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Textos em que se defende a ideia de que o problema da representação está no fato de a política ter virado uma carreira.

GENERALIZAÇÃO DA REGRA É EXCEÇÃO BEM-VINDA

Carlos Novaes, 03 de julho de 2017

 

Quem, a essa altura dos acontecimentos, enfatiza mais os defeitos do que as qualidades dos desdobramentos da Lava Jato tem de estar ou comprometido com o que há de errado na política brasileira, ou confuso diante do que acontece nela. Exemplo máximo de comprometimento é a ação combinada dos advogados de Lula, Aécio e Temer para atacar a Lava Jato. Exemplo cabal do que há de confusão é questionar excessos das facções republicanas da Lava Jato invocando a preservação do Estado democrático de direito e/ou fazendo a apologia da política como profissão. Esmiucemos isso.

Segundo a vanguarda jurídica que, no teatro de operações da Lava Jato, defende contra a maioria da sociedade brasileira os interesses do partidão dos profissionais da política (p-MDB+PT+PSDB+Satélites),  a ameaça que paira sobre o Brasil é um Estado de Exceção, que estaria a brotar das providências tomadas contra os interesses dos seus clientes pelas facções da Lava Jato com orientação republicana. Ora, o que eles estão chamando de exceção é o uso contra os seus clientes do que sempre foi a regra em favor deles, e contra a maioria dos cidadãos brasileiros, na atuação do nosso Estado de Direito Autoritário: trata-se do velho exercício faccioso dos poderes institucionais, no qual “quem pode mais, chora menos”.

É assim de uma ponta à outra da pirâmide social: seja lá no topo da pirâmide, nas licitações fraudulentas, que distribuem ilegalmente o dinheiro público entre poucos, protegendo os empresários graúdos das dificuldades das chamadas leis de mercado que eles fingem defender (essas “leis” só valem contra os pequenos empresários, para evitar a concorrência e a alternância); seja nos segmentos intermediários da pirâmide, onde setores da classe média se veem achacados ilegalmente pelas pequenas autoridades e, ao mesmo tempo, disputando uns contra os outros, com graus variados de ilegalidade, as oportunidades escassas que são criadas para as classes médias pela ordem voltada a manter a desigualdade; seja lá na base da pirâmide, onde o emprego ilegal e ilegítimo da violência do Estado pelas Polícias Militares garante, pelo pavor em que mantém os pobres, a mesma ordem desigual de que as licitações fraudulentas são, hoje, o exemplo mais vistoso.

Ou seja, o que eles chamam de exceção é a regra ter, pontualmente, se voltado contra eles.

É justamente porque houve essa inversão pontual no exercício faccioso dos poderes institucionais que nossos analistas movidos por “convicções” estão confusos. Afinal, como defender o Estado democrático de direito em que eles julgam viver e, ao mesmo tempo, apoiar as facções da Lava Jato mais assertivas contra os desmandos que inviabilizam uma República democrática?!? Então, eles nos torturam o entendimento: escrevem duros artigos contra a corrupção e querem punir os corruptos, mas choramingam no artigo seguinte contra as inconstitucionalidades cometidas por quem está a investigar e a punir os corruptos. A confusão desses analistas, leitor, decorre do apego deles (muito natural, aliás) a uma vida cômoda: primeiro, jamais se voltaram contra as inconstitucionalidades perpetradas diariamente contra o povo pobre precisamente porque elas são diárias (não daria, mesmo, para denunciar todas… – então, preferem comodamente acreditar que vivem num Estado democrático de direito); segundo, e porque vivem na bolha social que permite aquela primeira fantasia cômoda, eles veem nessa ou naquela inconstitucionalidade cometida pela facção republicana da Lava Jato sobretudo uma oportunidade para comodamente pavonearem a isenção com que se apegam à fantasia de que vivem sob um Estado democrático de direito. Muitas carreiras acadêmicas dependem do sucesso em se equilibrar nessa prancha…

A essa defesa canhestra de um Estado democrático de direito supostamente existente se soma uma desonesta defesa da política, que estaria sendo demonizada pelo desenrolar da Lava Jato (como se nossa ojeriza aos políticos profissionais pudesse ser confundida com uma recusa à política). Não chega a surpreender que a articulação dessas duas mentiras apareça na boca de Gilmar Mendes em manifestação recente num evento da Fiesp voltado, vejam só, à apologia dessa armadilha contra nós que é a Reforma Política: “quem sonha com democracia de juiz, ou com uma ditadura de juiz – alguns dizem, ‘ah, é iluminado’—, desconfie. Não há salvação fora da política e dos políticos”.

