociedade) é o respeito ao calendário eleitoral – um respeito que embora tenha orientação democrática e venha inflado de expectativas, não deixa de carregar uma forte dose de frustração antecipada, pois fora a horda boçalnarista, são poucos os que chegam a se entusiasmar com qualquer das outras candidaturas (o que é outra maneira de exibir a crise de legitimação: as pessoas querem algo mais, mas não sabem o que é).

Assim, tudo vem sendo adiado em nome da eleição de outubro de 2018 e qualquer ação anterior à eleição que traga a furo a crise de legitimação, seja pela via da sociedade (se uma desobediência civil generalizada emparedar a malsã rotina estatal que nos infelicita), seja pela via do Estado (se alguma facção estatal reunir a força necessária para submeter as outras), qualquer ação dessas, eu dizia, ou alterará profundamente a natureza do pleito ou simplesmente o abolirá. Alterar profundamente seria, por exemplo, realizar eleições realmente democráticas, que não nos obriguem a votar segundo as regras e candidaturas atuais; abolir o pleito seria, por exemplo, acabar com a democracia, impondo ao país mais uma ditadura paisano-militar.

Nas linhas a seguir vou tentar articular o conteúdo dos parágrafos acima com a paralisação do transporte de cargas por todo o país. Vou buscar fazer a articulação mencionada discutindo a paralisação tanto à luz da crise de legitimação do Estado, que postulo estar em curso, quanto à luz da inércia prolongada que enxergo na maioria da sociedade brasileira.

Um Estado em crise de legitimação prolongada é como um animal ferido: tenta se manter, até luta, mas a perda de sangue tanto o enfraquece sem parar como atiça os adversários (sejam eles oportunistas ou guerreiros), combinação adversa que reclama solução: ou vence, ou morre.

A paralisação do transporte de cargas tensiona ainda mais o equilíbrio precário de que falei mais acima porque o contraste entre a virulência danosa do movimento e a falta de resposta econômica ou política a ele torna o conjunto um êmbolo a aumentar a pressão da crise, mesmo que se simule uma “solução”: nem as facções estatais conflagradas estão em condições de dar resposta econômica sólida às reivindicações propriamente profissionais do movimento, nem a sociedade está em condições de apoiar ou repudiar ativamente possíveis desdobramentos propriamente políticos do mesmo movimento.

Não há como dar resposta econômica às reivindicações porque ela supõe um novo pacto, pois estamos a viver os estertores do pacto do Real, cuja clausula pétrea é a manutenção da desigualdade, ou “os ricos não podem perder” – qualquer solução no quadro do Estado atual seria um arremedo do que Temer fez e vêm daí as tergiversações dos presidenciáveis sobre como resolver o problema (repetir que o Temer é um incompetente golpista idiota não chega a ser uma alternativa). Ou seja, o aspecto propriamente econômico do movimento está, por si só, a apontar a crise de legitimação do Estado, pois para enfrentar um problema central como o transporte de carga será necessário discutir muito mais do que os preços do diesel e dos pedágios (tem gente falando que o que faltou foi competência aos arapongas da Abin…).

Em razão da erosão dos fundamentos do pacto, esse aspecto econômico reúne indevidamente, pelo lado da sociedade, sofrimentos reais e espertezas conjunturais: os caminhoneiros autônomos lutam para sobreviver; os empresários do transporte de carga fazem de seus motoristas agentes para o aumento de seus lucros – ambos viram na crise de legitimação do Estado (que eles confundem com a fraqueza do “governo Temer” a sangrar) uma deixa para agir, mas as motivações são muito diferentes e o fato de essa diferença não ser levada em conta é parte da inércia mental de quem observa os acontecimentos. É de registrar que nas entrevistas dadas às redes de TV as queixas dos caminhoneiros parados eram os preços do diesel e dos pedágios, enquanto os motoristas assalariados de empresas de transporte se queixavam do frio, da falta de comida, de banho, de roupa limpa…

Não há como tirar consequências prático-políticas imediatas do movimento precisamente porque elas exigiriam discernir e escolher lado nessas diferenças – teríamos de inscrever o movimento numa visada democrática para além dessa expectativa acomodada pela eleição. Não foi por outra razão que a “solidariedade” havida se resumiu à caridade de levar comida aos manifestantes e a vociferar nas redes sociais, duas formas de covardia política que apontam para o que há de fundamental na inércia e, por isso mesmo, dialogam com a deriva autoritária de parte do próprio movimento que investiu contra a inércia: quem leva comida e vocifera dá apoio malandro a quem está a agir, assim como quem pede intervenção militar está malandramente a querer que outro haja em seu lugar – esse é o fundamento da inércia dessa crise de legitimação: estamos a esperar que “alguém” faça alguma coisa.

Até aqui, a frustração com as candidaturas presidenciais oferecidas pelo calendário eleitoral em que a sociedade aposta as suas últimas fichas democráticas é um sinal subterrâneo de que a crise exige mais do que meramente esperar pela eleição. Não conseguimos enxergar nos candidatos alguém que possa agir em nosso nome precisamente porque identificamos sem querer ver que o tamanho e a qualidade da crise requerem nos darmos ao trabalho de criar a condições para forjar lideranças sintonizadas com a luta contra a desigualdade e pela consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático.

Nos dois artigos mais recentes deste blog, e em resposta a leitor de um deles, foi dito que, embora o cenário seja marcado pela incerteza, não se via sinais de que o curso do calendário eleitoral pudesse ser alterado… Bem,  esse movimento dos transportadores deu concretude à incerteza da situação e deu indicação de que a crise de legitimação do Estado talvez não caiba no calendário eleitoral tal como se apresenta. Entretanto, não vi sinais de que a coisas pudessem ir na direção de uma crítica ao Estado de Direito Autoritário, pelo contrário (até porque, em geral, o caminhoneiro, do ponto de vista político, não é senão um taxista de grande porte…).

Por outro lado, aqueles que se manifestaram contra as reivindicações autoritárias o fizeram de um modo que fortalece a ilusão de que vivemos sob um Estado democrático de direito: ficaram, como Barroso, do STF, a defender a democracia, “o feito da sua geração”, como se não houvesse crise de legitimação do Estado. Até Bolsonaro fez profissão de fé na democracia, dizendo que “se [o poder militar] tiver de voltar um dia, que volte pelo voto”. Esse é o perigo que o ex-capitão defensor de torturadores representa: resolver a crise de legitimação do Estado com a instauração, pelo voto, de um renovado Estado de Direito Autoritário com hegemonia da facção militar, num reforço sem paralelo do exercício faccioso dos poderes institucionais, mas com democracia eleitoral.

Como já disse em outro artigo: não devemos confundir a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário com a confiança na democracia, afinal, duvidar se vai haver eleições é duvidar do Estado de direito como garantidor do calendário eleitoral (fronteira última de sua relação com a democracia), não da democracia como forma de escolher alternativas para arbitrar conflitos no âmbito da sociedade. As dúvidas que temos sobre o respeito ao calendário eleitoral advém das incertezas da guerra de facções estatais, onde há até insubordinação militar, não das diferenças de interesse existentes na sociedade.

Tomado em seu conjunto, o estado atual da crise está a indicar que, quando muito, a inércia nos empurrará para o realismo de uma polarização eleitoral entre, de um lado, as candidaturas dos que pretendem uma reconfiguração do Estado de Direito Autoritário e, de outro, quem tem compromisso com a luta contra a desigualdade e por um Estado de Direito Democrático — essa regressão medonha terá sido o legado dos trinta anos de um presumido Estado democrático de direito em que PT e PSDB protagonizaram uma polarização fajuta enquanto soerguiam os dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM). Logo saberemos.

Fica o Registro:

  • Foi divertido ver os defensores do livre mercado, do Estado mínimo, das privatizações, atacarem a Petrobrás (por sua conduta rigorosamente empresarial, de mercado, na definição dos preços dos seus produtos) exigindo providências do Estado contra a estatal que, não obstante, querem privatizar!
  • A reivindicação de zerar impostos sobre combustíveis diz muito sobre a junção de ignorância com descompromisso com o bem comum.
  • [13:00h]  Acabo de ler no UOL resultado de pesquisa telefônica realizada pelo DataFolha. Nada de surpreendente: esmagadora maioria (87%) apóia a paralisação (sente a crise de legitimação do Estado), maioria absoluta (56%) apóia a continuidade do movimento (percebe que há na manifestação um caminho para enfrentar a crise), mas outra maioria esmagadora (87%) se recusa a pagar a conta (se mantém inerte diante das tarefas impostas pela crise), sendo que, como não poderia deixar de ser, 77% desaprovam a condução que Temer deu ao enfrentamento do problema (qualquer governo está aquém de dar resposta convincente para uma crise de legitimação do Estado que finge governar); finalmente, vale registrar que metade dos entrevistados alterou sua rotina em razão do movimento e outra metade diz sequer tê-la alterado. Em suma, o movimento foi um espasmo da crise no sentido de romper a inércia, não o fez, mas deu materialidade às incertezas e, com isso, tornou mais perceptível o contraste entre o tamanho da crise (afinal, é uma crise de legitimação do Estado) e as alternativas oferecidas pela forma e pelo cardápio da eleição de outubro (forma e cardápio típicos de uma eleição de rotina, sem crise).
  • Em entrevista à Folha de hoje, o general Heleno, ex-comandante das tropas da intervenção no Haiti, vê semelhanças entre a situação atual e a de 1964, se diz lisonjeado com as solicitações de intervenção militar, mas faz profissão de fé no respeito ao calendário eleitoral, dizendo da formação do oficialato. Bem, todos sabemos o que vale esse padrão de formação quando a tropa se inquieta na direção contrária a ele. Esse é um dos riscos que corremos: a tropa resolver agir na direção dos clamores saídos da inércia da sociedade inconsequente.

IRRACIONALIDADE POLÍTICA

Carlos Novaes, 12 de maio de 2018

[com acréscimo em 15/05]

Em artigos recentes, tratei da situação de Lula em três passos:

primeiro, explorei o que ainda havia de vivo na ambivalência da sua liderança: de um lado, o Lula que ainda simboliza para muitos uma reorientação da política no sentido dos mais fracos (razão de seus altos índices de intenções de votos, ou até do sentimento de injustiça que sua condenação traz, por exemplo); de outro, o Lula como uma das peças centrais da luta de facções que caracteriza a crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário (razão dos votos para livrá-lo da prisão no STF, com clara simpatia de Temer&Cia, por exemplo);

segundo, tratei dos sinais de que Lula já se fechara em si mesmo: jogou com a solidariedade popular para se cacifar para a aposta que realmente faz, a luta de facções estatais, de onde espera que venha uma saída para si, pois jamais apostou para valer na mobilização dos de baixo, como seus oitos anos na presidência deixaram claro para quem ainda tinha alguma dúvida;

terceiro, apontei que, diante das circunstâncias, a única saída politicamente racional para Lula é apoiar Ciro, com Haddad de vice.

Nos últimos dias, porém, Lula deu sinais de que, ao invés de buscar a composição com Ciro, vai insistir em se arrastar como pseudo-candidato. Nas próximas linhas, vou discutir a irracionalidade dessa escolha de Lula à luz tanto de situações anteriores vividas por ele quanto da complexidade da situação brasileira atual.

Apontar o quanto Lula pode ser irracional não é inédito, pois a irracionalidade dele já apareceu com força quando escolheu Dilma para sucedê-lo e, depois, quando permitiu que ela tentasse a reeleição – e não estou a dizer isso só agora. Em dois artigos escritos na passagem de 2008 para 2009, apontei as limitações e riscos que via na escolha de Dilma:

A preferência de Lula [por Dilma] decorre de duas limitações: da natureza instrumental do vínculo dele com o PT e, dela, de sua inclinação por substituir o petismo pelo lulismo; e da tendência, pode-se dizer natural, de ver a si mesmo como o limite a que a esquerda brasileira pode atingir.

Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário [do que Putin fizera na Rússia] do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja [Dilma], Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o p-MDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.

Mais adiante, em meados de 2013, quando ainda não ficara claro que Lula deixaria que Dilma concorresse à reeleição, dobrando sua aposta na irracionalidade, ponderei que:

O que impediria  Lula de ser candidato a presidente em 2014 é sua recusa pessoal a entrar na disputa, situação que, entre outras coisas, expõe a fraqueza de Dilma como eventual candidata: ela jamais teve, tem ou teria qualquer condição de impedir uma candidatura de Lula em substituição à sua própria. […]. …nada há de sólido no caminho de Lula para ser candidato a presidente em 2014, salvo ele mesmo;

se […] Lula insistir em pedir votos não para si, mas para Dilma; só numa situação assim, propícia à irracionalidade, e plena dela, com a ordem política de ponta cabeça, é que Serra poderia sonhar com uma remotíssima chance de chegar à presidência.

As coisas se passaram como sabemos e chegamos à eleição presidencial de 2018 com Lula na cadeia. Ao amarrar o que resta do PT às grades da sua cela, Lula leva ao ápice a natureza instrumental da sua relação com o partido, pois depois de tê-lo degradado a instrumento político seu (em 2009), agora está a impedir que o partido faça qualquer política, proferindo a sentença de morte: “nem comigo, nem sem mim”. Ao se recusar a liderar o lulopetismo na direção de uma candidatura viável, Lula leva até o fim a ideia esdrúxula de que ele é o máximo a que a autointitulada esquerda pode aspirar, fazendo da própria prisão a negação da política para os outros – precisamente o contrário do que deveria fazer, se estivesse preocupado com algo além da própria sorte. Lula só pode se dar ao luxo de ser irracional porque o PT se entregou faz tempo.

Depois de aceitarem sacrificar a diversificada “sociedade civil petista” comprometida com a luta contra a desigualdade para alcançarem o poder com a solda precária entre o carisma e a máquina já descompromissados com aquela luta, os maiorais do PT sucumbiram à dimensão populista do carisma do seu líder e hoje se agarram a um lulopetismo que é menos do que um peronismo. Assim, depois de mais de trinta anos, e embora tenha construído uma máquina política formidável, organizada numa burocracia de âmbito nacional num país de 150 milhões de eleitores e com a oitava economia do mundo, o PT chega a uma eleição presidencial sem poder deliberar segundo mecanismos democráticos (já indisponíveis) uma alternativa institucional para si mesmo — como resumiu a presidente (?) do partido: “se, no final, tudo der errado, Lula saberá o que fazer”.

[em 15/05 —  O problema é que no final, quando tudo tiver dado errado, Lula irá descobrir que já não há o que fazer, pois ele muito provavelmente sequer contará com um eleitorado a transferir a quem quer que seja — é que eleitores não se transferem como numa operação bancária, ao toque de um botão. Não. Para transferi-los há que engajá-los no processo político da transferência e, mesmo assim, nada é garantido. Lula está a acreditar na ilusão de que existe um “lulismo”, “sou uma ideia”, quando já ficou claro, faz tempo, que isso nunca existiu, como mostrei longamente aqui. Ou Lula se engaja desde já na construção de uma candidatura alternativa à sua própria, dividindo a construção dela com seu eleitorado, ou acabará como mais uma candidatura irrelevante bem posicionada em pesquisas].

Assim como a imensa maioria da militância lulopetista está inerte diante da irracionalidade de Lula, a imensa maioria da sociedade brasileira está inerte diante da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, situação que configura uma irracionalidade mais ampla, pois, salvo melhor juízo, não há qualquer sinal de que algo poderá quebrar essa inércia antes das eleições de 2018, quando novos simulacros de legitimação entrarão em cena.

Até as candidaturas alternativas dão testemunho dessa inércia, pois nenhuma delas nasceu de qualquer movimentação social efetiva e, por isso mesmo, malograram sozinhas em sua inconsistência e artificialismo, frustrando quem equivocadamente supõe que estamos a reviver 1989, quando a sociedade fervia por alternativas de mudança na direção da consolidação democrática. O malogro de cada uma das candidaturas externas ao mundo da política profissional, desde o narigudo SS júnior, passando pelos empresários bocós e chegando ao honrado Barbosa, ilustra não a força dos profissionais da política, nem apenas a covardia pessoal dos desistentes, mas a inércia da sociedade, que lateja por transformação, mas se recusa ao trabalho de fazê-la, prisioneira do mesmo transe bovino em que se acha o lulopetismo diante de seu líder decaído.

Com essa margem de manobra que lhes foi dada, os políticos profissionais estão fazendo suas apostas na redistribuição do poder das facções estatais ali onde ele depende da chancela eleitoral, operação que vai permitindo uma diminuição sensível no número de candidaturas presidenciais, pois a inércia da sociedade deixou o jogo no plano propriamente estatal, “calmaria” que vai possibilitando acertos prévios. Em outras palavras, o que há de trabalhoso nesse processo de rearranjo de facções e candidaturas não é uma decorrência da dificuldade de responder aos sofrimentos vividos pela maioria insatisfeita da sociedade, mas é produzido pelas dificuldades de coordenação dos apetites aflorados da luta entre facções inscientes de que protagonizam uma crise de legitimação do próprio Estado cuja hegemonia para o exercício faccioso dos poderes institucionais disputam.

Fica o registro:

  • Enquanto isso, a luta de facções no âmbito da chamada Lava Jato prossegue: Gilmar acaba de mandar soltar o canário dos governos tucanos, enquanto facções da PF, junto com a PGR e Barroso, prosseguem na investigação contra Temer, baseados na interpretação facciosa de que a Constituição proíbe processar o presidente, mas não proíbe investigá-lo… (melhor assim!).
  • Na dança acima pode haver, ao fim e ao cabo, uma variante de convergência contra nós: é que talvez a ruína de Temer (e, quem sabe, até a de Aécio) já estejam precificadas e venham a servir — ainda que contrariando muitos dos empenhados em levar as punições a cabo — de cortina de fumaça para a escapadela de quem ainda pode servir de saída para o establishiment, como Alckmin. Vamos acompanhar.

NOTAS SAÍDAS DO REALISMO A QUE A INÉRCIA NOS ARRASTA

Carlos Novaes, 25 de abril de 2018

Embora os sinais ainda sejam fracos, e não se possa antecipar quanto da burocracia petista se engajaria no acerto, parece que caminhamos para assistir à benção de Lula à candidatura de Ciro, com Haddad de vice. Dadas as circunstâncias ameaçadoras em que se encontra o país, talvez não haja como pôr de pé, no curto prazo, um arranjo menos frágil do que esse para mantermos, em meio à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, condições mínimas para continuarmos a lutar pelo Estado de Direito Democrático que almejamos desde a ditadura paisano-militar. Com realismo amargo e, portanto, sem entusiasmo, os parágrafos a seguir serão uma tentativa de explicar, pela ordem, essas observações.

É incerto, mas há sinais de que a maioria da burocracia petista pode engolir essa solução. A prisão do Lula mudou o jogo e do dia prá noite transformou a combatividade de Gleisi Hoffmann e de Lindbergh em um estorvo. Atrás das grades, o lulopetismo envelheceu décadas em poucos dias. Lida com cuidado, a entrevista em que José Dirceu usou a experiente Mônica Bergamo para mandar vários recados pode ser vista como uma prévia antecipação pública do seu aceite ao arranjo que foi insinuado, posteriormente, por esta emblemática reunião entre o mais saliente nome paisano da ditadura ainda em atividade, Delfim Neto; dois expoentes do PSDB original que não se corromperam, Bresser e Ciro; e aquele que se tornou depositário do que muitos ainda têm como crível no farisaísmo do lulopetismo, Haddad.

Do muito que Dirceu disse, isolemos três movimentos fundamentais: primeiro, na desenvoltura com que concatenou a realidade da prisão de Lula com a orientação acerca do que se passa além dela, Dirceu deixou claro que ao ser preso Lula decaiu ao mesmo patamar a que há tempos fora rebaixado este comandante da máquina petista, como que restaurando a dualidade entre carisma e burocracia que fora perdida no mensalão, ocasião em que Lula pôde deixar Dirceu para trás e adonar-se do PT, como analisei aqui (o mensalão tirou Dirceu do calendário eleitoral; o petrolão fez o mesmo com Lula). Em outras palavras, se nenhum dos dois desistir da política nem sofrer um emburrecimento súbito, este nivelamento na adversidade os fará mais unidos do que antes.

Segundo, a minuciosa descrição que Dirceu fez da dura realidade humana da prisão — da força que ela tem, por isso mesmo (isto é, pelo que há de duro e humano nela), para como que zerar as diferenças entre a criminalidade das condutas que ela pune, bem como para aproximar os contrários — é uma abordagem que além de dialogar com o que há de nobre no homem comum, mostra a convergência de duas resignações, uma na vida privada, outra na vida pública: na primeira, Dirceu aceita a perda da liberdade pessoal (mas para continuar a fazer política); na segunda, Dirceu aceita a perda do protagonismo petista (o carisma e a máquina estão agrilhoados). Terceiro: a concatenação dessas resignações com disposição para analisar a cena política com frieza, invocando uma tão anacrônica quanto coerentemente aplicada “ciência da história”, mostram a disposição de convocar os seus a dar um passo atrás, mas na perspectiva de vir a dar dois passos adiante mais lá na frente. Sob circunstâncias tão adversas, Dirceu poderá ser levado ao entendimento de que, por gordo que seja, o protagonismo subalterno de Haddad se torna o menor dos sapos que a máquina petista terá de engolir.

Ao se entregar obedientemente depois de ameaçar resistir, Lula dirigiu para o âmbito do Estado toda a potência do que a sociedade via de injusto na condenação sem provas de que ele foi vítima, neutralizando mais uma possibilidade de a crise de legitimação vir a furo, emergência que abriria para o país um período de incerteza auspiciosa: mais uma vez, Lula fez uso dos de baixo enquanto mandava recado para os de cima. Ele preferiu tanger a sociedade para se acomodar à luta de facções, que estão a se reorganizar para disputar as eleições, evento do calendário democrático que lhes permitirá reencenar o ritual da ligação entre o Estado de Direito Autoritário e a democracia, ainda que sem consagrar, por óbvio, um Estado democrático de direito (sob o qual muitos fantasiam que estamos a viver desde o fim da ditadura paisano-militar).

Até onde consigo enxergar, para poder sonhar que a prisão seja uma curta interinidade, Lula não tem saída melhor do que apoiar Ciro, pois sua aposta na luta de facções o tornou refém de um acerto propriamente estatal, que só poderá acontecer se contar com o apoio do presidente da República que sair das eleições de 2018 (pois, como se viu, eventuais indultos de Temer têm tudo para serem barrados pelo STF — cujo protagonismo irá declinar depois das eleições, assim como o do Judiciário em geral). Dentre os candidatos viáveis, Ciro é o único com que Lula poderá contar, mesmo, para conduzir esse arranjo salvador – Haddad como vice é o atrativo indispensável para fazer a solda entre, de um lado, as esperanças dos que ainda supõem que o lulopetismo seja uma vertente contra a desigualdade e, de outro, as ambições de restauração da máquina petista, animada de farisaísmo ante essa mesma desigualdade.

As circunstâncias empurram à aceitação desse arranjo porque a maioria da sociedade brasileira não encontrou outra maneira de sair da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário sem cair nas soluções medonhas de uma ditadura ou de um Estado de direito ainda mais autoritário, ameaças que estão simbolizadas nas candidaturas de Bolsonaro e Alckmin/Doria (daí eu dizer que fomos levados à situação pré-64: naquela altura, a ameaça da desordem era a deposição do presidente legítimo; agora é ou o cancelamento da eleição presidencial, ou coloca-la a serviço de mais autoritarismo, riscos tipo ruptura autoritária que não haviam em 1989, mas eram os do pré-64).

A inércia desorientada da maioria da sociedade é compreensível, pois tendo sido vítima de uma traição tremenda por parte das forças em que depositara suas esperanças (PSDB e PT) — uma traição que para se configurar precisou encenar uma polarização cuja fajutice o arranjo em curso mais uma vez desnuda (pois ele é a versão amputada de uma unidade que teria de ter sido feita há 25 anos contra o que restara da ditadura) –, ela, a maioria da sociedade, sofreu a perda simultânea dos seus líderes (arruinados pela corrupção), e do tabuleiro em que se desenvolvia o jogo (conflagrado numa luta de facções), jogo no qual ela credulamente se engajara, com as variações de intensidade e comprometimento próprias da rotina das democracias eleitorais ancoradas na perniciosa reeleição infinita para o Legislativo.

O Estado de Direito Democrático que almejamos desde as lutas contra a ditadura paisano-militar jamais poderia sair do jogo malsão em que PSDB e PT fizeram uso periódico da democracia eleitoral para simular uma polarização política que desfaziam na convergência de propósitos que reafirmavam na prática diária do exercício faccioso dos poderes institucionais típico dos Estados de direito autoritários, pelo qual promoviam a corrupção e se apoiavam nos dispositivos paisano (p-MDB e PFL) e militar (PM) legados pela ditadura, e sempre em obediência à cláusula pétrea fundamental do Estado de Direito Autoritário: os ricos não podem perder. Os abonos sociais que deram aos pobres foram um simulacro de medidas contra a desigualdade, até porque, além de não virem acompanhados de alteração tributária convergente, tampouco deixaram de ser reforçados em seu papel neutralizador pelas matanças pacificadoras que facções estatais (presidiarias e policiais: outra polarização fajuta) convenientemente insubmissas continuaram a promover contra os pobres, sem qualquer ação contrária efetiva, seja do PT, seja do PSDB.

Há entrecruzamento inconclusivo entre a conflagração das facções estatais e o aturdimento da sociedade. A fragmentação de pré-candidaturas sai dessa fratura, que a eleição em si simulará resolver. Não há projeto em disputa porque as facções estão em luta pela sobrevivência propriamente estatal e a sociedade não tem clareza do que está em disputa no terreno social, econômico e político. Dessa reorganização eleitoral das facções talvez resulte uma fragmentação bem inferior àquela que as pré-candidaturas atuais sugerem, e que chegou a levar a comparações impertinentes com 1989. Enquanto naquela altura a fragmentação resultava da disputa entre projetos alternativos mais ou menos voltados para a consolidação da democracia; agora, porém, a fragmentação resulta da crise de legitimação do Estado de direito saído da diluição daqueles projetos.

Comparada com 1989, a fragmentação de agora é o oposto: antes, ela resultava da busca por corresponder às expectativas da sociedade por uma consolidação democrática; agora ela resulta da conflagração gerada numa crise de legitimação decorrente de que não apenas não se alcançou aquela consolidação,  como os políticos profissionais perderam o solo comum em que se acertavam em práticas daninhas à consolidação democrática, para crescente contrariedade da maioria da sociedade, que sofre desde sempre sob o exercício faccioso dos poderes institucionais.

Não é para menos, afinal, seria estranho que tendo todos os principais agentes da consolidação sucumbido à manutenção da desigualdade e à corrupção correspondente, ainda assim houvesse um Estado democrático de direito – seria como ter condenado o trabalho de engenheiros, pedreiros e empreiteiros e, mesmo assim, atestar que o prédio construído está consolidado para habitação. PT e PSDB foram o Sérgio Naya da consolidação da democracia brasileira – o prédio ruiu e ainda estamos sob a nuvem de poeira que a subsequente implosão engaiolada levantou.

Talvez a dobradinha Ciro-Haddad não se configure. Mas, ainda mais improvável do que ela encarnar uma proposta de transformação é que se forme em torno do honrado Barbosa (a quem essa dobradinha também seria uma resposta) algo mais do que um ajuntamento oportunista para dar sobrevida ao que há de mais acomodatício, embora não imediatamente autoritário, no establishment. Vamos acompanhar e conversar.

Fica o Registro:

– Um artigo na Folha de S.Paulo traz ponto de vista que considero inadequado à compreensão do que se passa. Para o autor, a esquerda estaria perdendo a confiança na democracia por acreditar que foi vítima do golpe de uma elite que não tolera nem mesmo um governo reformista tímido. Crer na relevância disso exige dois erros: primeiro, supor que os líderes do lulopetismo realmente acreditam que estavam a governar segundo um reformismo contrário às elites. Ora, todo lulopetista bem informado sabe que o Mercado resistiu ao impeachment de Dilma a maior parte do tempo, e o golpe foi obra do braço político-profissional oposicionista que também servia ao Mercado, mas que se fez abertamente autônomo ao ver uma oportunidade de voltar a comandar o exercício faccioso dos poderes institucionais no Executivo federal — é que os golpistas apostaram em um rápido acerto posterior, pois não enxergaram a crise de legitimação em que se abismariam. Segundo, o autor ajuda a confundir a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário com a confiança na democracia, afinal, duvidar se vai haver eleições é duvidar do Estado de direito como garantidor do calendário eleitoral (fronteira última de sua relação com a democracia), não da democracia como forma de escolher alternativas para arbitrar conflitos no âmbito da sociedade. As dúvidas que temos sobre o respeito ao calendário eleitoral advém das incertezas da guerra de facções estatais, onde há até insubordinação militar, não das diferenças de interesse existentes na sociedade que estariam a deixar inquietos representantes de projetos opostos.

NÃO HÁ SEMELHANÇA RELEVANTE ENTRE 1989 E 2018

Carlos Novaes, 15 de abril de 2018

Diante da fragmentação de preferências trazida pela nova pesquisa DataFolha, a mídia convencional está repleta de “análises” vendo semelhanças entre as eleições presidenciais de 1989 e de 2018. Nada poderia ser mais errado.

Primeiro, em 1989 o eleitorado foi às urnas na perspectiva de consolidar uma democracia, crente que estava de ter passado a viver sob um Estado democrático de direito. Em 2018 iremos às urnas para nos defendermos da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que tentaram consolidar via corrupção justo aqueles que nos haviam prometido a democracia. O fato de estarmos cada vez mais cientes de que se trata de nos defendermos desse Estado de Direito Autoritário é uma evidência a mais da sua crise de legitimação.

Segundo, em 1989, o grande número de candidatos resultava do embate entre diferentes projetos sobre a democracia que se queria consolidar. Por consistentes ou inconsistentes que fossem (havia para todo gosto), esses projetos traduziam todo o período anterior de engajamento e, por isso, naquela altura a oposição esquerda-direita fazia todo sentido, pois traduzia uma fronteira de fundo, demarcada pela posição diante da desigualdade. Em 2018, a fragmentação resulta da ausência de projetos sobre o que quer que seja e a polarização esquerda-direita é uma anacrônica piada sem graça, até porque não há vertente relevante na luta contra a desigualdade, pelo contrário.

Terceiro, em 1989, a eleição foi solteira, isto é, só estava em disputa o cargo de presidente da República; circunstância que jogou um peso decisivo para que os finalistas fossem duas novidades: Collor e Lula. As máquinas políticas tradicionais não se engajaram, pois elas dependem do esforço interessado dos candidatos a deputado, senador e governador. O p-MDB deixou Ulisses Guimarães a ver navios, por exemplo. Naquele cenário, foram favorecidos, de um lado do espectro político, o candidato que contava com o megafone da Globo, Collor, e, do lado oposto, o candidato que contava com uma burocracia partidária e sindical que não precisava de dinheiro para mobilizar nacionalmente uma militância que, naquela época, trabalhava de graça.

Aquela polarização foi clássica, pois nela estava alojado o sentido que daríamos à nossa luta pela consolidação da democracia, o que nos leva à segunda razão para explicar que os finalistas tenham sido Collor e Lula: o eleitor os escolheu precisamente porque nenhum dos dois estava ligado às forças políticas que nos haviam sido legadas pela ditadura (PFL, PDS, p-MDB e PSDB) – sendo de notar que Brizola foi superado por Lula exatamente porque não contava com uma militância nacional entusiasmada.

Em 2018, estão em disputa todos os cargos eletivos estaduais e federais. As máquinas partidárias profissionais convencionais, agora incluindo a do PT, vão jogar toda a sua força em busca da sobrevivência. A lógica propriamente eleitoral da campanha não tem qualquer semelhança com a de 1989, portanto. Além disso, em razão das traições de PT e PSDB (que, na contramão do esforço da maioria da sociedade, nutriram a volta das forças legadas pela ditadura para sustentarem uma polarização fajuta entre si), que desembocaram nessa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que eles ajudaram a construir, o país regrediu à situação pré-golpe de 1964 e, agora, em razão da cegueira geral para a crise de legitimação do Estado, o eleitorado está sendo empurrado a escolher entre o candidato da ditadura e os do Estado de Direito Autoritário.

Por isso mesmo, temos, de um lado, Bolsonaro, o Collor da vez, sem o megafone da Globo (por enquanto…), mas contando com a rede da mentira (que trabalha de graça como a militância petista em 1989). De outro lado, ainda que com diferenças entre eles, estão todos os presumidos defensores da preservação de uma fantasia, daquilo que não existe, o Estado democrático de direito.

Todos repetem a arenga do respeito à Constituição – qual? Nenhum deles vê nas arbitrariedades e acertos facciosos da Lava Jato, na insubordinação militar, no espraiamento escancarado das milícias, nas manifestações autoritárias e intolerantes que se alastram na Web e no Funk, nas escabrosas disputas internas do Supremo, no espraiamento da corrupção como modo de operar a política até nos pequenos municípios, nas aberrações legais saídas do Congresso, no arbítrio sanguinário da polícia, na crescente insubordinação dos presídios, na gestão ruinosa da coisa pública pelo Executivo, na descrença geral do brasileiro nas instituições, nenhum dos candidatos vê nesse conjunto o sintoma cabal da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário.

Tendo enfiado a cabeça na areia, todos os candidatos repetem o mantra de que as instituições estão funcionando. Alguns com um misto de covardia, oportunismos e descaramento chegam a se calar diante de fatos graves como a insubordinação militar e dizem positiva e inteiramente aceitável qualquer decisão saída da Lava Jato ou do Supremo, como se essas instituições não estivessem atravessadas por preferências facciosas, como se a prática delas pudesse ser tomada por evidência de um Estado democrático de direito em funcionamento, quando é justo o contrário.

Tal como o sobrevivente que só decide enfrentar a realidade depois de procurar entre os escombros de uma catástrofe algo em que apoiar a memória, vagueando entre um braço de sofá, uma roupa ou um brinquedo, sendo levado por esses resíduos à extensão da sua perda; também o Brasil só poderá atravessar 2018 com proveito se entender inútil mariscar entre as ruínas do que imaginou que começara a construir em 1989 — quanto mais procurar semelhanças, mais se abismará no retrocesso.

LULA DOBROU SUA APOSTA NA LUTA DE FACÇÕES

Carlos Novaes, 07 de abril de 2018 — 10:37h

[com acréscimos em Fica o Registro]

A estupidez do TRF-4 e de Moro abriu uma oportunidade para que Lula deixasse de lado a luta de facções e tivesse uma atitude compatível com as contradições da hora presente. Ele ameaçou fazê-lo ao não se entregar como Moro determinara, mas acabou por recuar, tendo até mesmo desistido de se dirigir à sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que recebia as manifestações de apoio que chegaram de Temer, Sarney, Renan & Cia.

Ao se entregar, ao invés de se fazer prender, Lula diluiu em um melancólico gesto de adiamento a “resistência” que esboçara, conferindo à situação um jeitão de infecunda medição de forças entre ele e o juiz paranaense, como se essa disputa já não tivesse sido decidida há tempos. A disputa agora era outra, mas Lula abriu mão de qualquer desafio real à ordem ilegítima e acabou por emprestar legitimidade ao Estado de Direito Autoritário.

Ao abrir mão de reavivar o que resta da sua liderança, Lula mais uma vez fez uso do apoio que tem na sociedade não para ajuda-la a compreender a crise de legitimação de que ela é protagonista insciente, mas para dobrar sua aposta pessoal na luta de facções no âmbito do Estado e, por isso, ontem mesmo tentou escolher Marco Aurélio, ministro de facção “amiga” no Supremo, para julgar seu mais novo pedido de HC (como se o problema ainda fosse esse…). Coerentemente, Lula escolheu ficar no mesmo patamar de Aécio e Temer, que sequer vão poder espernear, pois nos casos deles as provas abundam.

Talvez Lula já tenha se fechado em si mesmo e a escolha dele tenha sido ditada pelo realismo de quem conhece a própria situação melhor do que ninguém, pois embora condenado sem provas no caso do triplex, ele responde a outros processos, sendo que naquele referente ao sítio de Atibaia há sinais de que as provas são consistentes. Enfim, Lula não fez nada que não poderia ter previsto um observador que pensando apenas na situação individual de Lula como líder decaído, tenha razões ou preferências que o levem a desprezar o potencial transformador que podem ter acidentes de percurso como este que nos foi oferecido pela Lava Jato.

Ontem, olhando a mesma situação, o professor Boris Fausto declarou:

“É gravíssimo e lamentável que um ex-presidente seja preso, mas, se ele foi condenado por unanimidade em segunda instância, é necessário que se cumpra [a prisão]”. […] Toda vez que tememos uma explosão social nestes tempos atrapalhados, ela não veio.”

Talvez não seja acidental que um juízo assim seguro sobre a docilidade do nosso povo venha de alguém que despreze o fato de que essa condenação do Lula foi unanimemente decidida sem provas e, por isso mesmo, não enxerga os sinais de que essa condenação espúria se deu no bojo de uma crise de legitimação do Estado.

Na mesma linha de Fausto vai o prof. Rubens Ricúpero:

“Vejo com muita preocupação o destino do sistema político brasileiro. Está cada vez mais disfuncional e nos encaminha para um impasse. […] Se a Constituição, mesmo quando interpretada literalmente, conduz à impunidade, qual é a conclusão? A conclusão é que não vai haver possibilidade de punir. […] Quer dizer, a aplicação da Constituição não torna possível punir em certos casos. É um negócio complicado, uma situação em que o sistema esteja se esgotando.”

Ou seja, mesmo diante da própria constatação de que nem a “interpretação literal da Constituição” resolve, Ricúpero se recusa a enxergar a crise de legitimação do Estado e prefere se refugiar em tornar hipótese algo que já se deu: o “esgotamento do sistema político”. Por isso mesmo, nem passa pela cabeça dele encarar que a benéfica Lava Jato esta a cometer arbitrariedades antidemocráticas. Tudo é tomado em bloco, pois para esse pessoal se trata de defender um inexistente Estado democrático de direito.

Como já deve ter ficado claro para quem acompanha este blog, entendo que o sistema político já se esgotou faz tempo e que esse esgotamento, tal como uma implosão que não deu certo, levou-o a se engaiolar numa guerra de facções que explicitou e agrava uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, Estado este que Fausto e Ricúpero, ao lado de Lula e FHC, ajudaram a construir.

Enquanto eles parecem ansiar por uma solução no âmbito do Estado, estou entre aqueles que põem suas esperanças na sociedade e, por isso mesmo, não abandonei a ideia de que a reorientação de grandes crises pode ter origem em injustiças pontuais, em eventos aparentemente infecundos. Não foi dessa vez.

Fica o Registro:

  • Começam a surgir na imprensa avaliações de especialistas de que a ministra Rosa Weber já não pode ser dada como voto certo na alteração da jurisprudência que consagrou, contra o voto dela, a possibilidade de prisão com base em condenação de segunda instância. Isso não só não me surpreende, como é bem o caso de registrar que a se confirmar essa expectativa, Weber estará indo na direção oposta de Gilmar também no que se refere ao caráter democrático da mudança, juízo que desenvolvi claramente dias atrás, aqui.
  • O UOL traz uma série de manifestações de brazilianistas sobre a situação brasileira. Nada que já não tenhamos lido na lavra dos próprios analistas brasileiros convencionais: pregam “fé nas regras do jogo”, sem levar em conta que são as regras que estão questionadas; insistem que a democracia está firme, quando o que importa é discutir a legitimidade do Estado de Direito Autoritário; e, claro, dizem tudo isso recorrendo a safa-onças como “é possível argumentar que a Justiça se concentrou sobre Lula, entretanto, e que a acusação talvez não fosse suficiente para prender um ex-presidente enquanto há outros corruptos envolvidos em desvios maiores que continuam soltos”! Passar olimpicamente sobre esse “pequeno detalhe” não é algo que destoe do que temos lido em liberais brasileiros, não?
  • 12:13 — Finalmente, depois de acertar que vai se entregar, Lula resolveu falar e, claro, faz um discurso eleitoral sem maior interesse. Em sua melancolia, parece a cerimônia fúnebre de um sonho antigo.

QUE LULA NÃO REPITA JANGO

Carlos Novaes, 06 de abril de 2018 — 11:53h

A crise brasileira atual ultrapassou aquela de 1964, pois em 1964 não havia ilegitimidade do Estado de direito, e agora, há. Naquela altura, o que houve foi a insubordinação de parte dos militares, com apoio em setores cujos interesses reforçadores da desigualdade estavam sendo contrariados pelo governo legítimo. Agora, o que há é a ilegitimidade flagrante do Estado de Direito Autoritário, que foi construído à sombra da polarização fajuta entre PT e PSDB, partidos traidores que abandonaram a luta contra a desigualdade e se acomodaram a uma gangorra eleitoral que nunca nos levaria a um Estado de Direito Democrático.

A crise do Real aliada à crise de representação arrastou o establishment congressual-partidário ao impeachment. A junção dessa manobra desastrada com a Lava Jato provocou uma guerra de facções estatais que acabou por arrastar para dentro do Estado em disputa o exercício faccioso dos poderes institucionais que desde sempre o Estado de Direito Autoritário — voltado à manutenção da desigualdade — infligiu contra a maioria da sociedade, notadamente sobre os mais pobres, mantidos em permanente regime de terror pelos dispositivos militares que nos foram legados pela ditadura, especialmente degenerados em sua guerra particular contra a ação contrária das facções não menos estatais do crime organizado nos presídios, tudo sob a inação específica de PT e PSDB.

Nessa guerra de facções estatais, o PT tem sido o maior perdedor porque, de um lado, foi contra ele que de início se unificaram as outras facções, exceto a dos presídios, que corre em faixa própria (mas não continuará a fazê-lo se a crise de legitimação vier a furo – quando digo “vir a furo” quero dizer aflorar à consciência e se tornar um motivo para a ação civil em desobediência); de outro lado, o PT tem perdido porque sua evidente condição de facção estatal que se locupletou não só afastou dele setores importantes da opinião pública democrática, como vem inibindo qualquer alinhamento mais explícito mesmo daqueles que ainda conservam uma preferência pelo partido (em suma, em razão dos malfeitos, mesmo para muitos petistas é difícil ir à rua defendê-lo).

É nesse caldeirão que se dá o processo contra Lula no caso do triplex, um processo que deixa claro que o papel benéfico da Lava Jato não se dá sem contradições, pois ela não é uma operação, mas um teatro de operações, como já expliquei, faz tempo, aqui. Nos concentremos em duas contradições centrais: primeiro, Moro condenou Lula sem provas, com base em convicções evangélicas, muito adequadas para quem tem fé, mas impertinentes para enviar alguém à cadeia; segundo, o TRF-4 e o mesmo Moro se deixam, agora, engolir por suas preferências políticas e atropelam a devido processo legal para dar andamento célere a uma prisão que já resultara daquela decisão arbitrária. Considerando que a vítima dessas escolhas antidemocráticas é o maior líder político de massas da história do país, não é de espantar que tudo possa desembocar na definitiva evidência da ilegitimidade do poder do Estado no Brasil.

Parece fundamental ressaltar que Moro não se limitou a meramente dar seguimento à escolha arbitrária que o TRF-4 fez ontem. Não. O juiz do Paraná foi além, e estupidamente acrescentou que os aspectos do trâmite legal que estavam a ser arbitrariamente atropelados são “patologias”. A palavra é muito reveladora, pois, como diz o velho ditado, a boca fala do que o coração está cheio. Note bem, leitor: há um clima de insânia no ar, como venho dizendo há tempos. Essa simples palavra empurrada à boca de Moro pela força das circunstâncias nos ajuda a entender que ao partirem para o quebra-quebra legal, o TRF-4 e Moro estão a dar vazão a sentimentos protofascistas que estão nas ruas e que, sem o saber, explicitam a crise de legitimação do Estado nessa sua reiterada reivindicação nas redes sociais pelo atropelo, contra Lula, do devido processo legal.

A palavra de Moro estendeu a primeira linha de transmissão explícita entre a energia presente na sociedade e a guerra de facções no âmbito do Estado. Como energia há por toda parte e em todos os sentidos e direções, sendo as linhas de transmissão aquilo que falta (para bem e para mal) para que as máquinas se movam, pode ter vindo da Lava Jato original o impulso que faltava para que finalmente venha a furo a crise de legitimação que a própria Lava Jato tem o mérito de ter ajudado a provocar, qualquer que tenham sido e venham sendo as intensões de seus facciosos protagonistas.

Ontem à noite, depois de refletir um pouco sobre a estúpida decisão da Lava Jato, resolvi acrescentar um parágrafo ao texto que escrevera sobre a derrota de Lula no STF, pois ao contrário do que naquele momento pude ler na mídia, não vi sentido algum em o Lula simplesmente se entregar como mandou Moro, pois seria uma obediência que emprestaria legitimidade ao Estado de Direito Autoritário que está em crise de legitimação. Felizmente, acabo de ler no UOL que Lula resolveu não repetir Jango, que em 1964 estendeu o pescoço como uma ovelha.

Bem sei, leitor, que Lula tem responsabilidade política em tudo o que de ruim está a acontecer, assim como enxergo, claro, que Temer também está alinhado com ele nesse momento. Ora, a nenhum de nós é dado escolher as condições em que luta contra a desigualdade. Essa disputa por Lula é parte da ambivalente condição simbólica dele na vida brasileira — neste momento, essa simbologia está sendo disputada pelo que tem de pior e de melhor: de um lado, o Lula do Estado faccioso, umbilicalmente ligado à guerra de facções estatais, servindo de biombo para aliados e adversários eleitorais de ontem e de hoje; de outro lado, o Lula da sociedade plural, das lutas de massa contra a desigualdade. Por isso, Lula pode se fazer imenso precisamente porque pode se tornar a resultante de forças em combate, e mesmo tendo errado muito, e exatamente por ter errado (vide o apoio de Temer & Cia), ainda pode vir a ser determinante como símbolo em torno do qual a sociedade brasileira vai fazer suas escolhas.

DESORIENTAÇÃO FAVORECE O PROTOFASCISMO

Carlos Novaes, 05 de abril de 2018

[com acréscimo às 22:56]

Em longa sessão que varou a madrugada de ontem para hoje, o Supremo Tribunal Federal-STF pôs a nu, minuto a minuto, a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Não pode haver expressão maior de crise num Estado de direito do que uma controvérsia aberta acerca de direito constitucional básico ser driblada, de forma facciosa e precária, em favor de uma interpretação da Constituição que, a um só tempo, aponta para um Estado de Direito Democrático, mas traz embutida a plausibilidade da sua reversão no futuro próximo, reforçando seus adversários.

Deixem-me tentar explicar o parágrafo acima:

O direito constitucional básico em questão é o direito à presunção de inocência. O que está a dividir o STF é, em suma, se este direito está sendo ferido quando se permite mandar à prisão réu condenado que ainda pode recorrer a instâncias superiores. No caso específico, a discussão se deu sobre o caso de Lula, condenado facciosamente no caso do triplex em primeira e em segunda instâncias.

Talvez a análise fique mais clara se eu disser de cara a minha posição sobre as duas coisas:

  1. Sobre a matéria de fundo: sou favorável à prisão com base em condenação de segunda instância, única maneira de impedir que os criminosos que têm dinheiro escapem da prisão pelo uso infindável dos recursos legais disponíveis. Reconheço que a Constituição atual parece vedar essa modalidade de prisão, mas entendo que numa crise de legitimação a própria Constituição se faz terreno de disputa.
  2. Sobre a prisão de Lula: embora tenha claro que Lula sabia e participou da corrupção em seus governos, entendo que no caso do triplex ele foi condenado sem provas, numa operação facciosa que reforça o Estado de Direito Autoritário. Apoiá-la é contraproducente para quem almeja um Estado de Direito Democrático.

Nesta madrugada e nas horas que a antecederam, esses conflitos avançaram mais um anel no vórtice da crise de legitimação e, portanto, tornaram-na ainda mais clara e aguda, pois nesse anel mais estreito se adensou o que já era ambíguo, irresolvido e incerto. Dividido na matéria em duas facções, isto é, em duas formações provisórias e circunstanciais, que se juntam por afinidade e propósitos comuns temporários, o Supremo nos ofereceu uma narrativa do que se passa no Estado de Direito Autoritário brasileiro na forma de um complexo reality show (atenção, leitor: estou a falar do que se passa no Estado, não na sociedade).

De um lado, temos a facção que reuniu os transformadores, dos quais a aliada mais incerta é a ministra Rosa Weber, sendo o aliado mais circunstancial Alexandre de Morais. Do outro lado está a facção do establishment, da qual o membro mais circunstancial é Toffoli. Weber é aliada incerta porque diz ter sobre a matéria de fundo entendimento doutrinário contrário aos outros membros de sua facção, não sendo certo o que fará na hora em que a questão voltar a voto em um futuro próximo; Morais é aliado circunstancial porque sua filiação extra-Tribunal é protofascista e nada garante para onde ele penderá num futuro mais distante e/ou se entre os ameaçados de prisão vier a estar um Alckmin; Toffoli é membro circunstancial porque na sua filiação extra-Tribunal ele é lulopetista, o que o faz adversário dos outros membros da sua facção atual no plano da disputa mais geral pela hegemonia no poder de Estado hoje sem hegemonia.

O embate acima, embora tenha se revelado central, é apenas parte da disputa mais geral que está a se dar entre as facções estatais. Se é verdade que os homens fazem a sua história sob condições que não puderam escolher, torna-se ainda mais difícil manejar os cordões quando há conflagração de interesses e não se tem uma visão do conjunto, que permitiria ajuizar direito o sentido de cada escolha nova que se está a fazer. É em razão dessa cegueira para ter uma visão de conjunto que os atores exibem desorientações várias nas escolhas que fazem a cada laçada da espiral da crise.

A cegueira principal é não enxergar a crise de legitimação do Estado de Direito. É essa cegueira que levou os transformadores (Barroso, Fachin, Cármen Lúcia e, de certo modo, Fux) a não separarem os dois aspectos da matéria. Valendo-se do poder de presidente do Supremo, Cármen Lúcia, numa manobra facciosa, arranjou as coisas de modo a evitar voltar a deliberar sobre a matéria de fundo, para a qual teme já não ter maioria afinada com a transformação que pretende para o direto constitucional brasileiro — uma vez que Gilmar mudou de lado e Rosa Weber, embora venha reiterando a nova jurisprudência na prática, não parece, mesmo, ter mudado seu entendimento doutrinário sobre a matéria.

O problema é que ao conduzir as coisas desse modo os transformadores não se deram conta de que podem ter trocado uma vitória de Pirro por um reforço das facções opostas à transformação que pretendem. A vitória pode ter sido de Pirro porque mesmo que Cármen Lúcia consiga continuar a obstar uma nova deliberação da matéria de fundo, é certo que ela voltará a ser discutida quando Toffoli assumir a presidência do Supremo. Mais lá adiante, depois da eleição, sob nova presidência na República e no Supremo, nada garante que ainda se poderá contar com o voto de Morais e, ademais, poderá ser tarde para arriscar contar com uma alteração na preferência de Weber. O reforço das facções opostas à transformação se deu porque a confirmação dessa prisão de Lula chancela o que há de anti-democrático na Lava Jato e favorece o avanço eleitoral das facções pró-establishment.

Esse avanço eleitoral, aliás, embora se dê contra o lulopetismo, não garante que Lula venha a pagar pelos malfeitos que protagonizou, afinal, a polarização entre eles é para inglês ver e numa reacomodação política entre as facções estatais que conserve o Estado de Direito Autoritário haverá esforço comum para que nenhum deles fique na cadeia, como já deixam claro as movimentações de hoje no Executivo-gestão e no Legislativo-representação. Exemplo em miniatura dessa reacomodação propriamente estatal é justamente a facção que perdeu por 6×5 nessa madrugada.

Olhada dessa perspectiva, a situação mostra todo o absurdo de defender a Constituição atual em favor de Lula, como fazem a autointitulada esquerda e uma parte dos liberais, todos travestidos de defensores de um suposto Estado democrático de direito (e isso com o comandante do Exército dando voz, impunemente, ao golpismo existente em suas fileiras!), que se recusam a enxergar a guerra de facções e a crise de legitimação respectiva. Essa autointitulada esquerda se entrincheirou contra uma transformação jurídica benéfica na luta contra a desigualdade para insistir na defesa política de um líder que traiu as bandeiras e princípios que simulou defender, a começar pelo combate à desigualdade. Ali aonde não chegou a má fé interessada, a desorientação é total.

O fato de a decisão de ontem ter contemplado a facção militar já insurgida não deve se prestar a aumentar a desorientação. O apoio desses militares não é ao ímpeto transformador da Constituição que orienta os transformadores. Não. O que eles apoiam é a prisão de Lula, um personagem que eles preferem enxergar como representante de uma esquerda só existente na cabeça deles, obnubilação que reforça a mistificação geral que preside o aturdimento, a revolta e o recalque distribuídos pela maioria da sociedade – situação que favorece o avanço do protofascismo, a vertente política que sempre se beneficia do afloramento da estupidez, pois ser estúpido não requer, mesmo, nenhum esforço.

Acréscimo às 22:56:

  • A célere deliberação da prisão de Lula pelo TRF-4, assim como o pronto atendimento de Moro, escancaram o que há de anti-democrático na atuação facciosa dessas instâncias da Lava Jato. Lula está sendo tratado de um modo que favorece sua condição de líder a ser defendido contra uma ilegalidade perpetrada por um Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação. Uma prisão de Lula assim provocativa e traumática pode trazer a furo a falta de legitimidade do Estado e, nesse caso, não há porque descartar um abrangente movimento de alinhamento com Lula se ele resolver resistir à consumação dessa arbitrariedade, ainda que não se deva esquecer o papel que o próprio Lula desempenhou na construção desse estado de coisas.

LUTA DE FACÇÕES ENGOLE O EXÉRCITO

O recado do comandante: não aceitamos nada diferente da prisão de Lula

Carlos Novaes, 04 de abril de 2018

Tomado por uma crise de legitimação deixada a si mesma por uma sociedade inerte, o Estado de Direito Autoritário brasileiro, que vem há tempos em marcha regressiva batida na direção do seu ponto de origem, é agora devolvido (pela manifestação inaceitável, hostil à democracia, do comandante do Exército) à situação institucional imediatamente anterior à instalação da ditadura à qual sucedeu – estamos a um passo de reviver os acontecimentos de exatos 54 anos atrás, com o agravante de que dessa vez o presidente da República, ao contrário de João Goulart, é, ele próprio, um golpista, de modo que a sociedade está condenada a agir por si mesma se quiser preservar as franquias democráticas ainda subsistentes.

Dizendo o mesmo com aspectos adicionais: depois de tentarem fugir da crise trazendo de volta um arranjo governamental protagonizado pelos dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM) que alegavam ter deixado para trás através de um Estado democrático de direito (!), as facções que se adonaram do Estado de direito no Brasil nada mais têm feito na sua conflagração interna (interna ao Estado) do que aprofundarem a crise de legitimação do mesmo Estado cujo controle disputam. E quem disputa são facções transversais aos três poderes e às três esferas da União, incluindo as polícias a eles subordinadas (e, sobretudo, insubordinadas).

Não há que buscar intensões na manifestação do general insubordinado. Tal como já disse aqui, não se trata de ficar a tentar adivinhar o que eles conspiram, mas tirar consequências da relação entre o que eles fazem, são chamados a fazer pelos superiores e, então, passam a querer fazer. Há poucos dias, sentindo o cerco da lei se fechar à volta de si, Temer começou — como todo mandatário acossado pela infausta convergência da ilegitimidade da própria investidura com a condição de criminoso contra a coisa pública — a buscar apoio distribuindo acenos para todas as facções em luta: acenou mais uma vez para Lula, aludindo ao embargo à sua candidatura, e acenou aos militares golpistas rememorando um suposto apoio popular ao golpe de 1964, com o qual, sem dúvida, tem afinidades.

