Carlos Novaes, 21 de janeiro de 2023
Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente
Rosa Luxemburgo
No primeiro artigo desta série, discutindo o alcance do postulado de Luxemburgo reproduzido acima como epígrafe, vimos que a liberdade é degradada quando se torna bandeira política manejada segundo os interesses facciosos dos próprios defensores. Vimos também que tampouco subsistirá como legítimo o uso da liberdade de expressão para reivindicar a supressão da ordem política democrática.
Ora, no Brasil do Estado de Direito Autoritário–EDA em crise de legitimação, temos o debate público dominado por essas duas instrumentalizações da defesa da liberdade que criticamos no artigo anterior. Enquanto os progressistas & a autointitulada esquerda se orientam pela perspectiva liberal, e camuflam (até para si mesmos) como defesa da liberdade e da democracia o interesse que têm pelo mero controle do EDA; bolsonaristas & golpistas pregam “liberdade” para cinicamente defenderem a supressão da democracia em favor de um Estado ditatorial.
Além dos dois grupos acima, a cena política brasileira atual exibe na mídia os adeptos de um liberalismo de manual, que combinam afeição pela democracia com defesa furiosa de uma liberdade de expressão ilimitada, coisa de nefelibata, como se, em política, expressão não significasse, em última instância, ação.
Os três grupos têm em comum a mesma falácia: falam e agem como se já vivêssemos sob um suposto Estado democrático de direito — o primeiro grupo fantasia protegê-lo; o segundo blefa para suprimi-lo; o terceiro sonha aperfeiçoa-lo. Por isso mesmo, os três grupos não são igualmente daninhos em sua relação com a realidade do EDA: o primeiro quer manter o “de Direito” sem reconhecer o “Autoritário”; o segundo quer suprimir o “de Direito”, mantendo apenas o “Autoritário”; o terceiro quer abolir o “Autoritário” bramindo que é pelo “de Direito” enquanto defende liberdade para os que querem uma ditadura.
Como essa disputa facciosa em torno da liberdade e da democracia não começou agora, vamos prosseguir com dois tópicos: 1. Recapitulação de antecedentes; e 2. Reconfiguração das formações facciosas.
1. Recapitulação de antecedentes
Há muito se desenvolve neste blog a ideia de que a crise de legitimação do EDA resultou numa conflagração das facções estatais. Foi um salve-se quem puder entre os que se empenham no exercício faccioso dos poderes institucionais no fito de reunir poder para fazer dinheiro. Nessa conflagração, as facções insurretas acabaram por atropelar o “de Direito” também na luta entre si, isto é, elas passaram a empregar umas contra as outras as regras antes só manejadas contra os pobres e os fracos. Em outras palavras, houve uma generalização no uso das regras não escritas que amparam o dia-a-dia “Autoritário” do nosso Estado de Direito.
Na altura em que essa situação começou a ficar clara para quem quisesse ver, a autointitulada esquerda se revelara a formação facciosa mais fraca, o que permitiu o golpe contra Dilma e, depois, as arbitrariedades contra Lula, seja por parte de Moro, seja por parte de uma maioria no STF afinada com o facciosismo dos militares. Naqueles dias, os nossos liberais se dividiram na meta, mas não no método: escolheram lado, mas todos aceitaram ou fizeram vista grossa a toda sorte de atropelo ao “de Direito” quando esse atropelo atingia o adversário. Nessas águas turvas foi jogado o anzol do bolsonarismo para fisgar e deturpar o auspicioso sentimento antissistema.
Tal como entendeu quem acompanhou este blog nos últimos anos (lendo, inclusive, artigos como os apontados nos hiperlinks acima), o EDA em crise de legitimação não teria para onde correr sem Lula e, por isso, tudo desembocou no desarranjo da vitória de Bolsonaro em 2018. Mais adiante, depois do uso macabro que Bolsonaro fez das ferramentas institucionais do EDA, o labiríntico conjunto foi levado ao looping que trouxe Lula de volta com apoio de um ajuntamento eleitoreiro (no qual me incluí), ajuntamento que alguns denominaram impropriamente de frente (o que repeli).
2. Reconfiguração das formações facciosas
Com a vitória de Lula e os acontecimentos subsequentes — intervalo em que as frustrações geradas pela sucessão de blefes golpistas cobraram todo o seu preço —, a crise de legitimação do EDA entrou em uma nova fase, cujo cenário são esses embates em torno da relação entre liberdade de expressão, democracia e ordem estatal.