Veja, leitor, a sutileza: cria um suposto sonho acerca de um regime de juízes, solução que não é defendida por ninguém, apenas para fazer crítica despeitada à facção republicana da Lava Jato (contrária à sua própria, no STF) e chegar ao principal, que é confundir a defesa da política com a defesa dos políticos profissionais, como se a política só pudesse, e só devesse, ser exercida por eles. É nessa linha que já vão outros magistrados, como Marco Aurélio Mello, que não apenas negou a prisão de Aécio, como lhe devolveu o exercício do mandato fazendo questão de louvar exatamente o que está sub judice, a legalidade e a legitimidade da carreira do mineiro…

A confusão é tanta que esse modo de defender o status quo tem recebido apoio técnico até involuntário, como dá exemplo um artigo recente de Angela Alonso, na Folha de S.Paulo. Lendo Weber de maneira anacrônica e pouco proveitosa, a socióloga confundiu vocação política com profissionalização da política e nos brindou com um raciocínio que é a expressão do beco sem saída em que se meteram esses naturalistas que se arvoram em representantes da tradição crítica: “sem políticos profissionais, que acumulam experiência ao longo de carreira específica, a gestão da vida pública ficaria à mercê de aspirantes tendentes a inventar regras ‘ab ovo’, como se não houvesse aprendizado coletivo.”

Alonso diz óbvio o raciocínio acima, quando óbvio é o absurdo dele, afinal, o que a crise brasileira está a demonstrar é que o aprendizado coletivo a ser celebrado é o da sociedade, não o dos políticos profissionais. A memória/aprendizado a ser preservada e reenviada periodicamente à dinâmica institucional é a da sociedade, em sua incessante mudança na busca por acertar, memória essa contraposta à dos profissionais da política, para quem o limite da mudança é a continuidade da própria carreira, voltada a simular a representação do aprendizado coletivo: é esse contraste entre memórias que explica a reação legiferante em curso no Congresso, onde proliferam e se aprovam leis assumidamente impopulares.

Supor que o fato de eleger representantes fora do mundo dos profissionais de carreira nos deixaria nas mãos de neófitos arbitrários exige mais do que pensar que a política é regida pelas trivialidades positivistas da socióloga, pois requer não ter compreendido nada sobre a formação e o exercício da preferência coletiva sob dinâmica democrática – afinal, ao fim e ao cabo, não só ninguém é eleito por si mesmo, como não há porque supor nem que os vínculos dos novos representantes com seus representados sejam menos vivos do que os dos profissionais (pelo contrário), nem que o exercício da representação tenha mistérios intransponíveis pelos neófitos. Difíceis de transpor são as maracutaias em que se especializam os profissionais, cujos laços mais fortes não são feitos com o eleitor, mas entre eles mesmos, como discuti aqui e como, mais uma vez, está a demonstrar a articulação suprapartidária contra a Lava Jato, discutida mais acima.

Tanto a invocação de um suposto Estado de exceção, como a defesa de uma não menos suposta indispensabilidade dos políticos profissionais deixam de lado o essencial: as traficâncias da política profissional herdada da ditadura nos conduziram a uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Nessa crise, com a generalização do exercício faccioso dos poderes institucionais, o Estado se apresenta conflagrado, e o Judiciário foi arrastado para fora da sua rotina, como antes vieram sendo o Legislativo e o Executivo. Pretender a isenção dele na judicação é tão tolo quanto tem sido exigir que o Congresso nos represente ou que o Executivo faça a boa gestão da coisa pública. Em outras palavras, diante das circunstâncias havidas, pedir que o Judiciário tenha um comportamento estritamente legal faz tanto sentido quanto pedir ao Temer que faça um bom governo, ou pedir a este Congresso que aprove boas leis!

O que orienta esses apelos é a expectativa inercial, preguiçosa, comodista, de que a crise se resolva pela ação do Estado. Então, primeiro, se fez uso do velho truque de rifar o Executivo – não apenas não bastou, como a crise recrudesceu depois da queda de Dilma; depois, se descreu do Congresso – não deu resultado, pois ele continuou a legislar contra nós, enxergando em nossa descrença inerte uma franquia para o exercício de sua autonomia nefasta; então, todas as esperanças se voltaram para o Judiciário – mas, como não poderia deixar de ser, ele também não pode oferecer a saída, poder “derivado” que é do jogo entre os outros dois (afinal, os juízes do STF e o Procurador Geral são escolhidos pelo presidente e referendados pelo Senado).

Se a sociedade não compreender o que se passa e não agir segundo essa compreensão a adquirir, o término dessa marcha inercial será a porta dos quartéis ou uma saída eleitoral autoritária! Toda essa errância pelas instâncias do Estado se dá pela recusa ou inaptidão para encarar um fato simples: estamos diante de uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário – logo, a saída já não está no Estado, mas, pelo contrário, depende inteiramente da sociedade, cuja governabilidade é que legitima o mando. É hora de nos mostrarmos ingovernáveis por essa gente.

FACCIOSISMO REPUGNANTE

Carlos Novaes, 22 de setembro de 2016

O Estado brasileiro se acha ocupado por facções entrincheiradas que lutam pelo poder para preservar os próprios interesses, que são, em última instância, subalternos ao interesse maior dos muito ricos: a manutenção da desigualdade. Por razões que já explorei em três das séries mais recentes publicadas neste blog, e em outros artigos conexos, esse blocão convulsionado formado pelos maiores partidos brasileiros assentados no Congresso (representação), por grandes empresas (mercado), por setores fundamentais da burocracia estatal (Judiciário e polícias) e pelo Executivo (gestão), esse blocão, como eu dizia, está de costas para a sociedade e briga entre si pelo proveito a ser tirado da ira popular que este descaso, deles próprios, gera.

Alguns lances recentes permitem ilustrar com clareza esse jogo nefasto:

– A aprovação em comissão do Senado (representação) de restrições à distribuição do Fundo Partidário, à posse em mandatos e do tempo de TV aos pequenos partidos.

A propaganda diz tratar-se de medidas para restringir o incentivo à manutenção e à criação de partidos de aluguel, melhorar a representação e tornar menos custosa a obtenção da governabilidade. Tudo falso, assim como outras feitiçarias, de que já tratei aqui.  No caso do Fundo Partidário, a mudança reforçará com mais dinheiro os partidos que já são grandes, distorcendo ainda mais nossa dinâmica de representação. Como há tempos defendi aqui (artigo onde também adverti sobre o papel futuro de Cunha na articulação da miuçalha da Câmara) e aqui, o Fundo Partidário tem de ser extinto, não concentrado em benefício de poucos. Isso sim acabaria com o incentivo aos partidos de aluguel. Temos de obrigar os partidos a correrem atrás do dinheiro, assim como têm de correr atrás do voto. O fato de que o p-MDB, nosso mais vistoso partido de aluguel, sairia dessa manobra com ainda mais dinheiro público é uma evidência de que essa mudança não nos serve.

No caso da restrição à posse em mandatos, a cláusula de barreira pretendida vai levar à perda de representação, reforçando o poder das rotinas já encasteladas no Congresso contra as forças da mudança atuantes na sociedade. Junto com o reforço da concentração do dinheiro do Fundo Partidário nos que já são grandes, a cláusula de barreira poderá significar o fim dos pequenos partidos autênticos, digam-se eles de esquerda ou de direita. Se somarmos a isso as restrições no acesso à TV, verdadeira mordaça contra quem pensa diferente, teremos o pior dos arranjos possíveis quando se pensa em consolidação da democracia.

O correto seria extinguir o Fundo Partidário (medida que seria mortal para os muitos partidos de aluguel de pequeno porte), se mantendo as normas atuais para a posse nos mandatos e distribuindo-se de maneira mais democrática o tempo de TV. As dificuldades que uma dinâmica de representação (Legislativo) desse tipo imporia para a gestão (Executivo) não seriam maiores do que aquelas que vêm sendo impostas pelos partidos de aluguel, sejam eles grandes ou pequenos. Na verdade, os cardeais do Congresso imaginam que essas mudanças tornariam mais fácil para eles submeter seus ávidos subordinados. Talvez eles tenham razão nisso, mas o custo para nós desse “sucesso” não seria menor do que esse que já vimos pagando pela briga miúda deles, pois a avidez final continuará a mesma.

 – Tentativa de descriminalização, na calada da noite e sem prévio aviso, dos esquemas de caixa2.

Ao lado da lei já aprovada, com o beneplácito do PT e do PSDB, para o repatriamento de dinheiro escondido, essa manobra tentada ontem, também com a participação de PT e PSDB, é das mais emblemáticas no esforço deles para conter o que ainda pode haver de danoso ao sistema político enquanto tal no teatro de operações da Lava Jato — sem prejuízo do que de danoso a facção paranaense ainda possa trazer ao PT, visto que não se trata de uma conspiração, mas de luta política no âmbito de uma abóboda de convergências ditadas pela profissão de político. Em suma, enquanto Temer marcha na direção da reação, o banditismo avança no Congresso Nacional, e a facção paranaense aprofunda seu unilateralismo espetaculoso contra o PT, como nessa prisão do ex-ministro Guido Mantega, revogada por Moro tão logo se deu conta de que havia, mais uma vez, ido longe demais.

Lá onde não chegar nosso cinismo é que será o ponto de partida para uma transformação nesse estado de coisas intolerável.