Posto na corda-bamba, Temer tem de engolir a insubordinação de seu comandante militar, a qual gerou um efeito em cascata, pois outros generais da ativa viram nela uma chancela prévia para as suas próprias insubordinações, sendo de registar os termos lamentáveis, cafajestes até, em que se deram algumas dessas insubordinações – houve um que bradou: “Aço!!”  Eis uma reação saída não de uma conspiração, ou de uma intensão, mas do encorajamento progressivo que a própria prática facciosa suscita.

O silêncio da maioria dos pré-candidatos à presidência da República diz muito sobre as “lideranças” com que a sociedade brasileira pode contar nesse momento agudo da sua história. Atenção, senhores aspirantes à presidência, o que o general quis dizer foi: não aceitamos nada diferente da prisão de Lula. E tratou de ligar à democracia essa afronta sua à própria democracia, quando não é a democracia que está em jogo no caso de Lula, mas o Estado de direito.

Fica o Registro:

  • No momento em que escrevo (15:10), Gilmar Mendes está a proferir seu voto na sessão que julga a situação de Lula. Acabo de ouvir os apartes de Marco Aurélio, Cármen Lúcia e Lewandowski, nos quais fica claro que o Supremo está reunido sem ter definido se o julgamento trata em separado do HC do Lula ou embola a decisão sobre a controvérsia geral acerca da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Gilmar lidera o entendimento de que a decisão é uma só, e vale para os dois aspectos da questão. Vamos ver como isso termina.
  • Gilmar está a reclamar da imprensa “opressiva e chantagista”, o que não passa de um ataque faccioso ao que resta de franquia democrática na vida política brasileira. Imerso numa luta de facções estatais, acossado por uma crise de legitimação, Gilmar pretende fazer que a opinião pública veja na liberdade de imprensa ainda subsistente um problema!!
  • Acréscimo:
  • Agora ouço o voto do ministro Barroso (18:05) e estou em inteiro acordo com ele no mérito da matéria de fundo. Brilhante. Infelizmente, o pendor republicano dele e a forma jurídica em que a matéria está a ser discutida o levam a desconsiderar, no caso de Lula, precisamente o que importa aqui: no caso do triplex, Lula foi condenado sem provas. Barroso chegou a aludir a isso quando ressalvou que não está a discutir o mérito da decisão original da primeira instância, reiterada na segunda.
  • Novo acréscimo (18:30):
  • No mérito da matéria de fundo, ao apoiar a possibilidade de prisão com base em condenação de segunda instância se está a favorecer a democracia que queremos, pois esta é uma medida que aponta para a Justiça do Estado de Direito Democrático, sanando a brecha existente hoje para os privilegiados. Por outro lado, na discussão do HC de Lula, permitir sua prisão é uma decisão própria do Estado de Direito Autoritário, que o condenou facciosamente em primeira e segunda instâncias.
  • Novo acréscimo (19:34):
  • A ministra Rosa Weber deixou de lado a matéria de fundo, considerando-a vencida. Ou seja, ela afastou do seu voto qualquer contestação à controvertida jurisprudência atual, embora tenha voltado a declarar que discorda dela. Na prática, ela reiterou seu formalismo e declarou obediência à atual jurisprudência. Ao estender para o caso do HC de Lula essa sua obediência à “colegialidade”, a ministra votou contra o HC do ex-presidente, sem considerar o caráter faccioso da condenação dele.
  • Novo acréscimo (22:23):
  • Tendo ficado sem acesso à transmissão do UOL por excesso de demanda, não pude acompanhar os votos de Fux, Toffoli e Lawandowski. Como quer que tenham argumentado os dois últimos, seus votos em favor de Lula retratam a preferência deles na matéria de fundo: querem derrubar a jurisprudência sobre a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Esses votos, assim como o de Gilmar e aqueles que, por certo, serão proferidos por Marco Aurélio e Celso de Mello, iluminam com alguma ironia a conexão entre a crise de legitimação do Estado e o destino de Lula: sobrou a ele apoiar-se em membros de facções voltadas à manutenção do status quo, e isso não porque reconhecem o facciosismo da condenação dele no processo do triplex, mas porque enxergam que essa prisão torna mais difícil a vida dos que já estão presos e dos que ainda poderão se-lo. Em contrapartida, a facção republicana se manteve firme no apoio à nova jurisprudência, mas em razão de circunstâncias várias acabou, ao contrário do que eu supunha, por negar ao Lula qualquer voto favorável a um HC que o protegeria da prisão por uma condenação sem provas. Agora só resta esperar por Cármen Lúcia, a quem caberá desempatar a votação. A julgar pela coesão apontada pelos outros, é improvável que ela vote em favor de Lula, como cheguei a supor, pois agora esse voto a deixaria sozinha. Dentro de pouco, saberemos.
  • Novo acréscimo (00:28):
  • Como esperado, a ministra Cármen Lúcia, defensora da jurisprudência que permite a prisão com base em decisão em segunda instância, acaba de votar contra o HC de Lula, voto que consagra a vitória dos favoráveis à prisão do ex-presidente com base na condenação sem provas, facciosa, no caso do triplex. Desse modo, a afirmação benéfica de um princípio legal fundamental para a consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático — ou seja, o princípio que estabelece como possível o início do cumprimento da pena antes de esgotados todos os recursos às instâncias superiores — , se dá numa circunstância em que esta decisão acaba por revestir da constitucionalidade precária de um Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação uma decisão facciosa arranjada contra destacado líder de uma facção ora vencida, cujas responsabilidades na construção das circunstâncias que agora o atingem de forma tão dura são diretas.

SOBRE MINHA CRENÇA NO VOTO DA MINISTRA ROSA WEBER

Carlos Novaes, 02 de abril de 2018

Nos parágrafos finais de um artigo publicado há dois dias, apresentei o entendimento de que o voto da ministra Rosa Weber dará maioria à confirmação da jurisprudência do STF que estabeleceu a possibilidade de prisão contra condenado desde a segunda instância. A indagação de pessoas próximas sobre como cheguei a essa hipótese sobre o voto da ministra me leva a escrever o que se segue.

Diante das pressões para a revisão da decisão sobre prisão com base em condenação em segunda instância, a ministra Cármen Lúcia, uma formalista, foi sempre ao ponto quando insistiu sobre não haver razão para que o Supremo reveja jurisprudência tão recente. A meu ver, o caráter recente da nova jurisprudência tem, aqui, dois sentidos: primeiro, ela é recente na forma, ou seja, não há nenhuma alteração no ordenamento jurídico ou nos costumes que justifique uma reavaliação da adoção do novo entendimento pela mesma geração do STF; segundo, ela é recente na prática, pois seu caráter oportuno foi confirmado de pronto, ao provocar consistente mudança para melhor na distribuição da justiça (para contrariedade extrema da maioria dos advogados dos ricos, que vivem do dinheiro arrancado aos clientes para custear as intermináveis batalhas dos recursos).

A ministra Rosa Weber tem se mostrado ainda mais formalista do que Cármen Lúcia, especialmente nessa matéria. Afinal, depois de ter sido derrotada na votação que instituiu a nova jurisprudência, Weber passou a decidir segundo ela, confirmando-a em nada menos de 57 das 58 decisões em que foi levada a se debruçar sobre a matéria.

Quem imagina que a ministra tem seguido a jurisprudência contra sua “própria consciência” e, agora, na nova votação, irá à desforra, está a supor algo que entendo duplamente improvável: primeiro, porque para que se verificasse essa suposição teria de não haver vínculo entre prática judicante reiterada e consciência, isto é, teria de ser provável que as 58 decisões da ministra, que foram uma empenhada confirmação do novo entendimento, não tivessem nenhum papel na formação do juízo de Weber sobre a matéria de fundo, um juízo que é plástico no transcurso do tempo e, no caso, não é senão uma consciência sobre como a justiça deve ser feita. Segundo, e também em razão do que se viu primeiro, é improvável que Weber vá a essa esdrúxula desforra porque, sendo uma formalista, a ministra não deixa de ver quão danosa e arbitrária seria essa alteração em jurisprudência tão recente.

A confirmação da ideia de que o mundo real faz a consciência também pode vir das preferências de personagem situado do lado oposto de Rosa Weber — e oposto tanto no que se refere à matéria quanto no que se refere à austeridade litúrgica com que encara o próprio papel que desempenha no Supremo: não teria Gilmar Mendes mudado seu voto “jurisprudencial” precisamente porque a realidade adversa vivida pelos seus está a leva-lo a reconsiderar o voto que antes proferiu em favor da prisão em segunda instância?

Quanto aos votos em favor de um HC para Lula, imagino que ele os alcançará por razões facciosas num espectro amplo da luta de facções,  razões que vão desde a tendência do establishment ao máximo de acomodação possível; passam pelo fato notório de que a condenação no caso do triplex se deu sem provas; incluem a ameaça de que prender Lula torna mais fácil prender outros políticos implicados na Lava Jato; e chegam à aposta na hipótese de que uma prisão assim facciosa poderia gerar uma convulsão social compatível com a desinformação reinante (e aposta porque, é verdade, também é válida a hipótese de uma convulsão em razão da decisão oposta).

 

GUERRA DE FACÇÕES, TRIBUNAL E TIROS

Carlos Novaes, 31 de março de 2018

Se a democracia se consolida em uma forma estatal denominada “Estado democrático de direito”, qual é a forma estatal das democracias não consolidadas?

Sustento que as democracias não consolidadas ganham forma estatal em um Estado de Direito Autoritário. Nele, diferentemente do Estado de Direito Democrático, a forma do direito é instável enquanto norma e arbitrária enquanto prática, sendo que os graus de instabilidade e arbitrariedade variam segundo o atrito entre facções pela primazia no exercício faccioso dos poderes institucionais em busca de poder para fazer dinheiro. Ou seja, o caráter não consolidado da democracia fala mesmo é do Estado, das tensões e fissuras provocadas nele pelo atrito das ambições; não exatamente da sociedade, da vivacidade das suas diferenças de quinhão e opinião.

A um Estado de Direito Autoritário corresponde, necessariamente, algum grau de democracia na vida política. Esse caráter necessário de alguma democracia deriva da preferência da sociedade pela democracia, uma preferência queembora não tenha se mostrado informada e determinada a ponto de levar a ordem político-institucional a se consolidar numa democracia, ganhando a forma de um Estado de Direito Democráticosubsiste na maioria da sociedade como aspiração negligente. Logo, para ser de direito um Estado tem de agir de modo a levar a sociedade a acreditar que está a viver um processo de consolidação da democracia, não de negação dela. No curso do tempo, essa crença será confirmada ou fraudada, pois se trata de um jogo de forças.

Naturalmente, as forças em presença têm grau variado de percepção acerca da complexidade da situação em que estão metidas e, por isso, o resultado de suas ações por vezes não só não é o que foi buscado por elas no nível das metas miúdas como também ganha no plano mais geral sentido diferente do, e até oposto ao, que elas teriam preferido se pudessem tê-lo previsto (ou teriam escolhido, se estivessem em condições materiais e, sobretudo, subjetivas, de fazê-lo). Como é da própria natureza da situação impedir uma conspiração totalizante, a normalidade das coisas vai depender de que as contradições da ordem social não sejam de monta a impedir uma calibrada arbitragem das ambições por parte dos próprios ambiciosos (justamente o que tem faltado às facções estatais do Brasil pelo menos desde o processo do impeachment de Dilma).

É precisamente porque o Estado de Direito Autoritário vive entre a confirmação e a fraude da democracia que sua legitimidade é precária: ele é legítimo enquanto nutre, na prática, a crença da maioria da sociedade de que se caminha no rumo da democracia; ele passa a ilegítimo quando sua prática é identificada pela maioria da sociedade como oposta à democracia. Na passagem de uma situação à outra se instala a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário (que é o que entendo estar a acontecer no Brasil).

Instalada a crise de legitimação, ela, por longa que se faça, acabará por ter de se resolver por uma de três vias: (a) ou se caminha para a ilegitimidade pura e simples, obtendo à força um novo arranjo entre as facções estatais vitoriosas, agora sem Estado de direito; (b) ou as facções estatais vitoriosas se reacomodam em um relançamento do Estado de Direito Autoritário, necessariamente mais autoritário do que o anterior; (c) ou o que ainda há de democracia se firma como alternativa preferida, com a derrota total ou relativa de cada uma das facções no transcurso do tempo que se fizer necessário para se alcançar um Estado de Direito Democrático.

Tal como em ocasião anterior, me parece instrutivo traçar uma comparação entre a Rússia e o Brasil.

A Rússia é um Estado de Direito Autoritário no qual as contradições da ordem social não estão a ameaçar a normalidade do mando faccioso e, assim, o Estado russo desfruta de toda a legitimidade possível em situações assim. Com mais de 80% de aprovação na opinião pública e com maioria quase pétrea no Legislativo, Putin é, a um só tempo, representante e símbolo: de um lado, ele representa para as facções do Estado de direito da Rússia um ponto sólido de arbitragem calibrada das próprias ambições delas; de outro lado, ele simboliza para a maioria da sociedade russa o que ela entende como o ideal a que poderia realisticamente aspirar transcorridos esses quase trinta anos desde a queda do muro de Berlin: um Estado de direito que provê ordem, não embarga alguma prosperidade e mantém acesa a chama de sonhos de grandeza ancestralmente acalentados.

O Brasil é um Estado de Direito Autoritário no qual as contradições da ordem social, vetorizadas na desigualdade, levaram à conflagração das facções estatais e, assim, se explicitou o caráter antidemocrático do seu mando, o que desencadeou uma crise de legitimação do Estado brasileiro. Por isso mesmo, com seus mais de 80% de desaprovação na opinião pública, rendido às chantagens do Legislativo e dependente de parceiros facciosos no STF, Temer é o exato oposto de Putin: de um lado, Temer representa, quando muito, um ponto fugaz de apoio para as ambições de quem logrou se alojar no palácio, sendo visto como inimigo por todas as outras facções, que estão ora mais ora menos insurgidas contra ele; de outro lado, ele simboliza para a maioria da sociedade toda a derrota que lhe foi imposta no curso desses quase trinta anos decorridos desde a promulgação da Constituição de 1988: a Constituição foi rasgada pela luta de facções, a desordem estatal só faz piorar, a desigualdade mostra todo seu potencial regressivo e ninguém crê que a ordem atual aponte para um futuro longínquo compensador dos sacrifícios vividos no passado ou no presente.

Dado o caráter autoritário dos Estados de direito da Rússia e do Brasil — e a despeito da grande diferença apontada acima na situação político-institucional dos dois países na hora presente –, a sociedade russa e a sociedade brasileira vivem a mesma angústia, fazendo a pergunta típica das sociedades que não fizeram das franquias democráticas um meio de consolidar a democracia: o que virá depois? Na Rússia, o ainda organizado caráter subterrâneo da luta de facções mantém incerta a sucessão de Putin, por isso mesmo visto desesperadamente pela maioria como insubstituível; no Brasil, a desordem já aberta trazida pela conflagração das facções em guerra tornou incerta a sucessão de Temer, a quem a maioria quer desesperadamente ver pelas costas.

Portanto, alcançar uma saída para o Brasil na figura de um homem forte seria, quando muito (se tudo corresse muito bem para quem pensa assim), ficar com a mesma angústia e trocar um desespero por outro ou, como é muito mais provável, ter como resultado uma situação que não só nos afastará ainda mais da consolidação democrática como nos levaria ao risco de perder até mesmo o Estado de direito enquanto tal. Dessa perspectiva, nossa tarefa não é, ainda, identificar um nome, mas encontrar um propósito comum pelo qual lutar e o método que lhe corresponda. A precipitação por um nome vai nos levar a más escolhas.

Lula

Lula é um símbolo esgotado, uma liderança exaurida, mas apoiado na falta de lucidez generalizada, que impede a maioria da sociedade de escolher um rumo novo a tomar, ele conseguiu transformar seus problemas com a lei num problema para o país. Lula se tornou definitivamente uma rolha que impede o surgimento do novo.

Tenho claro que os problemas de Lula com a lei decorrem também da aplicação facciosa das leis: no caso do tríplex Lula foi condenado sem provas. Entretanto, não é de hoje que estou convencido de que Lula comandou, participou e foi leniente com a roubalheira que se deu no curso de seus governos. Convicções não são suficientes para que se mande alguém para a cadeia; mas são suficientes para que se dê politicamente as costas a alguém – esta é, em última instância, a diferença entre a decisão judicial (que só  pode ser tomada no âmbito do Estado) e a opinião pública (que se exerce no âmbito da sociedade).

Ao se deixar amarrar politicamente à situação legal de Lula, a autointitulada esquerda brasileira que não é petista, e mesmo aquela parte do petismo não comprometida com os malfeitos, perdeu qualquer possibilidade de fazer um diagnóstico independente da crise e, com base nele, apontar um rumo alternativo para o país. Ao dar a si mesma um papel subalterno no curso da crise, essa autointitulada esquerda deixou aberto o campo em que o protofascismo vem se alastrando.

É próprio de uma crise de legitimação do Estado que cada um se sinta fraudado a cada vez que o Estado se inclina numa direção diferente da que o observador preferiria. Para quem foi contrariado, toda decisão pública é recebida como uma ofensa pessoal. Mas se não há nenhuma força política suficientemente independente para esclarecer que a decisão foi tomada não exatamente pelo Estado, mas por uma das suas facções, à desordem no Estado se soma a confusão desorientadora na sociedade, terreno ideal para soluções de força.

Numa situação assim, reunir espírito aberto com a busca do bem comum requer uma obstinada recusa ao cinismo, combinada com a disposição inquebrantável de buscar formas políticas novas, pois se alinhar com qualquer das forças que nos levaram a essa crise é uma forma de cinismo.

Bolsonaro

Quem repudia a liderança de Lula e escolhe Bolsonaro não está optando por uma liderança contra outra. Quem escolhe Bolsonaro está a repudiar também a ideia de liderança.

Bolsonaro é sintoma de um fenômeno perverso gerado pela crise de legitimação: ao invés de as massas servirem de marionete para um candidato, elas estão a produzir sua própria marionete na forma de um candidato – eis um fenômeno tão novo quanto ameaçador. Não à toa, portanto, Bolsonaro é o campeão das redes sociais: desde a solidão de seus cubículos com câmera e conexão à internet, lá no mais privado dos mundos privados, longe da esfera pública, mas em rede, cada um de seus adeptos sente que tem o boneco nas mãos. Daí se alastra, na forma de fenômeno de massas, a identificação visceral com ele, uma identificação que não vem propriamente do que ele representa ou, muito menos, do que ele propõe: a mediação e a troca são irrelevantes no caso de Bolsonaro.

A identificação individual (massa feita EU) se fundamenta primordialmente na ilusão de cada um acerca do poder que detém por estar a manejar os cordões do boneco – daí ser muito difícil convencer os adeptos de Bolsonaro mediante argumentação. Eles só serão demovidos por uma iluminação imprevista; do contrário, terão de ser derrotados ou por uma das forças oponentes, ou pela realidade adversa desencadeada pela sua própria vitória.

O fato de nessa altura da crise de legitimação a adesão a Bolsonaro estar a crescer não resulta da força dele em se contrapor à crise. Essa adesão resulta da inépcia dele diante da crise, uma inépcia que a massa compartilha, impotente que se sente. Bolsonaro é a marionete estridente dos que se sentem impotentes. Ele não oferece resistência alguma aos sentimentos mais bestiais, que são justamente os mais simples, os mais fáceis de a massa-EU mobilizar em si mesma, sem precisar fazer o engajamento cognitivo que uma escolha pensada para sair da crise requer – toda elaboração, toda mediação, toda ponderação são vividas como adversárias, coisa de “comunista”. Daí a enorme e mentirosa reação deles à execução da Marielle, um crime que abriu uma janela que eles correram para fechar porque a luz iluminou a cena.

É um erro enxergar qualquer familiaridade simbólica entre os tiros que executaram Marielle e os disparos que atingiram a caravana de Lula. Marielle foi vítima de uma guerra entre facções estatais que estão dispostas a impor à sociedade todo sacrifício que se fizer necessário à restauração de um  equilíbrio de mando no âmbito do Estado. Morta, Marielle simboliza a potência ainda adormecida da sociedade brasileira diante da crise de legitimação do Estado. Os tiros contra os ônibus da caravana, embora inaceitáveis, não passam de provocações marginais que se esgotam na polarização fajuta que pretendem favorecer. Quando essa polarização se dissolver começará a batalha decisiva.

Fica o Registro:

  • Fernando Haddad apontou em entrevista o caráter seletivo da indignação que certos setores da sociedade têm exibido contra a corrupção. Ele tem toda razão e entendo como fundamental apontar que essa hipocrisia é parte do que há de fraudulento no jogo de poder em curso. Entretanto, entendo como igualmente fundamental registrar que a escolha de Haddad não é melhor: ele não mostra nenhuma indignação com a corrupção… A outra face dessa fleuma conveniente é a esperteza contida nessa forma de tergiversar sobre o caso de Lula: “Eu tenho a convicção de quem leu o processo”… – como se convicções políticas se formassem da mesma maneira como se fazem as convicções jurídicas… Por isso mesmo, Haddad abre mão de toda luta política contra Alckmin nesse assunto, como se apontar a convergência entre Paulo Preto e os governos tucanos fosse algo a ser feito apenas no plano jurídico! Não à toa, Haddad declara preferir a palavra de Alckmin à palavra “de quem quer que seja que esteja aí, enrolado com a justiça”, como se enrolados com a justiça não estivessem todos, inclusive Lula. Haddad escolheu esconder-se da crise acocorado sob um telhado de vidro, mas de microfone na mão.
  • Na mesma entrevista, Haddad anacronicamente salientou convergências que vê entre PT e PSDB, como se fosse possível saltarmos os últimos trinta anos (no curso dos quais eles montaram uma polarização fajuta) e covardemente esquecermos que as convergências se deram sobretudo na acomodação à desigualdade, na revitalização dos dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM) e na adesão à corrupção como método de reunir poder para fazer dinheiro. Perdidos no tempo, o PT e o PSDB que ele tem na cabeça são personagens de fábula.
  • É que, tal como naquele cinema pobrinho dos faroestes fajutos dos anos sessenta, onde as cenas perigosas recusadas pelos dois protagonistas “adversários” eram encenadas pelo mesmo dublê, nessa pantomima anacrônica para reavivar a união FHC+Lula Haddad tem a pretensão de ser “descoberto” como o dublê ideal, o que nos leva ao risco de assisti-lo a pregar a união nacional contra o “patrimonialismo moderno” vestindo um macacão emporcalhado de petróleo e montado num jegue – ficcionista nenhum anteciparia que a realidade pudesse descaracterizar D. Quixote e Hamlet a ponto de ser possível desfigurá-los numa fusão tão impertinente.
  • Metido no pântano até a linha dos olhos, o prof. André Singer sucumbiu, em artigo na Folha de S.Paulo de hoje, ao que há de pior: a ideia de que a sociedade brasileira é vítima de uma conspiração, pela qual “tentam nos impingir” alguma coisa (só faltaram as “forças ocultas”). Depois de começar o artigo misturando indevidamente os tiros profissionais que executaram Marielle aos inaceitáveis disparos provocadores feitos contra a caravana de Lula, nosso autor faz um artigo em que tenta apresentar como pardos todos os gatos dessa noite que nos aterra: desconfia de Dodge, indigita Gilmar, ataca Barroso e faz alerde acerca de um suposto “extenso planejamento”.
  • Em mais uma tentativa de sustentar o insustentável, ou seja, que vivemos sob um Estado democrático de direito, Oscar Vilhena Vieira ataca mais uma vez e, claro, como nem pode reconhecer a guerra entre as facções estatais, nem pôde deixar de aprender alguma coisa, improvisou o que chamou de “guerra dos estamentos”. Depois de algumas cambalhotas históricas e alguma contradição, conclui com essa pérola: “não seria uma surpresa, no entanto, a concessão do HC de Lula, sem que se alterasse a regra da execução provisória (menos ainda da Lei da Ficha Limpa). Uma contradição jurídica, sem sombra de dúvida. Mas uma tentativa de distensionar o conflito entre direito e política”. Dá até preguiça, mas em nome da clareza, comentemos essa douta “conclusão”: para fantasiar que há um “conflito entre o direito e a política” é necessário cometer dois erros: do lado do direito, considerar que existe hoje no Brasil um, e somente um, lado do direito, ignorando que o Judiciário-judicação está escancarada e grosseiramente dividido em facções, divisão que já os levou a rasgarem a Constituição e ameaça leva-los a rasgar as togas; do lado da política, o erro requerido está em considerar que ela é, literalmente, uma reserva de mercado dos profissionais da política aboletados no Legislativo-representação e no Executivo-gestão, como se a tarefa que nos desafia não fosse, justamente, fazer outra política contra a desses aí que estão em conflito não com um direito imaginário, mas com a própria sociedade. Vilhena Vieira, como de costume, tropeça a cada parágrafo: num adverte Tófolli de que há mais de uma política; no outro funde a política numa coisa só e a opõe a um direito cerúleo – enfim, mais um liberal que está perdidinho. Se eles aceitassem que o Estado democrático de direito, orgulho da sua geração, não existe, doeria mais, mas parariam de dar vexame.
  • Faz tempo que apontei aqui que a dobradinha Lula-Temer, mais o que eles representam, iniciada desde antes que o golpista fosse vice de Dilma, não se esgotara (embora tenha sofrido o soluço do impeachment). É que a crise de legitimação do Estado que sobreveio ao impeachment (sem ter nele propriamente uma causa) alterou completamente o jogo, que teve três fases: na primeira, antes da crise, os dois eram adversários “históricos” momentaneamente aliados; na segunda, em meio ao golpe, eles trouxeram de volta a fajuta desavença “histórica”; na terceira, consumado e golpe e aberta a crise de legitimação, eles começaram o tango da proteção mútua, cujos lances mais notórios vêm sendo: Dilma teve os direitos políticos preservados; o PT votou em Maia para a presidência da Câmara; Temer visitou Lula quando da internação de dona Marisa; Lula elogiou Temer por superar uma “tentativa de golpe”; Temer fala em “barragem de candidaturas” e, agora, o PT está pronto a ver problemas graves numa queda de Temer. Nessa guerra entre facções que se fazem e refazem, Lula, Temer e o que eles representam podem estar tão separados quanto unidos, ao sabor da luta pela sobrevivência. Essa união facciosa entre Lula e Temer tem sua correspondência fidelíssima no Supremo, numa já antiga concatenação facciosa entre Gilmar, que é Temer, e Tóffoli, que é Lula. A explicação para tudo isso me parece simples: dado que a crise desaguou numa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário construído pela política profissional deles, a fragilidade de ambos, de Lula e de Temer, não permite que a derrota de um seja a vitória do outro – estão num abraço de afogados.

Sobre as decisões do Supremo que afetarão Lula

A mim parece evidente que qualquer decisão será facciosa, tal como têm sido todas as decisões tomadas pelo Supremo em relação aos políticos profissionais e seus aliados pelo menos desde a prisão de Delcídio e a posterior proteção a Aécio, passando pela prisão de Cunha, as devoluções de Maluf e Picciani aos respectivos domicílios, os habeas corpus ao Barata e a suspensão da inelegibilidade de Demóstenes Torres – chegou a vez do Lula, bem na hora de mais uma rodada de apertos contra Temer.

No momento, sou levado a imaginar os seguintes desdobramentos:

A facção mais pró-establishment, que foi levada a concluir como transtorno indesejado tudo o que acabou por ser desencadeado pela Lava Jato, reúne os dois aparentes extremos da crise, Lula e Temer, representados no Supremo respectivamente por Tófolli e Gilmar, ao lado dos quais, em alinhamento fluído, figuram Lewandowski e Marco Aurélio. Logo, estão reunidos na mesma facção parte do governo e parte da oposição (daí o PT renovar seu desinteresse em derrubar Temer), assim como pedaços do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Nessa ordem de ideias, Gilmar e Tófolli vão votar pela proibição da prisão com condenação em segunda instância, pois estão empenhados em livrar da prisão outros além de Lula. Se perderem essa votação, vão votar, coerentemente, pela concessão de habeas corpus ao Lula. Lewandowski deverá acompanha-los, enquanto Marco Aurélio deve negar o HC ao Lula se perder a primeira votação.

Entre os transformadores há, nessa matéria, facciosos de tipo variado: há um tipo como Barroso, de longe o mais voluntarista de todos; secundado por Fachin, o relator da Lava Jato no STF, que vem jogando com orientação facciosa republicana deste a parceria com Janot, na qual contornaram a Constituição algumas vezes . Ambos devem votar pela manutenção da prisão em segunda instância, mas devem se dividir na decisão sobre Lula: Barroso deve votar pelo HC e Fachin, contra. Cármen Lúcia já deu seguidas declarações contra a revisão da matéria principal, mas deve votar pelo HC a Lula, no que será seguida pela ministra Rosa Weber. Em conexão frouxa com esses quatro ministros transformadores vem Fux, que tem servido como ninguém aos interesses facciosos do próprio Judiciário na crise atual, sendo dele as seguidas decisões em prol desse escandalosamente injusto “auxílio-moradia”. Esse alinhamento propriamente corporativo deve jogar seu papel no voto do ministro, pois há forte movimento intra muros em prol da possibilidade de prisão em segunda instância – mantida a prisão, ele deve votar em prol do HC a Lula.

Em sintonia propriamente facciosa com esses cinco ministros vem Alexandre de Moraes que, ligado a Alckmin, tem uma adesão ao establishment especialmente interessada e, assim, está determinado a tirar Lula do páreo de vez. Tenho como certo que ele votará contra Lula nas duas matérias.

O ministro Celso de Mello deve fechar o placar perdedor contra a prisão em segunda instância e, nesse caso, deverá ser um voto a mais para a vitória de Lula na obtenção do HC.

Claro está que não verei contradição alguma se o STF fizer o combinado faccioso que estou a supor que fará: manterá a possibilidade da prisão após condenação em segunda instância e dará um HC ao Lula.

MARIELLE COMO MEMÓRIA E ESPERANÇA

Carlos Novaes, 20 de março de 2018

Sendo ela um dispositivo do cérebro, a memória, como sabemos, é plástica como ele: ela assume formas e contornos variados no transcurso do tempo de nossas vidas, essa vida que cada um de nós luta para preservar, enriquecer, atribuir sentido. Essa plasticidade da forma não se dá apenas no espaço, portanto, ela se dá sobretudo no tempo. Resumindo muito: nossa memória retroage e dá significados novos ao passado — recorrer à memória já é, por assim dizer, alterar o passado. E nós o alteramos para ter esperança, que é o vestíbulo para um futuro que nasça da escolha, não da inércia.

A leitura quase ininterrupta de tudo o que tem saído sobre a execução de Marielle e o assassinato de Anderson tem tido sobre mim o efeito de reavivar esperanças que estavam quase mortas. E veja bem, leitor: embora as matérias e o os artigos de opinião venham sendo fundamentais, não é exatamente sobre o conteúdo deles que se erguem minhas esperanças novas, ainda que seja maravilhoso ver tanta gente, com preferências tão diferentes, se ocupar do que é valioso para o bem comum – minhas esperanças estão a ser nutridas graças às reações indecentes, na forma de comentários raivosos e da mentira pura e simples, que os fatos em si e aquele volumoso material decente vem suscitando em certos segmentos. E isso por quatro razões principais:

Em primeiro lugar, o contraste entre as mentiras atiradas às redes sociais e a diligente ação da mídia convencional no sentido de preservar um solo mínimo para a construção de uma memória não facciosa acerca da execução de Marielle e do assassinato de Anderson abre uma oportunidade valiosa para que se entenda a diferença que há entre se informar pelas redes sociais e pela chamada grande imprensa, em favor desta última. Assim, todos estão tendo a oportunidade de aprender que se a mídia convencional nunca é, de fato, neutra ou mesmo imparcial como pretende nos fazer acreditar, ela certamente sobrevive da verossimilhança do que publica, e isso é meio caminho andando na direção da verdade, embora não a garanta (quem acha possível alcançar essa garantia acaba propondo o controle da mídia…). Por outro lado, está a ficar claro para qualquer um que não seja um completo idiota que as redes sociais estão infestadas de raiva e de mentira elaborada. Os raivosos estão a tentar abafar para si mesmos a tremenda complexidade da realidade em que supunham ter aninhado suas limitadíssimas expectativas de acomodação; os mentirosos estão a reagir ao fato de que o que se move sob seus pés não é a prancha com que sonhavam surfar a onda reacionária que parecia estar ao seu dispor.

O material publicado na mídia convencional, provida de mediações, é totalmente diferente do material publicado numa mídia sem mediações como as redes sociais. Na mídia com mediações temos o Sujeito que tem de informar; na mídia sem mediações temos o EU que pode inventar. Na primeira, o indivíduo está contido pelas mediações e não pode simplesmente mentir; na segunda, o indivíduo está livre de mediações e pode mentir à vontade. E mais: a natureza do comportamento daqueles que mentem na mídia sem mediação diz muito da natureza do apego deles pelo homem de Estado que também despreza as mediações, que, como eles, faça e aconteça sozinho, sem freios.

Veja bem o que quero agarrar, leitor: na mídia convencional, uma informação só é transmitida depois de passar por mediações, pois há o repórter, o redator, o editor, o chefe dos editores, o chefe geral da redação e, no limite, o dono do veículo, os quais, juntos, formam o Sujeito da informação; já nas redes sociais, pelo contrário, pode haver apenas o EU superlativo do perdedor isolado, que só presta contas à sua própria raiva. Essas duas formas têm tudo a ver com as formas de exercício do poder político que lhes correspondem: à mídia convencional, cujas informações são submetidas a mediações, corresponde um poder de Estado sujeito ele também a mediações; já ao abutre solitário que faz das redes sociais plataforma para simplesmente mentir como bem entender, só pode corresponder a preferência simplista por um poder de Estado igualmente arbitrário, liberto de qualquer mediação. Eles preferem o Bolsonaro pela mesma razão que os faz preferir mentir: a ilusão de que a sociedade pode ser submetida ao que EU quero.

Em segundo lugar, a marca da invencionice nessas calúnias contra Marielle é tão evidente, seu caráter forjado é tão óbvio, que fica estampada a sua infantilidade conspiratória, ridículo que, a contrapelo, permite que nos libertemos da memória de que o que está em marcha contra a maioria de nós seja uma grande conspiração (chamo a ideia de conspiração de memória porque essa ideia está tão arraigada que funciona como um verdadeiro pano de fundo para o que pensamos). Não há conspiração totalizante alguma. O que há é a reunião de facções no âmbito do Estado, que se fazem e refazem em meio a conspirações, é certo, mas conspirações rivais umas às outras; e também por serem rivais não têm o poder de ditar o resultado final do processo – ainda bem. O “também” grifado antes se explica assim: o final do processo não pode ser antecipado por conspiração alguma porque além da rivalidade entre as facções do Estado em crise de legitimação, há, do outro lado, ainda de forma insipiente, é verdade, a movimentação imprevisível da sociedade, especialmente daqueles segmentos que atuam de forma totalmente independente das facções conflagradas nessa luta pelo controle do Estado de Direito Autoritário ilegítimo (embora seja legal – ele está cheio de leis e conta com o Judiciário respectivo!). Quem teria previsto uma movimentação como a que está havendo em nome de Marielle e de Anderson?

Por incipiente que ainda seja, a movimentação da sociedade vai ajudando a dificultar acordos entre as facções (ainda não conseguiram abafar a Lava Jato, por exemplo), pois até mesmo os acertos muito bem escondidos entre governadores de Estado e líderes de facções nas penitenciárias vão ficando claros para a opinião pública. E note bem, leitor: esses acertos, e sua divulgação, também são expressão da crise de legitimação do Estado, pois desafiados pelas cada vez mais desagregadoras consequências sociais e políticas da desigualdade, os governadores, que devem suas eleições (em última instância…) ao compromisso com a manutenção da mesma desigualdade, precisam se acertar com as facções penitenciárias para tentar neutralizar o potencial explosivo do conjunto ilegítimo, com o que formam um cipoal cada vez mais difícil de esconder e pelo qual todas as facções estatais (penitenciárias, policiais, institucionais e representacionais) tiram proveito relativo do sofrimento absoluto que impõem à maioria da sociedade através do poder de Estado, isto é, segundo o exercício faccioso dos poderes institucionais.

Em terceiro lugar, as ações e reações à execução de Marielle e ao assassinato de Anderson nos permitem abandonar a memória de uma polarização fajuta que aprisiona nosso potencial para a criação política do novo. Esse crime medonho, nas circunstâncias dessa crise de legitimação do Estado, suscitou realinhamentos políticos que podem nos levar a procurar algo mais rico do que a polarização esquerdaXdireita, providência que daria uma chance para a reconfiguração das noções de “nós” e “eles” – veja bem, leitor: estou a sustentar que a polarização esquerdaXdireita é tão sem sentido quanto uma outra que até muito pouco tempo apaixonou multidões e, agora, vai sendo convenientemente esquecida, pois ficou nua em toda a sua fajutice, e sua vacuidade já não se presta às ilusões de ninguém que tenha juízo: PTxPSDB (aliás, não é à toa que como resultado da crise Dória tenha se tornado o verdadeiro líder do PSDB e o PT não tenha para onde correr sem o Lula — e com a horda boçalnara correndo por fora a vituperar que esses dois outros são iguais por serem ambos “comunistas”!! kkkkkk).

Em quarto lugar, a insistência dos mentirosos em vincular Marielle às facções do crime comum trouxe à tona o debate sobre a quem interessaria a execução dela. E o resultado é que resta como plausível que Marielle tenha sido executada a mando do tráfico, da milícia, da banda podre da PM ou de alguma facção paisana da política carioca ou federal. E é exatamente por ser plausível para qualquer um de nós (esteja você de que “lado” esteja) que a responsabilidade do ato possa ser de quaisquer das facções mencionadas, é exatamente por isso que já não se pode ter dúvidas acerca da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário brasileiro: a luta pelo poder igualou a todos e se faz contra a, e às custas da, maioria da sociedade. Essa evidência exige reconfigurar a memória que viemos reunindo sobre a crise em que o país se encontra, pois nos permite dar sentido novo aos acontecimentos e sofrimentos até aqui experimentados, e compreender de outra maneira as atitudes dos diferentes agentes implicados.

Marielle vem sendo o que sempre foi: um ponto articulador para a usinagem mediada de memórias diferentes e, até, conflitantes, mas sempre excluindo a mentira, pois uma memória é, por definição, o oposto da mentira — a mentira é urdida naquilo que não foi, a mentira é o nada da memória.

O QUE APRENDER DOS ASSASSINATOS DE MARIELLE E ANDERSON? — 2 DE 2

Carlos Novaes, 17 de março de 2018

Mas o trágico assassinato de Marielle e Anderson também tem se prestado a mistificações do chamado “outro lado” – tem gente que vai acordando para a enormidade da encrenca em que estamos metidos, mas resiste a enxergar que se trata de uma crise de legitimação do Estado de direito. E resiste porque tendo vaidosamente se convencido de que o resultado da luta contra a ditadura paisano-militar (para estes vaidosos, apenas militar) foi a conquista de um Estado democrático de direito, acha que dizer ilegítimo esse Estado de direito seria dizer ilegítima a democracia em que, a duras penas, temos sobrevivido.

Ora, se fizermos a distinção que proponho entre Estado de Direito Autoritário e Estado de Direito Democrático, e entendermos, pelas razões expostas numa série de posts iniciada aqui, que, na verdade, o que construímos depois da ditadura paisano-militar foi um Estado de Direito Autoritário, então já não teremos porque recusar enxergar na crise uma crise de legitimação do Estado de direito que nos infelicita. Naturalmente, para esse reconhecimento teremos de, como já desenvolvi aqui, encarar toda a extensão da nossa derrota, que no curso de trinta anos se fez lenta, gradual e segura e na qual PT e PSDB têm papel central, como também argumentei longamente aqui.

Como não poderia deixar de ser, nesse acordar precipitado alguns passam de um polo ao outro, e, então, sem sequer se ocuparem do caráter do Estado brasileiro, vão logo entregando os pontos no que diz respeito à democracia. De fato, já há quem veja no assassinato de Marielle o fim da democracia que imaginava consolidada num Estado democrático de direito. É provável que a nota patética insuperável dessa chorumela venha a ser o artigo do professor André Singer publicado na Folha de S.Paulo de hoje, no qual ele, depois de pomposamente intitular seu mimimi de “O fracasso da democracia”, vai, sem aviso, discorrer sobre “o fracasso da minha geração” – mas justo ele, que, não faz muito tempo, depois de deixar a condição de porta-voz da presidência da República, e em busca de justificação para as próprias escolhas coniventes, “teorizou” sobre a era Lula como governos na marcha de um claudicante “reformismo fraco” no rumo do socialismo?!?!

O professor vai ter de rever muita coisa, não é não? Afinal, depois de buscar salvação individual para os próprios erros num socialismo fantástico, agora se vê aloprado a invocar uma presumida derrota geracional para revestir de teoria política confusões individuais não menos fantásticas (fale por você!). Que os mortos enterrem seus mortos, pois o professor André Singer precisa entender que o seu PT é vítima interna recentíssima do Estado de Direito Autoritário que reforçou com sua adesão e que, agora, em crise de legitimação, se apresenta conflagrado numa luta de facções de que Marielle e Anderson são vítimas externas antiguíssimas.

Numa linha bem diferente de Singer, mas também equivocadamente, o respeitável prof. Vladimir Safatli escreveu ontem, na mesma Folha de S.Paulo, que:

“Não é difícil imaginar o que deve acontecer depois desse crime: nada, absolutamente nada. Pois ele não é uma exceção. Ele é o modo normal de funcionamento do governo brasileiro. […] O que vemos agora é apenas a consolidação de uma estrutura de fato. Um país comandado por uma casta de indiciados e criminosos que se apoia em poder militar anabolizado e em poder policial descontrolado que há muito se degradou à condição de setor organizado do banditismo nacional. […] esse não é um crime isolado, nem será o último. […] Pois esse país é, antes de qualquer coisa, uma forma de violência.”

Na fusão que fiz acima de trechos do artigo de Safatli se pode ver, creio, o que pode ser chamado propriamente de essencial: para o autor, governo e país estão fundidos na mesma forma, a forma da violência. Não creio que se possa ir muito longe com esse tipo de abordagem, pois ela passa por cima do que realmente importa: o caráter autoritário do nosso Estado de direito, que abriga um governo golpista e submete uma sociedade inerte, mas não se confunde com nenhum dos dois nem, principalmente, reúne os dois.

Por isso mesmo, ao contrário do que diz Safatli, não estamos diante da “consolidação de uma estrutura de fato”; é justo o contrário: os assassinatos (que se deram no bojo de uma luta de facções estatais) e a reação a eles (que se dá em meio a um processo de alarme e, oxalá, de esclarecimento na sociedade), são evidências de que estamos diante de uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, que é o oposto da consolidação do que quer que seja! Naturalmente, como já salientei aqui e em muitos outros posts deste blog, podemos assistir, como desdobramento dessa crise de legitimação, a uma regressão a formas ainda mais autoritárias, mas não há evidência de que essa situação já se tenha configurado.

Ainda na linha das elaborações pouco esclarecedoras, embora motivadas por uma justa e louvável indignação com os assassinatos de Marielle e Anderson, oportuno comentar artigo de Vinicius Torres Freire, também publicado na Folha de ontem. Segundo ele,

“Até por haver indícios, é difícil de acreditar que representantes do crime institucional não tenham chegado a postos mais altos nos três Poderes. Depois de dominarem territórios e corromperem ou cooptarem parte das polícias, começam a ocupar partes do comando do Estado; contam com tropas e terroristas.”

De novo, o defeito está em não enxergar o Estado conflagrado numa luta de facções. Tudo se passa como se houvessem instituições hígidas, num Estado legítimo, no qual agentes do mal “começam a ocupar partes do comando”… Ora, a gravidade da situação já escancarou que estamos muito além desse ponto de “começo” – estamos em plena crise de legitimação, e as facções estão a medir forças, sabedoras de que não há hegemonia estatal que as possa conter. Estão em busca de uma nova hegemonia.

Nessa linha de ideias, não vejo diferença estrutural  (veja bem, leitor, estrutural) nenhuma entre a busca pelo controle da distribuição de gás numa favela pelas milícias policiais e a busca pelo controle da boca de fumo que paga propina à polícia civil para funcionar na mesma favela; ou entre a expropriação de apartamentos do Minha Casa Minha Vida por milícias e/ou traficantes e a briga facciosa do Judiciário pela manutenção, contra nós, desse imoral auxílio-moradia; ou entre o indulto natalino de Temer ao arrepio do bom direito (pelo qual ele mandou recado aos parceiros já apanhados na Lava Jato, inclusive a Lula) e a reformulação inconstitucional desse mesmo indulto pelo ministro Barroso do STF (pela qual ele mandou recado populista à opinião pública revoltada).

Finalmente, parece útil comentar o informado artigo de Bruno Carazza, também na Folha de ontem, também escrito em reação aos assassinatos de Marielle e Anderson. Depois de nos apresentar como epígrafe do seu artigo essa fala do capitão Nascimento, personagem do filme Tropa de Elite-2:

“O sistema é muito maior do que eu pensava.
Não é à toa que os traficantes, os policiais e os milicianos
matam tanta gente nas favelas.
Não é à toa que existem favelas.
Não é à toa que acontece tanto escândalo em Brasília.
E que entra governo, sai governo, a corrupção continua.
Pra mudar as coisas, vai demorar muito tempo.
O sistema é foda.
Ainda vai morrer muito inocente.”

Depois da epígrafe acima, Carazza traz um arrazoado tão bem informado quanto moralmente bem posicionado sobre Marielle, mas tudo para concluir que o brutal assassinato dela:

“É como se fosse um recado para o cidadão de bem que aos poucos volta a se interessar pela política: tome cuidado, o sistema aqui é bruto.”

Ou seja, mais uma vez se apresenta uma leitura que supõe um Sistema operando inteiriço sobre tudo e todos, capaz de mandar recado unificado. Infelizmente, trata-se da mesma perspectiva ficcional limitadíssima, e conspiratória, do pobre capitão Nascimento, um agente, por definição, desprovido de uma visão de conjunto. Ignora-se, assim, a luta de facções que, precisamente, impede a vigência de qualquer Sistema, pois ela se dá nas entranhas mesmas do Estado de Direito Autoritário em disputa.

A nossa desgraça, leitor, é precisamente a ausência de qualquer princípio ordenador, uma situação que está a exigir de cada um de nós um engajamento lúcido na busca de uma solução, que terá de ser inovadora. Não haverá novidade se não pensarmos diferente, se não buscarmos saídas diferentes, para além dessa polarização fajuta em torno de estéreis ideologias inatuais, que sequer são realmente defendidas por seus arautos: uma direita liberal que diz defender o livre mercado, mas chafurda na corrupção de modo a obter lucros enquanto hipocritamente instrumentaliza o Estado contra a concorrência que seria a consagração do livre mercado “idealizado” por ela; e uma burocracia autointitulada de esquerda que reforçou as estruturas corruptas do Estado e nada fez contra a desigualdade, mas fica a se pavonear como herdeira de uma controvertida tradição socialista.

Nessa busca pela novidade, aquilo de que não podemos abrir mão é justamente das franquias democráticas já conquistadas, estando as eleições de 2018 no centro articulador delas, cuja campanha será uma oportunidade para fazermos a conversa sobre a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, na perspectiva de, a partir das eleições, iniciarmos a construção institucional de um Estado de Direito Democrático, que permitirá consolidarmos a democracia.

Num ânimo desses, quase desnecessário dizer que na disputa para os Executivos-gestão (presidente da República e governadores) deveremos não apenas repudiar a direita Boçalnara, mas negar o voto a qualquer candidato do PT, do PSDB ou dos dispositivos paisanos da ditadura de que eles se valeram em sua polarização fajuta (p-MDB e DEM). No tocante aos Legislativos-representação (Congresso e Assembleias), trata-se não apenas de seguir a orientação anterior, mas sobretudo de promover uma profunda e abrangente renovação, sem a recondução nem mesmo de quem quer que seja reputado como bom, como já argumentei aqui.

O QUE APRENDER DOS ASSASSINATOS DE MARIELLE E ANDERSON? — 1 DE 2

Carlos Novaes, 17 de março de 2018

Depois de escrever o artigo anterior no calor da hora, saído da tristeza, da raiva e da impotência que caracterizam a constatação de uma injustiça que sabemos não poder reparar, passei a tentar acompanhar tudo o que vem sendo dito na mídia sobre essa verdadeira tragédia, que reúne como vítimas diretas um homem branco comum (tão confusamente questionado em nossos dias) e uma mulher negra incomum (tão merecidamente valorizada em nossos dias).

Desde logo há que reconhecer o inextrincável vínculo material e simbólico entre os dois assassinatos. Vínculo este que vem sendo reconhecido por praticamente todos os segmentos de interessados que se debruçam sobre a tragédia, menos um. Não obstante a grande mídia, acordada pelos tiros para a gravidade da hora, venha dando extensa cobertura à personalidade das duas vítimas, há um segmento que, a pretexto de denunciar uma inexistente indiferença diante da morte de Anderson, não se cansa de negar a importância simbólica do assassinato de Marielle, esforço no qual já se empenharam o comandante da Polícia Militar do Paraná, uma desembargadora do Rio e todo gênero de desclassificados que empesteiam as redes sociais.

A desonestidade dessa gente é tão evidente quanto instrutiva: ela é evidente porque está a repetir uma mentira; ela é instrutiva porque mostra o medo deles diante do potencial do episódio para virar a maré em que eles julgam estar a surfar. O ponto de articulação dessa mentira instrutiva está na insistência deles em combinar a defesa jactanciosa da necessidade de tratar a todas as vítimas como iguais com a descaracterização de Marielle como alvo almejado. Essa manobra é insustentável, uma vez que, se de um lado, parecem valorizar, na figura de Anderson, todas as vítimas de assassinatos que desaparecem sem destaque e sem investigação; de outro lado, e ao mesmo tempo, porém, para desvalorizar Marielle, desdenham todas as mortes que fingiam valorizar classificando a jovem líder como “cadáver comum”, até a ser lamentado, mas, ainda assim, “comum”.

Ora, o que há de comum em Anderson em nada o desvaloriza. Pelo contrário, o assassinato dele, um dano material não almejado pelos assassinos, faz desse jovem pai de família o verdadeiro representante de todas as vítimas produzidas pelas chamadas “balas perdidas” nessa rotina da banalização do assassinato entre nós – diante da (des)ordem estabelecida, ele não passa de “mais um”, como amarga e sagazmente constatou sua jovem viúva.

O que há de incomum em Mariella em tudo a distingui. Ela era o alvo direto e simbólico dos assassinos, condição que faz dela a legítima representante de todos aqueles que, mesmo não seguindo a sua liderança, tem a aspiração de uma sociedade menos desigual, menos preconceituosa e menos violenta – uma sociedade na qual a vida humana tenha valor por si só, como um verdadeiro direito do homem.

É de notar que ao contrário desse segmento repelente que busca diminuir Marielle enquanto finge solidariedade para com outras vítimas, a moça da Maré se notabilizou, se tornou líder, se fez símbolo justamente porque denunciava a morte das ditas pessoas comuns, que são as principais vítimas da desigualdade, eliminadas não ao acaso, mas segundo uma lógica que agencia perversidades pessoais (elas próprias também fruto da desigualdade) em ações paramilitares para manter o povo pobre sob terror, num circuito interminável de misérias conexas que se engalfinham — sem atinar que o fazem em benefício da desordem que favorece os privilegiados no comando.

Denunciemos a execução de Marielle para manter viva a luta por ideias que, institucionalizadas, impedirão a rotina de assassinatos como o de Anderson.

QUE TIRO FOI ESSE?

Carlos Novaes, 15 de março de 2018

O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) não é mais um episódio da chamada violência que assola o Rio.

O fato de a vítima ser uma mulher valente, em pleno vigor de moça madura, negra, da periferia, mão solteira, que teve de fazer das tripas coração para tomar o próprio destino nas mãos, não é um acaso. Marielle simbolizava aquilo que o Brasil do mando faccioso não aceita, não reconhece, não tolera e, sobretudo, teme. Essa morte vem sendo tecida, fio a fio, desde o Brasil mais longínquo.

Quem não morrer um pouco do tiro que matou Marielle, estará pronto a morrer por inteiro na próxima bala “perdida”.

Quem não chorar diante desse tiro, não vai chorar diante de mais nenhum.

Quem não disser intolerável esse tiro, não o dirá de mais nenhum.

Quem não ficar alerta ao som desse tiro, estará surdo para qualquer outro.

Morta, Marielle se faz símbolo da inércia da maioria da sociedade diante da luta de facções deflagrada no âmbito da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário brasileiro.

O assassinato de Marielle se fez ponto de convergência de quatro vetores facciosos, cada um deles plural, por sua vez:

primeiro, as facções milicianas saídas do dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura paisano-militar na forma da Polícia Militar (que, não obstante, ainda conta com gente de bem em suas fileiras);

segundo, as facções criminosas que vêm se organizando a partir das entranhas da estrutura penitenciária do Estado de direito;

terceiro, as facções paisanas que controlam o Estado do Rio há décadas e, agora, se veem ameaçadas pela ação não dos bandidos, mas das

quarto, facções federais que não hesitam em sacrificar seus ex-sócios locais em prol de uma reconfiguração que a crise de legitimação do Estado está a impor, mobilizando, para isso, as FFAA, o dispositivo militar cabal da ditadura de 1964-1989.

Tivesse eu esperanças, diria que essa morte tem de se fazer mortalha da nossa indiferença social, da nossa inércia política, da nossa burrice ideológica.

[Acréscimo às 22:40]:

Fica o Registro:

  • Enquanto isso, a marcha facciosa do baronato do Judiciário seguiu em frente na defesa desse escandaloso “auxílio moradia”, tendo o descaramento de tentar vincular essa aberração remuneratória à força do Judiciário e à autonomia dele. São uns caras de pau!

 

DESORDEM, DESIGUALDADE E FALTA DE IMAGINAÇÃO

Carlos Novaes, 28 de fevereiro de 2018

Por tudo aquilo que simboliza em termos políticos, sociais, territoriais e demográficos, o Rio passou a sintetizar a crise de legitimação desse Estado de Direito Autoritário vigente no Brasil desde o fim da ditadura paisano-militar. Com o pretexto de combater o chamado crime organizado, espraiaram o exército pelas ruas, quando não é nelas que está organizado o crime; afinal, o chamado crime organizado é organizado não porque domine territórios na sociedade, pelo contrário, ele é organizado precisamente porque fez da sua aderência ao Estado um meio de se organizar, no que seguiu o exemplo dos mariscos das facções político-institucionais que nos infelicitam. Tanto as facções do crime quanto as facções do exercício faccioso dos poderes institucionais têm seus chefes atuando ao abrigo do Estado (prisões, polícias, Legislativo, Executivo, Judiciário) para tirar vantagem dos sofrimentos que impõem à maioria da sociedade.

Veja bem, leitor: assim como o político profissional, custodiando o Estado, faz uso faccioso da estrutura representacional estatal para reunir poder e dinheiro; assim como o hierarca do serviço público, custodiando o Estado, faz uso da estrutura institucional estatal para reunir poder e dinheiro, também o criminoso encarcerado, sob custódia do Estado, faz uso faccioso da estrutura penitenciária estatal para reunir poder e dinheiro – nos três casos, quem provê os meios é o Estado de Direito Autoritário, que funciona segundo os poderes do dinheiro e da força de arregimentação, vicariamente lastreado no dispositivo democrático do voto. Em outras palavras, a emergente organização estatal das nossas facções de bandidos é uma mimetização da secular organização estatal das nossas facções político-institucionais; daí a enorme semelhança entre elas, inclusive na indiferença ao sofrimento alheio.

Quando ainda não havia a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, tanto uns quanto outros se ajeitavam no âmbito do Estado, disputando perdas, ganhos e danos, mas arbitrando ambições sem rupturas (bandidos nas penitenciárias, obtendo estiletes, eletrônicos e regalias; políticos e hierarcas nas instituições, obtendo dinheiro, cargos e vantagens); todos fazendo da sociedade teatro aberto às suas respectivas disputas, os bandidos pela força do dinheiro e das armas, os políticos profissionais e os hierarcas pela força do dinheiro, do voto e dos cargos – nos três casos a sociedade era vítima das ambições e dos acertos respectivos entre eles. Com a crise de legitimação do Estado, as facções não tiveram escolha e quebraram seus acordos consuetudinários, se conflagraram: bandidos nas prisões; políticos profissionais e hierarcas nas instituições – o resultado é essa desordem que abisma a maioria da sociedade.