Em um de seus inúmeros e enfadonhos discursos depois do dia da posse, Lula declarou que “o Brasil vai voltar a viver em democracia”, como se tivesse havido algum momento sem democracia no período funesto dos desmandos de Bolsonaro. Ora, como já vimos detalhadamente aqui, os danos provocados pelo besta não estão no que ele disse contra a democracia, mas no que ele fez com os poderes desse Estado que ele recebeu de tucanos e petistas. Toda essa conversa de “defender a democracia” pela “pacificação” do país, com o acréscimo esperto de “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda” está a serviço de encobrir os novos adiamentos que Lula vai protagonizar na luta contra a desigualdade, cujo enfrentamento é a única via para nos levar a um Estado de Direito Democrático.
A reconfiguração facciosa do jogo de poder está em marcha batida: pelo lado paisano, parte do Centrão já aderiu ao governo Lula; pelo lado militar, Lula ficou para trás na hora mais importante, no dia 8 passado; em seguida sugeriu alguma firmeza diante do derrotado facciosismo dos militares falando em perda de confiança; e, mais adiante, cedeu a eles em palavra e ato: declarou em entrevista na Globo News que iria “pedir” aos militares pela não politização das FFAA (esquecendo-se da hierarquia democrática, pois segundo a Constituição o presidente é o comandante e, portanto, determina, não pede); e convidou os chefes das três forças para conversar sobre incremento orçamentário, quando a hora pedia que, no mínimo, eles fossem deixados de molho por algum tempo.
Hoje, entretanto, Lula deu um passo decisivo contra o facciosismo militar, dando provas de que entendeu, mesmo, que eles não têm escolha senão obedecer: exonerou o comandante do Exército que havia protegido os golpistas do acampamento do DF com blindados e nomeou em seu lugar um general que há poucos dias discursou à tropa defendendo o respeito ao resultado das eleições. Como a natureza do jogo é facciosa, porém, na junção do facciosismo paisano & militar Lula declarou-se firmemente contrário à instalação de uma CPI para investigar a arruaça do dia 8, pois, na opinião dele, essa investigação iria provocar tumulto, como que esquecido de que tumulto foi justamente o que aconteceu na Praça dos Três Poderes!
Já os patriotários (que neologismo maravilhoso) começaram sendo chamados impropriamente de terroristas, mas logo passaram ao papel desde sempre reservado para eles: estão, merecidamente, a pagar o pato! Não cabe chamá-los de terroristas porque não houve a junção do furor arruaceiro deles com o emprego do arsenal bélico que eles dispõem (comprar armas é, na verdade, parte da fantasia que nutre a forma do blefe, por isso arruaça histérica e estéril, não revolução). Como já explicado aqui, os golpistas sempre foram prisioneiros da covardia que os confinou ao jogo de “não fazer antes o que sabiam que o outro não ia fazer depois”: esperaram por Bolsonaro, esperaram pelos militares e, como Spike Lee, foram até onde podiam em sua fúria frustrada contra as três maiores pizzarias de Brasília, mas jamais se insurgirão contra os pizzaiolos.
Enquanto isso, Alexandre de Moraes entendeu o jogo e segue surfando na fraqueza dos oponentes (nossa autointitulada esquerda haverá de não perder por esperar), tornando-se o principal protagonista no enfrentamento do blefe golpista por meio do manejo dos poderes constitucionais e infra legais para além do que teria sido possível se vivêssemos num Estado de Direito Democrático. Todo o ímpeto de Moraes não deixa de ter semelhanças com o voluntarismo de Bolsonaro, e deve ser por isso que, assim como os partidários do besta o chamavam de Mito, os fãs de Moraes o chamam pelo epíteto não menos ridículo de Xandão.
Naturalmente, como já detalhado aqui e em outros textos deste blog, as atitudes de Moraes não me incomodam (ainda), mas seria cinismo além da conta negar que boa parte dessas ações está coberta não pelo “de Direito”, mas pelo “Autoritário” que caracteriza o EDA. Daí a ginástica retórica dos progressistas e da autointitulada esquerda ante as flagrantes contradições entre o suposto Estado democrático de direito que dizem existir e as arbitrariedades necessárias ao enfrentamento dos golpistas. Na mesma linha, temos a gritaria dos liberais de manual, que, inspirados em ordenamentos legais de outros países, pretendem garantir o suposto direito de alguém defender a supressão da democracia.
Quando, tão ao gosto de Lula, a poeira baixar, veremos as velhas rotinas se reinstalarem e, talvez, mais gente vá se dando conta de que nosso hígido sistema eleitoral, franquia democrática fundamental para o que há “de Direito” no EDA, terá, mais uma vez, servido paradoxalmente a rearranjos facciosos e não ao início da luta por um Estado de Direito Democrático, ordem política indispensável à garantia de que liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente.