DESIGUALDADE E DESORIENTAÇÃO ELEITORAL

Carlos Novaes, 20 de outubro de 2022

Infelizmente, Bolsonaro vem aumentando sua maioria no Sudeste, região mais populosa e desenvolvida do país, enquanto Lula insiste na propaganda furada de que governar é uma ação social voltada a socorrer os pobres, sem entender que Bolsonaro fez maioria entre os não pobres que tampouco são ricos* precisamente porque Lula os abandonou!

Na raiz dos equívocos tremendos da campanha de Lula estão um erro propriamente político e um erro socioeconômico. Do erro político não vou tratar neste artigo, pois, como ele é o mais determinante, já o vimos extensamente em vários posts como, por exemplo, aqui, e no canal Lavoura Política: Lula e os seus erram ao não enxergarem a centralidade e a força político-eleitoral do sentimento antissistema, expressão da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário-EDA. Tratemos do erro socioeconômico, que se dá na incompreensão básica sobre a desigualdade: nossa autointitulada esquerda, no que é acompanhada pelos ditos progressistas, perdeu-se em falácias ao se abandonar preguiçosamente às facilidades de presunçosamente “explicar”, “contestar” e “enfrentar” a desigualdade pela oposição entre os 5% mais ricos e os 50% mais pobres. Querem nos fazer engolir que a mera ilustração de um aspecto do problema possa substituir um verdadeiro projeto para a solução do problema.

Façamos uma simples conta de somar: 5%+50%=55%. Como o universo da população é 100%, estão faltando na conta nada menos do que 45%. Quem se concentra na polarização fácil de 50 contra 5 fica impedido de sensibilizar aquela parte dentre 45% (classes médias) que não se vê como pobre e, ademais, oscila eleitoralmente segundo um repertório de preferências e interesses que, em última instância, estão emaranhados sobretudo em aspirações de melhoria material do padrão e da qualidade de vida. Quer dizer, essa fatia das classes médias (uma parte dos 45%), nem é reacionária (essa já foi para Bolsonaro), nem é socialmente progressista (essa já foi para Lula). Centrada em si mesma, ela não está afeita a aderir a projetos pretensamente totalizantes, de orientação geral, polarizados a ponto de exigir dela aquilo de que ela tem aversão: se engajar em uma missão coletiva (seja essa missão “salvar aos pobres da fome”, seja “salvar o Brasil do comunismo ateu”).

Essa franja das classes médias (repitamos: uma parte dos 45%) não vê nem a vida, nem o mundo, desse jeito totalizante — ela é mais pragmática e pé no chão, não havendo nessa posição mais estupidez ou lucidez do que em qualquer das outras faixas de preferência (como, aliás, tem sido mostrado à farta no conteúdo produzido por outras faixas dos 45% que estão engajadas e alimentam a polarização entre as campanhas nas redes sociais — Ah! as “vanguardas” de classe média não abrem mão de alimentar o, e se vangloriar do, que há de superficial em suas diferenças, para satisfação dos ricos e sofrimento dos pobres; entre Duviviers e Alans há graus para todos os gostos). Voltemos.

Por suas características, essa parte dos 45% que poderíamos realisticamente conquistar, nos períodos eleitorais se deixa oscilar segundo o que lhe chega no vento, ora dando maioria a um lado, ora a outro, sendo que esses lados jamais estiveram tão polarizados (e desorientados) como nesta eleição (daí esse verdadeiro túmulo da crítica que é o juízo de que “bom era o tempo de PSDB x PT“, justamente as duas forças que comodamente se dividiram para não enfrentar as duras tarefas que a centralidade da desigualdade impõe a quem quer transformar o Brasil).

Eleição após eleição nossa autointitulada esquerda, especialmente o lulopetismo, veio insistindo nessa retórica impotente do 50 contra 5, ainda mais vazia depois que eles se renderam à cláusula pétrea que degradou o Plano Real, ali onde se estabeleceu, na prática, que os ricos não podem perder, como mostrei detalhadamente aqui, quando discuti que do ponto de vista da luta contra a desigualdade o obediente lulopetismo já se fizera um cadáver. Ora, se os ricos não podem perder e, mesmo assim, se insiste em 50 contra 5, os 45% restantes serão levados às apreensões típicas de quem sente que vai pagar o pato quando as coisas derem errado… Como tem acontecido! (é aí que ganham tração as reações repelentes tipo “aeroporto virado em rodoviária”, o “escândalo do pobre fazendo medicina”, a revolta com “os direitos trabalhistas das empregadas domésticas” etc). Eis a soma nefasta: sentimento de pagar o pato + sentimento antissistema = maioria eleitoral de Bolsonaro entre os 45%, especialmente nos pequenos e médios municípios da região Sudeste, onde as classes médias imperam.

Nenhuma candidatura presidencial ofereceu à maioria da sociedade brasileira um projeto que ganhe para a luta contra a desigualdade essa fatia não reacionária dos 45% (a fatia progressista dos 45% já está conosco). Temos de conquistar essa fatia que ainda não entendeu, mas pode entender, que a desigualdade a atinge diretamente. Precisamos de um projeto que a leve a se dar conta de que a desigualdade não é um problema de 50 contra 5, mas de 95 contra 5 (reduzindo a uma minoria aquela parte dos 45 que sempre permanecerá aderida aos interesses dos 5% mais ricos). Mas isso não será alcançado insistindo, como faz a campanha de Lula, em “salvar os pobres”, “acabar com a fome”, “moradia popular”, “aumentar o salário mínimo”, “programas sociais de renda” etc. Tudo isso é fundamental, mas nada disso permitirá enfrentar, mesmo, a desigualdade no que ela tem de entrave ao desenvolvimento, à elevação da renda média e ao enquadramento social da acumulação da riqueza.

Por ignorância, oportunismo e preguiça, a autointitulada esquerda, com ajuda de “progressistas”, insiste no erro de confinar a luta contra a desigualdade à “solução” Robin Hood de tirar dos ricos para distribuir aos pobres segundo a fórmula de “botar os pobres no orçamento e os ricos no Imposto de Renda” – que burrice!! Nessa fórmula não aparecem as classes médias. Quer dizer, eles dão um chapéu nelas e depois querem que a maioria delas se faça nossa aliada na luta contra o enfraquecimento do Estado (e pior: um Estado que está em crise de legitimação em razão da corrupção, dos privilégios, do autoritarismo policial, das vantagens salariais indevidas, dos péssimos serviços públicos etc).

Olhada num único lance de amarração, vê-se que a campanha de Lula tem errado sistematicamente: 1. ao se desgarrar da percepção da maioria da sociedade, quando tratou os blefes golpistas de Bolsonaro como se fossem ameaças reais à democracia que a maioria de nós já garante; 2. ao deixar para uso de Bolsonaro o sentimento antissistema da maioria da sociedade brasileira; 3. ao abandonar à exploração de Bolsonaro as inseguranças das classes médias; 4. ao adotar um frentismo cujo projeto é uma conservadora volta ao passado, indevidamente glorificado; 5. ao nada de novo oferecer ao eleitor que quer mudança, nem mesmo ali onde isso é evidente, como no caso da Petrobrás, onde o passivo existente só pode ser transposto com uma proposta clara e ampla de mudanças na política energética, projetando a empresa para além do rebaixamento político que sofreu, e ainda sofre; 6. ao subir no salto alto a ponto de salpicar a campanha de sinais de revanchismo, exibindo uma falante Dilma em comícios, insuflando contraproducentemente o “vamos voltar”, e repetindo arrogantemente seja a defesa de ditadores, seja um tolo eu vou ganhar”. Tudo somado, é um milagre que Lula ainda esteja em primeiro lugar nas pesquisas.

Se ainda assim ganharmos, teremos tirado Bolsonaro do poder, mas continuaremos com todos os outros problemas. Se perdermos, ninguém poderá fingir que não sabe por quê.

* – Sem pretender rigor técnico, apenas para ilustrar o sentido geral do argumento, imaginemos aquela fatia do eleitorado que aparece nas pesquisas com renda entre (+) de 2 e (-) de 10 Salários Mínimos-SM.

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