Assim como o nosso problema institucional não está na democracia, mas no Estado de Direito (como explicado no post anterior); a desordem também não está na sociedade, mas no Estado, pois a desordem resulta da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que nos foi legado pela ditadura paisano-militar – logo, dessa perspectiva, fica claro que:

  1. Não faz nenhum sentido encarar a volta do protagonismo militar como solução para essa desordem – muito pelo contrário.
  2. A facção político-institucional majoritária, chefiada pelo p-MDB, chamou os militares de volta precisamente porque se esgotou a engenhoca de mando que o mesmíssimo p-MDB havia chefiado no fim da ditadura paisano-militar (circuito de retorno que já explorei aqui, aquiaqui e aqui). Trata-se, literalmente, de uma marcha à ré.

Em post dos mais recentes, ainda antes dessa intervenção no Rio, tratei da chamada questão militar e procurei me distanciar de elucubrações conspiratórias. Como disse então:

Ora, a questão, naturalmente, não é saber acerca de em que a FFAA estão “interessadas”, mas sim de antecipar que tipo de interesses elas podem passar a ter depois de experimentarem certas práticas, especialmente quando se considera o ambiente faccional em que estamos. Afinal, nada garante que o interesse marqueteiro que orientou os políticos tenha mantido a sua vigência depois de um uso tão prolongado e cada vez mais amiúde da prática de convocar as FFAA, uma vez que os militares não estão aí para obedecerem ao papel de figurantes em peças de propaganda… Por outro lado, essas novas práticas estão a mostrar que as FFAA podem aumentar seu grau de tutela sem propriamente uma intervenção e, nesse caso, pode ser até muito mais confortável, para elas e para o establishment, que se conserve a rotina eleitoral para a escolha de governos civis.

Ora, parece claro que eles aprendem numa velocidade que desmente estarem a desempenhar a função a contragosto, pois em declaração de ontem o general interventor, depois de colocar a si próprio no mesmo nível hierárquico do ministro de Estado que deveria chefiá-lo, passou a falar no Rio como um “laboratório para o Brasil”, ideia que denuncia uma medonha falta de imaginação: a sociedade brasileira já teve bastante desse laboratório entre 1964 e 1989 e sabe muito bem o que esperar dele.

A natureza da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário pôs abaixo, entre outras, a ideia de que a ordem a ser obtida com o combate à desordem é um pré-requisito para a busca da justiça social. Isso é balela, afinal, essa crise resulta, em última instância (olha ela de volta) da desigualdade sem paralelo que caracteriza a sociedade brasileira, uma desigualdade que joga a desordem contra a democracia. De novo, nosso problema não é a democracia, mas nossa ordem estatal, nosso Estado de Direito, que abriga direitos e práticas que estão em conflito aberto com o bem comum, arranjo que resulta da escolha deliberada por manter a desigualdade. Ou seja, uma nova ordem benfazeja só poderá ser alcançada se for construída segundo práticas de combate à desigualdade, o que orientaria o Estado de Direito no sentido da consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático – exatamente o contrário do que está em marcha: na versão menos ruim, um reforço do Estado de Direito Autoritário; na pior, o fim do Estado de direito.

[Acréscimo às 18:54]:

Fica o Registro:

  • O general comandante do exército pediu nessa tarde mudança legal que permita aos soldados atirarem em qualquer um que porte uma arma nas ruas, e alega, num português trôpego, que “essa empreitada que [sic] nós estamos participando, realizando, ela tem que dar certo. É uma das últimas oportunidades de que o Estado brasileiro está buscando [sic] para superar esse problema que é o que mais aflige a nossa sociedade”. Uma ideia incivilizada com base em “argumentos” falsos. A ideia é incivilizada porque, se posta em prática, nos levará de uma equivocada “guerra às drogas” para uma ainda mais equivocada “caça ao traficante”, fazendo o exército passar de uma corporação de enfrentamento para uma turba imperita de caça; fazendo as favelas passarem de local de moradia dos pobres para reserva de caça em favor dos muito ricos. A violência brutal dos bandidos será legitimada pela violência sórdida do Estado, tudo contra o povo pobre. Todas as alegações são falsas: nem a operação tem como dar certo, se se considera o bem comum; nem pode ser vista como uma oportunidade de solução, uma vez que passa ao largo do problema real, a desigualdade; nem o problema é o que mais aflige a maioria da sociedade (e, mesmo se fosse, o Rio está longe de ser o caso mais grave no país).

CRÍTICA DA CRÍTICA QUASE CRÍTICA

Carlos Novaes, 30 de janeiro de 2018

 

No intuito de alimentar a conversa de todos nós, examino nas próximas linhas alguns aspectos de artigo recentemente publicado na Folha de S.Paulo, no qual o prof. da FGV Conrado Hübner Mendes faz uma valiosa crítica do Supremo Tribunal Federal-STF. Naturalmente, não pretendo que este texto possa dispensar o leitor de ter lido o artigo que critico.

A crítica de Hübner Mendes é valiosa tanto por exibir de maneira organizada o desserviço mais recente do STF a uma democracia almejada, quanto por deixar ver em seus desvãos o desserviço desse tipo de crítica quando se pensa em localizar o foco real dos nossos problemas, única tarefa que realmente importa no âmbito de uma crise como a nossa. Embora tenha apontado mazelas reais na prática recente do STF, o professor sucumbiu às limitações do chamado institucionalismo, e justo na hora em que esse tipo de abordagem, a institucionalista, mostra toda a sua banguela analítica precisamente porque está desafiada por uma crise que ultrapassa o seu ferramental. Sigamos a passo.

Depois de fazer perguntas que iluminam todo o espectro da conduta malsã do STF no curso da crise, Hübner Mendes arremata o conjunto dizendo:

“A lista de perguntas poderia seguir, mas já basta para notar o que importa: as respostas terão menos relação com o direito e com a Constituição do que com inclinações políticas, fidelidades corporativistas, afinidades afetivas e autointeresse. O fio narrativo, portanto, pede a arte de um romancista, não a análise de um jurista. Ao se prestar a folhetim político, o STF abdica de seu papel constitucional e ataca o projeto de democracia.”

Quem está familiarizado com a visada crítica deste blog não pode deixar de localizar nesse rol de “inclinações”, “fidelidades”, “afinidades” e “autointeresse” da citação acima o que venho chamando de “exercício faccioso dos poderes institucionais”, modo de operar que entendo caracterizar não apenas o STF, mas o Estado de Direito Autoritário em seu conjunto. É precisamente porque, assim como outros, não enxerga a crise como uma crise do Estado que nosso autor se sente desamparado e se socorre no ferramental do romancista: passa a “inventar” um problema institucional, isto é, a limitar nela mesma os problemas de uma das instituições do Estado em crise de legitimação.

Não é de surpreender que uma abordagem dessas — depois de insinuar, e não fazer, uma crítica do lugar propriamente constitucional do STF – passe a se esconder das dificuldades do tema sob o tapete do que chamou de “desarranjo procedimental”(!), e, claro, acabe por se refugiar em tão rebuscados quanto frágeis reproches à conduta individual dos magistrados ora togados no STF, como se as figuras que atualmente compõem a nossa mais alta Côrte fossem significativamente mais baixas do que as de colegiados anteriores (ok, ok, concedo que Gilmar Mendes e Tófoli talvez sejam, mesmo, pontos fora de qualquer linha sinuosa que persiga o bem comum – ainda assim, a atual desenvoltura deles, longe de ser o exercício de meras características pessoais, é sintoma não apenas da crise do Estado, mas também da degradação que já estava presente em suas respectivas nomeações).

Ao classificar como “lotérica” a forma de atuação interna do STF o autor joga fora todos os liames que essa atuação guarda com a dinâmica externa que constitui a crise, dinâmica esta que nada tem de lotérica, pois está firmemente ancorada em “inclinações”, “fidelidades”, “afinidades” e “autointeresse” que desde sempre constituem a matéria do exercício faccioso dos poderes institucionais e, mais recentemente, estão a servir de combustível à luta aberta entre facções que escancarou a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário no Brasil. Hübner Mendes precisa se dar conta de que a “imprevisibilidade” que caracteriza o STF não decorre de uma falta de ética, rito ou decoro nele próprio (embora faltem), ou da dificuldade de prever o que este ou aquele magistrado vai preferir (pelo contrário, são previsíveis até demais!), a imprevisibilidade é ali derivada, no sentido de que depende do jogo extramuros, no qual estão implicadas as facções do Legislativo e do Executivo, em aliança com o chamado Mercado.

Em suma, o que há de imprevisível no jogo miúdo do STF não decorre de ele ter se fechado em si mesmo, se feito concha de suas próprias mazelas; pelo contrário, sua imprevisibilidade na ação miúda permite antecipar o mal a esperar no agregado e advém de sua conexão porosa com o jogo malsão da luta entre facções que se fazem e refazem segundo as oportunidades que os agentes enxergam na crise, em cuja busca levam o país à breca.

Embora faça o juízo correto de que

“Por não conseguir encarnar o papel de árbitro, o tribunal tornou-se partícipe da crise. Já não é mais visto como aplicador equidistante do direito, mas como adversário ou parceiro de atores políticos diversos.”

Nosso autor, prisioneiro do institucionalismo, chega à conclusão errada de que o STF

“Não foi vítima da conjuntura, mas da própria inépcia.”

Mas não há inépcia alguma, ali! Pelo contrário, a azáfama esperta é incessante – e majoritariamente contra nós, mesmo quando atinge inimigos do bem comum – o que não deixa de mostrar que não é, mesmo, o caso se encarar como amigo o inimigo do meu inimigo. Permitam-me dar um exemplo que me está a divertir: Gilmar Mendes vinha dando sinais enfáticos de que a decisão de prisão em segunda instância deveria ser revista. Entretanto, Lula acaba de ser condenado em segunda instância. Que tipo de cálculo Gilmar será levado a fazer? Vai manter a disposição de rever essa modalidade de prisão, beneficiando Lula e, de certa forma, o arranjo mais amplo do establishment, para o qual talvez Lula ainda seja visto como uma peça útil; ou, pelo contrário, vai rever sua preferência e facilitar a prisão de Lula, antigo desafeto, agora descartável? Note leitor que para mim não há qualquer dúvida sobre a preferência maior de Gilmar pelo establishment, o que é imprevisível é o resultado do cálculo faccioso que orientará a preferência miúda dele.

Seja como for, e tal como já foi dito aqui e aqui acerca de a Constituição ter se tornado ela mesma elemento da crise, não da solução dela, Hübner Mendes nos permite dizer que a luta entre facções nos levou a uma situação em que, como ele diz, se

“Criou uma espécie de zona franca da Constituição, onde reina a discricionariedade de conjuntura e onde o Estado de Direito [Democrático] não chega.”

Acrescento esse “Democrático” porque está clara a vigência de um Estado de Direito, cujo caráter Autoritário vem desde sempre, em sua atuação contra a sociedade, e que foi agora  escancarada pela luta de facções no âmbito do próprio Estado, luta esta que é um aspecto do que explicita sua crise de legitimação, que aparece também na descrença, na raiva e no ressentimento da sociedade contra as instituições desse mesmo Estado.

Parece claro que a solução não virá nem de mágicas saídas de um engajamento inercial nas eleições de 2018, nem de denúncias do (ou apelos ao) próprio STF. Afinal, como salientado aquiaqui e aqui em julho e outubro passados:

– No Supremo Tribunal Federal-STF (judicação), fala-se em rever a validade legal de gravações realizadas por participantes da conversa gravada – mais uma tentativa de obstruir a apuração e invalidar provas já obtidas de casos de corrupção, a começar pelo de Temer. O “argumento” é o de que o STF tem, agora, composição diferente da de 2009, quando seus juízes decidiram validar essas gravações. Ora, um entendimento desses é mais pernicioso do que “ouvir a voz rouca das ruas”, e faz o STF passar de Corte Suprema a Corte Arbitrária dos indivíduos que a compõem; afinal, a se tornar aceitável que a cada composição se reveja a jurisprudência, a memória constitucional do país ficará precisamente ao sabor do humor das facções a que seus membros pertencem, cuja lógica daninha venho analisando neste blog!

— Qualquer estudante de direito sabe que não há crime sem vítima. Logo, não pode haver crime contra o “Estado democrático de direito”, pois a sociedade brasileira não conta com um. Aliás, estivéssemos sob um Estado de Direito Democrático, jamais estaríamos a ver uma desordem dessas, saída precisamente das entranhas do Estado que nos foi legado pela ditadura paisano-militar. Em outras palavras, o Estado brasileiro não conta com mecanismos para debelar essa crise precisamente porque ele não é democrático, precisamente porque os agentes do Estado, divididos em facções, não respeitam a Constituição – e não a respeitam porque simplesmente não podem respeitá-la, uma vez que respeitá-la significaria a derrota da própria facção que o fizer, fragilizando-se na luta contra as outras. É por isso que são ridículos todos os graves apelos e salamaleques a reclamar na mídia convencional o respeito à Constituição. Ela foi rasgada e precisamos de outra – menos para termos outra Constituição, embora dela precisemos, e mais para passarmos por um novo processo constituinte, do qual necessitamos desesperadamente.

— A implosão engaiolada fez da luta de facções o método para arbitrar perdas e ganhos no jogo bruto pelo poder de Estado, um jogo do qual a Constituição é uma peça, não a regra, podendo ser suprimida ou devolvida ao tabuleiro segundo o andamento do jogo; agora já não dá para sustentar que havíamos construído um Estado democrático de direito.

INSÂNIA POLÍTICA E DOENÇA MENTAL

Carlos Novaes, 14 de dezembro de 2017

 

A luta de facções — em que se abismou o nosso Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação em razão do prolongado exercício faccioso dos poderes institucionais contra a maioria da sociedade — vai assumindo um jeitão de insânia. Do lado da sociedade, a insânia está em que não obstante tenha claro, viva na pele, a deterioração deste Estado ilegítimo, ela nada faz (isso quando não choraminga por uma solução via facção militar). Quanto ao Estado, ele tragou para si mesmo o exercício faccioso dos poderes institucionais e o fez ferramenta das disputas entre as mais altas autoridades da República que, diante da mencionada inércia da sociedade, estão insanamente a embriagar-se da própria autonomia, perdendo a noção de qualquer entrave à exibição de seu despreparo, avidez, cinismo e boçalidade. Tudo virou parte da paisagem, que não cessa de incorporar monstrengos, ao sabor do remanchar de interesses que vão da religião à mineração, numa marcha de feitiçaria e degradação.

explorei em vários textos deste blog o papel que PSDB e PT tiveram na construção dessa nossa derrota lenta (durou trinta anos), gradual (foi engolindo as forças “progressistas” uma de cada vez) e segura (assegurou a manutenção e, agora, o aprofundamento da desigualdade), uma derrota tão terrível que a maioria de nós se recusa a enxergar, preferindo refugiar-se no conforto recalcado da polarização fajuta que não cessa de provocar danos.

Pois bem, a Folha de S. Paulo publica hoje um artigo notável e aterrador. Notável pela lucidez e oportunidade, aterrador pela seriedade do que denuncia. Lúcido porque vai ao ponto, oportuno porque nos empurra a enxergar o que não queremos. Seus autores e subscritores são profissionais da saúde mental que prestaram serviços públicos relevantes em sua área de atuação em ao menos um dos governos saídos da conquista da eleição direta para presidente: de Collor a Dilma, passando por Itamar, FHC e Lula.

Depois de sumariarem a progressão do cuidado à saúde mental no curso dos diferentes governos de que participaram, os autores denunciam mais uma canetada facciosa do governo golpista destinada a remover conquista dos últimos trinta anos, desta vez para drenar recursos do SUS em favor das empresas privadas de saúde mental crente$ no confinamento, ferindo de morte a política de livrar o doente da internação via inserção social, elogiada em todo o mundo e estudada com interesse pelos países mais desenvolvidos.

A trajetória pelo serviço público dos médicos e da psicóloga que assinam o artigo nos oferece um fio condutor para identificarmos o que está no cerne da nossa recusa insana em reconhecer a derrota reapontada mais acima: eles fizeram parte da construção conflitada do pouco de bom que informou nossas ilusões acerca da construção de uma democracia e dão testemunho de quão frágil era o avanço que imaginávamos ter alcançado nessa matéria.

Em outras palavras, tenham eles pensado ou não nisso, seu artigo nos faz um alerta muito particular acerca do malogro da democracia que supúnhamos ter sido conquistada, pois os facciosos de plantão estão a desmontar até mesmo políticas cuja seriedade transpôs as polarizações fajutas dos últimos trinta anos – ou seja, a daninha marcha do desmonte chegou a um ponto em que já não precisa se alimentar das polarizações fajutas e pisoteia até mesmo as políticas de Estado fruto de entendimentos entre os que queriam, apesar de todas as desavenças entre os políticos profissionais, alguma mudança civilizatória.

É bem o caso de dizer, ou repetir, que devemos ter em mente que o grau de civilização de um país também se mede pela maneira como ele cuida dos seus doentes mentais – até porque, leitor, amanhã o louco pode ser você.

O FETICHISMO DA GOVERNABILIDADE

Carlos Novaes, 02 de novembro de 2017

 

Artigo recente do cientista político Carlos Pereira, publicado e celebrado em editorial na Folha de S.Paulo, é besteirol puro, mas, enfeitado com “índice” próprio e o gráfico correspondente, vem sendo recebido como ciência dura. Pereira, prof. da FGV e de Stanford, imagina ter chegado a um índice e a um gráfico que demonstrariam e ilustrariam a eficiência ou ineficiência do Executivo (gestão) na relação com o Legislativo (representação); mas o que o índice dele demonstra é a indigência intelectual que se alastra na ciência política brasileira; já o gráfico ilustra duas coisas: que o Congresso brasileiro é venal e que essa venalidade tem limites. (Sugiro que o leitor se familiarize com os argumentos e com o gráfico de Pereira antes de prosseguir).

Pereira supõe ter apresentado a prova empírica de que Temer é o presidente cuja governabilidade é a mais barata da história mais recente do país; quando o que ele demonstrou é que Temer é o presidente da “governabilidade” mais cara dentre os quatro que foram comparados.

Para chegar às suas tolices ele fez uma operação simples: converteu à forma mercadoria imutável tanto as proposições enviadas à aprovação do Congresso por qualquer presidente, quanto o apoio da maioria do Congresso (base da chamada governabilidade) a estas mesmas proposições. Ou seja, tudo se passa como se o apoio do Congresso ao que quer que venha da presidência da República estivesse sempre à venda pela maioria ali aboletada, o êxito do presidente sendo função de sua habilidade ao regatear o preço.

As principais moedas aceitas nessa feira seriam as que compõem o tal “índice sintético de custos de governo (ICG)”: cargos de ministro, dinheiro para os ministérios e dinheiro para as emendas parlamentares. Tendo feito as contas, nosso sábio descobriu que Temer conseguiu aprovar mais proposições enviadas ao Congresso do que seus três predecessores, não obstante tenha distribuído menos cargos de ministro, tenha dado menos dinheiro aos ministérios e pago menos emendas parlamentares – conclusão: é o mais eficiente dos quatro, pois comprou mais pagando menos…

Estamos em pleno fetichismo da governabilidade, e ele consiste no seguinte: para Pereira, a qualidade, o teor, do que o presidente propõe à aprovação da maioria do Congresso não têm nenhum papel nem na governabilidade, nem na análise da eficiência das relações do presidente com o Congresso – ou seja, nosso autor supõe que o jogo Executivo-Legislativo é uma troca simples, em que o Congresso entra com apoio e o presidente entra com cargos e dinheiro — uma operação tipica de quem pretende fazer ciência política sem a sociologia da política.

Ora, até os tapetes do Congresso sabem que a imensa maioria dos parlamentares se conduz em relação às nomeações e proposições do Executivo segundo a combinação dos três parâmetros seguintes:

  1. O que contempla ou agride seus interesses e suas preferências ideológicas de fundo, partilhados com seus financiadores e em sintonia com sua inserção na ordem social enquanto tal.

Ou seja, por mais que pudesse pagar, presidente nenhum conseguiria, por exemplo, comprar maioria no Congresso para a aprovação de proposições realmente voltadas a enfrentar a desigualdade, ou ao relaxamento da severidade dos costumes em matéria sexual, religiosa etc. A venalidade congressual tem limites — o apoio deles não é uma mercadoria como outra qualquer.

  1. O que promove ou atrapalha seu interesse em obter poder para fazer dinheiro.

Nesse âmbito, há duas frentes principais:

2.1. A obtenção de cargos para si e para os seus.

2.2. A aprovação das tais emendas parlamentares, que destinam recursos governamentais para território do seu interesse.

E, especialmente em ano eleitoral:

  1. O que promove ou atrapalha seu interesse pela reeleição.

Nesse âmbito, duas outras frentes:

3.1. Segundo aquilo que impacta a motivação do eleitor para o voto.

3.2. Segundo aquilo que impacta a motivação do financiador da campanha pela qual o candidato quer obter o voto.

Frequentemente essas duas motivações são conflitantes, daí o aspecto mirabolante, quase sempre mentiroso, das promessas de campanha: a maioria do Congresso faz campanha agradando ao eleitor, para depois decidir no parlamento de acordo com o Mercado.

Para a maioria do Congresso, trata-se, sempre, de manter o status quo.

Tendo em mente o que se acaba de esmiuçar, não é difícil entender porque Temer vem obtendo com o Congresso mais êxito do que seus predecessores:

A. Temer não precisou “enfrentar” com sua suposta habilidade uma maioria difícil ou mesmo hostil no Congresso (como foi o caso de FHC e, depois, de Lula e Dilma). Ele simplesmente se ajustou à maioria disponível saída daquela que facciosamente engendrou para o impeachment, precisamente porque a afinidade conservadora e reacionária entre ele e essa maioria está dada desde sempre, tendo sido como que atualizada pelo impeachment. Se habilidade houve, foi a que lhe permitiu obter êxito no golpe do impeachment.

B. Em outras palavras, a situação ficou especialmente mais fácil para Temer porque ele não recebeu seu mandato do eleitor, mas precisamente deste Congresso, via impeachment… Ou seja, através do “parlamentarismo de ocasião” Temer ficou liberado da ginástica que FHC, Lula e Dilma ficaram obrigados a fazer, pois a maioria do eleitorado votou em seus programas de mudança, mas não lhes deu um Congresso com maioria pela mudança.

C. As proposições de Temer ao Congresso pouco, ou mesmo nada, têm de conflitivas com a maioria ali aboletada – são todas afinadas com os itens de interesse vistos mais acima (com algum senão para o item 3.1, como já veremos), e não apenas obedecem ao sentido geral de manutenção da desigualdade, como apontam para um aumento dela.

Diferentemente do que pensa o prof. Pereira, contar com uma base congressual mais afinada ideologicamente e/ou mais homogênea não depende fundamentalmente da “habilidade” ou da “eficiência” do presidente. O presidente recebe do eleitor não apenas o seu próprio mandato, mas os mandatos do Congresso! Temer se dá bem no Congresso porque suas propostas conservadoras e reacionárias correspondem aos interesses e preferências da maioria ali consolidada faz décadas, inclusive de alguns que votaram contra ele nas denúncias criminais submetidas à Câmara, como é o caso notório de metade da bancada do PSDB, que votou pela abertura de processo criminal contra Temer precisamente em razão de 3.1. acima, embora concorde com as chamadas “reformas impopulares”.

Na verdade, pelos critérios de Pereira, Temer é o menos eficaz dos quatro presidentes, pois paga e tem uma trabalheira danada para obter da maioria do Congresso o que ela deveria entregar de graça: apoio à manutenção do status quo combinado à melhoria das condições para os ricos fazerem dinheiro em detrimento do bem estar dos menos aquinhoados. O fato de eles cobrarem por isso, e o fato de Temer pagar sem denunciá-los à sociedade, mostra tanto a venalidade quanto o isolamento deles.

Mesmo tendo abandonado seus programas máximos, FHC, Lula e Dilma contrariavam, em graus variados, interesses e preferências da maioria conservadora e reacionária do Congresso e, assim, tinham mais dificuldade relativa para aprovar o que queriam. No caso do PT a questão é especialmente cabeluda porque em razão da sua história, das expectativas geradas no eleitorado e da sua estrutura burocrática, a vitória presidencial implicou uma troca muito mais abrangente dos funcionários de livre nomeação pelo Executivo e, por isso mesmo, privou a maioria conservadora do Congresso de postos que ela de uma forma ou de outra sempre contara como seus (os quais recuperou com Temer).

Mesmo sob o mudancismo de FHC não chegou a ser necessária uma troca de gente como a do PT, pois o tucano chegou à presidência com uma história política e uma estrutura de alianças que levou a uma certa acomodação natural com as forças conservadoras que sempre lotearam entre si os postos estatais. Como já foi dito aqui (no item II), a chegada do PT ao poder federal levou a uma troca da guarda – em alguns casos, mesmo ministros de outros partidos tinham de aceitar a nomeação de petistas para cargos em seus ministérios. Ora, essa troca teve de ser compensada com a distribuição de outras benesses aos parlamentares dos outros partidos da base, o que explica parte do ICG dos governos de Lula e Dilma: não é que eles foram inábeis, é que havia mais bocas a alimentar, pois a junção de governabilidade com resposta à sociedade obrigava o Executivo a satisfazer tanto as exigências de obter maioria(s) num Congresso majoritariamente conservador e reacionário, quanto aos reclamos da sociedade civil organizada que queria mudança (e empregos!).

Esse problema Temer não tem, pois além de distribuir todos os cargos que arrancou ao PT, deu as costas à sociedade e como que abolindo a governabilidade soldou a fratura Executivo-Legislativo, brindado e blindado que foi pela maioria congressual que enjambrou e à qual paga regiamente, em troca de poder presidir com meros 5% de aprovação popular (depois de ter dito que Dilma não poderia governar com apenas 13%) esse Estado de Direito Autoritário conflagrado em facções e em crise de legitimação. Essa é a explicação para o falso enigma de Pereira sobre a “popularidade” congressual do Temer impopular na sociedade!

O êxito jornalístico do artigo de Carlos Pereira é uma proeza digna da que ele atribui a Temer: depois de entregar o que de antemão sabia agradar a plateia que lhe interessa, recebe os louros pelo suposto trabalho duro,  “contraintuitivo”, de convencê-la daquilo em que ela já queria acreditar. Pereira desponta como solista no coro dos institucionalistas liberais de plantão, que celebram o funcionamento e a maturidade das nossas instituições, não obstante não parem de se horrorizar com o que se passa nelas.

Vamos ver no que isso vai dar nas eleições de 2018 – o que nos leva a considerar 3.1. acima, pois ao dar tão claramente as costas para a sociedade, a maioria do Congresso, que sustenta Temer, está a fazer uma aposta. Parece evidente que nenhum desses profissionais é tonto o bastante para fazê-la por ter sido envolvido pela habilidade do golpista…

O desafio é entender o que os políticos profissionais estão a considerar como efeito eleitoral mais provável seja do rentável apoio à impopular manutenção de Temer na presidência, seja da aprovação congressual das suas reformas não menos impopulares, já que, como digo, a aspiração à reeleição é parte do que orienta as escolhas dos políticos profissionais diante das proposições do Executivo, especialmente em anos eleitorais. Há quem julgue sem risco a aposta em curso, outros a julgam arriscada e poucos a entendem como suicida. Como quer que seja, parece improvável que Temer emplaque mais alguma das suas reformas, por mais que os apostadores contem com o pouco discernimento do eleitor. Se eles estiverem com a razão, quem deseja transformar o Brasil viverá dias sombrios depois das eleições de 2018.

Como sabe quem acompanha este blog, não vejo coisa mais importante e oportuna a fazer do que fomentar o fim da reeleição para o Legislativo. Chega dos mesmos!

ABOLIRAM A GOVERNABILIDADE

Carlos Novaes, 25 de outubro de 2017

 

Faz poucos dias, escrevi aqui um post em que mais torcia do que analisava — só depois me dei conta desse erro. O lavar de mãos de Maia, desmentido até pelo pai dele, logo se mostrou uma jogadinha para aumentar o próprio cacife do presidente da Câmara junto ao golpista.

Temer acaba de, mais uma vez, derrotar a sociedade brasileira com apoio da Câmara Federal. Não houve qualquer chance de minhas esperanças serem recompensadas.

Temer seguirá refém dos que apoiaram sua permanência no cargo. Mas eles não devem ser chamados de “base governista”. Não há propriamente governo. Essa inédita solda entre Executivo e Legislativo se dá precisamente porque Temer abriu mão de governar. Quem acompanha este blog já leu posts em que analisei a fratura  que vejo entre o Executivo e o Legislativo no Brasil, e suas implicações para a chamada governabilidade. Essa contradição se dá porque o presidente da República (mesmo o menos apegado à ideia de realizar mudanças em benefício do povo) é empurrado pelos compromissos eleitorais e entra em choque com um parlamento comprometido com a desigualdade.

Como Temer não passou pelo voto, que é o vínculo do presidente com a sociedade; como Temer, por isso mesmo, não apenas se jacta de propor “reformas impopulares”, mas faz da propaganda delas uma cortina de fumaça para baixar medidas danosas ao país em matérias (mineração, proteção ambiental, trabalho escravo, perdão de dívidas empresariais etc) que sequer foram mencionadas no debate pífio das reformas; como Temer nada mais faz do que atender às demandas das maiorias facciosas que se formam no Congresso em torno desse ou daquele interesse; por tudo isso, ficou fácil “abolir” a fratura entre o Executivo e o Legislativo. A sociedade simplesmente não é levada em conta na hora de decidir como conduzir esse Estado de Direito Autoritário que, por isso mesmo, se encontra numa crise de legitimação. Ou seja:

  • diante da impossibilidade de governar com este Congresso
  • diante da necessidade e do compromisso de atender ao apetite dos congressistas profissionais sem contrariar os interesses dos grandões do mercado
  • aboliram a governabilidade e, assim, deram cabo da fratura entre Executivo e Legislativo

Gilmar Mendes, membro falante da facção hoje majoritária no jogo político-institucional brasileiro, enxerga na atuação da Câmara um sinal de “maturidade institucional” — é como se a manutenção do quadro atual fosse sinal de estabilidade; como se o papel das pessoas responsáveis fosse evitar fazer marola; como se as crises que estamos a viver pudessem ser superadas por este governo, por esta dinâmica institucional. Gilmar vê no atual conluio entre Temer e o Congresso o oportuno “parlamentarismo de ocasião” celebrado por Delfim Neto tempos atrás. Aliás, diante dessa verdadeira fusão entre o Executivo e o Legislativo, só inocentes ou mal intencionados podem deixar de ver o quão danosa seria a adoção do parlamentarismo entre nós.

Enfim, como dito quando da vitória de Temer na votação da primeira denúncia da PGR, tudo ficará, mesmo, para 2018, pois a última flecha de Janot deu n’água.

QUEREM NOVOS ESCRAVOS – E NEGANDO ABRIGO AOS ANTIGOS

Carlos Novaes, 20 de outubro de 2017

Diferentemente de todos os presidentes anteriores, até mesmo de Sarney, Temer já nasceu refém do Congresso. Essa é a marca permanente do golpe que ele estimulou, cujos benefícios herdou, mas que jamais protagonizou – o protagonismo coube aos picaretas que controlam o Legislativo brasileiro. Na condição de refém, o golpista tem de renegociar a cada dia não o seu governo (pois governo não há), mas a sua manutenção no cargo, o que é coisa muito diferente de governar. Na verdade, a República propriamente dita está sem presidente. Temer preside o Estado de Direito Autoritário que nos infelicita.

Em outras palavras, Temer preside a crise de legitimação do Estado e, por isso mesmo, atua ilegitimamente a cada decisão que toma, pois o quadro é de ilegitimidade total. Tanto é assim que ele está a se esforçar para conseguir não propriamente a maioria da Câmara (ação de rotina para quem ocupa a presidência da República), mas a minoria qualificada para barrar a segunda denúncia da PGR sobre os crimes dele. Em outras palavras, a crise de legitimação do Estado chegou ao ponto em que o presidente já não se ocupa de alcançar a chamada governabilidade, antes atua ciente de que jamais a terá.

É nesse quadro que devemos receber a portaria ministerial do Executivo que, em vésperas dessa nova votação decisiva na Câmara, atende aos interesses da bancada ruralista no que se refere à classificação do trabalho escravo: em mais um desrespeito à Constituição que já foi rasgada faz tempo, a nova norma tornou quase impossível classificar de análogo à escravidão o trabalho que, mesmo aceito pelo pobre diabo que o presta, atenta contra a própria vida do trabalhador. Gilmar Mendes, sempre ele, que é ministro do STF, já veio a público se somar à facção de Temer endossando a necessidade de rever a legislação, chegando a dar seu testemunho pessoal: declarou que embora execute trabalho exaustivo, não se vê como escravo – veja leitor a que ponto o ambiente faccioso instalado sob nossa inércia abriu franquia ao cinismo!

Essa decisão sobre trabalho escravo se deu na mesma semana em que foi retomado no STF o julgamento de uma ação do DEM (peça chave na sustentação do golpista no Legislativo), que pleiteia, com o apoio da suprapartidária bancada ruralista (sempre ela), uma revisão das regras de demarcação de terras quilombolas. As duas iniciativas, a do Executivo (gestão) e a do Legislativo (representação) mais uma vez desafiam o Judiciário (judicação) a se posicionar em matérias que agravam a desigualdade no país na contramão já não apenas da Constituição, mas da própria história do Brasil. Afinal, a escravidão foi abolida no final do século retrasado, mas a tigrada até hoje não se conformou e enxergou no vácuo aberto entre uma crise de legitimação do Estado combinada com uma esdrúxula inércia da sociedade uma oportunidade para fazer a roda da história girar para trás: querem a volta da escravidão e, ao mesmo tempo, inviabilizar a outorga de abrigo para os descendentes dos ex-escravos.

Como a situação é de luta entre facções, não há como tentar prever o que vai acontecer nem mesmo em matérias tão escandalosamente inaceitáveis como essas: Temer pode ou não recuar na chancela à volta da escravidão; o STF pode ou não dizer inconstitucional o reconhecimento das terras quilombolas – tudo vai depender do jogo das facções, que ganham desenho novo a cada momento, mas cujo caráter conservador e, até, reacionário só faz crescer.

Nossa inércia nos levou a ter um presidente que empenha nosso futuro para obter a minoria necessária à manutenção de um presente voltado a restaurar o passado que incautamente supúnhamos ter superado.

MAIA LAVOU AS MÃOS

Carlos Novaes, 15 de outubro de 2017

Quem acompanha este blog deve lembrar-se do que publiquei aqui — em três artigos escritos entre junho e julho passados — sobre a condição simbólica de Temer na presidência e de que, por isso, ele só cairia se a Câmara pudesse lavar as mãos – mas não antes de ele ter distribuído toda sorte de benefícios em troca do apoio dos políticos profissionais. A julgar pela entrevista de Rodrigo Maia à Folha de S.Paulo (publicada no fim da tarde de hoje no UOL), parece que se caminha para um desfecho assim.

Usando como pretexto uma declaração sem importância do advogado de Temer sobre a divulgação de videos que incriminam seu cliente, Maia assumiu ares de vestal ofendida e convenientemente deu o segundo passo explícito para a perdição de Temer (o primeiro fora justamente a publicação pela Câmara dos videos mencionados): disse que irá apenas presidir a sessão na qual a Câmara poderá, seguindo seu presidente, lavar as mãos e deixar Temer por conta do STF, uma vez que já não há o que arrancar dele que compense o desgaste de mantê-lo no cargo – pode ter chegado a hora em que falará mais alto a conveniência eleitoral de passar à “novidade” de Maia na presidência da República.

E essa hora pode ter chegado porque, para além do peso eleitoral da impopularidade de Temer, para além do fim das vantagens que o compensavam, talvez a cabeça do golpista seja o último pedágio a ser pago para chegar ao fim da longa estrada que tem sido a luta contra as facções republicanas da Lava Jato. A queda de Temer funcionaria como uma pinça para o fim da sangria, dando fecho ao que foi decidido no STF, que disfarçou como um gesto institucional (celebrado pelos institucionalistas de plantão) de respeito ao Legislativo um acerto podre com a banda não menos podre do Congresso, simbolizada na figura de Aécio.

Talvez não seja apenas um acaso o fato de o vice (e sucessor) de Maia na presidência da Câmara, deputado Fábio Ramalho (p-MDB de Minas) ter declarado recentemente que a Lava Jato precisa ter um prazo para acabar. Em resposta a ele, o procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima, da Lava Jato, afirmou: “acabar com a Lava Jato. Esse parece ser o próximo passo do p-MDB. Infelizmente muitas pessoas que apoiavam a investigação só queriam o fim do governo Dilma e não o fim da corrupção.” Eis uma conclusão que, além de tardia, não chega a ser brilhante…

Nesse embalo, já não parece tão certa a confirmação de alguma condenação para Lula e, então, terá chegado a hora de nos ocuparmos não do porquê de as facções republicanas da Lava Jato terem sido afinal contidas, mas sim de como foi possível que elas tenham chegado tão longe.