 

CONSOLIDAÇÃO DO AUTORITARISMO

 Carlos Novaes, 16 de setembro de 2016

“O Estado é de direito e a democracia é uma construção permanente, responsabilidade de todos”. Ministra Cármen Lúcia, em seu discurso de posse na presidência do STF.

Vejo nesta frase, em que a presidente do Supremo Tribunal Federal separou Estado de direito e democracia, um fundamento para a ideia de que vivemos sob um Estado de Direito Autoritário: ao não aceitar a trabalheira que a democracia como construção permanente requer, a maioria da sociedade brasileira se acomodou ao Estado de Direito saído da ditadura e, agora, recebe como desordem e arbítrio a ressaca da sua própria preferência pela inércia. Os mais conservadores ressaltam o que há de desordem na situação; os mais libertários salientam o que há de arbítrio nela. Mas essa oposição é em si mesma falsa, fajutice que replica toda a ordem vicária em que vivemos, que já não cabe na velha oposição esquerda X direita. Aliás, não é por outra razão que muita gente de bem encontra dificuldades para acomodar dentro de si os sentimentos suscitados pela avacalhação atual, no Brasil e no mundo.

Uma atitude transformadora requer que reconheçamos como real e indesejável tanto o déficit de ordem quanto o atropelo aos direitos que acompanham este continuado e contumaz exercício faccioso dos poderes institucionais que nos infelicita. Ninguém que queira transformar o país para melhor pode enxergar como promissor nem o pendor acomodatício das facções congressuais (que rasgam a Constituição para distribuir punição e perdão segundo o que identificam como benéfico à própria sobrevivência); nem o voluntarismo da facção paranaense da Lava Jato (que, sufocada pelas facções adversárias, armou um circo “evangélico” para animar crenças de uma platéia já cativa, ao invés de oferecer provas à cidadania exigente); e tampouco se pode aceitar a não menos facciosa modorra procedimental do braço federal da Lava Jato, onde impera o tratamento desigual a situações iguais, e ministros do STF chegam a desdizer hoje o que escreveram ontem.

Na tentativa de buscar a raiz dessa situação intolerável em que nos encontramos, tenho escrito neste blog séries e artigos que podem ser resumidos assim: vivemos sob um Estado de Direito Autoritário, cujas rotinas estão voltadas à manutenção de uma desigualdade que favorece aos muito ricos. Não fizemos a ruptura político-institucional com a ordem política que nos foi legada pela ditadura e, por isso, deixamos que levassem o Estado de Direito conquistado a se acomodar ao exercício faccioso dos poderes institucionais que desde sempre marca a vida brasileira, e que recebeu desenho especialmente perverso na ditadura (arbítrio na gestão + eleições para a representação).

O fato de o colapso do pacto do Real ter levado à erosão, como falsas adversárias entre si, as duas principais forças políticas em que a sociedade depositara sua confiança pós-ditadura, o PSDB e o PT, alçando à condição de protagonistas forças que deveriam ter sido definitivamente derrotadas por uma consolidação da democracia (p-MDB e ARENA), deixa evidente que desperdiçamos nossas melhores oportunidades: nos abandonamos à continuidade, negligenciamos as possibilidades de mudança e não nos empenhamos pela transformação. A balbúrdia institucional em que nos encontramos, com o Estado a abrigar uma devastadora luta de facções, torna cada vez mais difícil sustentar que há ganhos incrementais a comemorar, e cobre de ridículo a ideia de que vivemos em uma democracia consolidada.

Diante desta situação, tenho defendido neste blog duas propostas políticas, uma de ânimo perene; outra, conjuntural. A primeira é o fim da reeleição para o Legislativo; a segunda é a realização de eleições federais para a escolha de um novo Congresso e de um novo presidente da República. Sustento que o mecanismo que permite a continuidade paradoxal de um mando assim turbulento (entre eles) e tão intolerável (para nós) é a rotina da reeleição para o Legislativo. A única saída para esta crise de legitimidade do nosso sistema político, marcado por uma representação traidora e por uma presidência golpista, é a devolução do poder ao povo através da convocação de eleições federais, para as quais não poderiam se candidatar à representação aqueles que detém, ou detiveram, mandato legislativo.

Ambas as propostas dependem, é claro, de um amplo e aguerrido movimento de desobediência civil, isto é, só serão alcançadas se nós, a sociedade brasileira insatisfeita, recusarmos a nossa governabilidade ao mando cada vez mais intolerável dos políticos profissionais. Essa recusa exigirá que saiamos à rua libertos dessa polarização fajuta entre PT e PSDB. Ou fazemos isso, ou viveremos a conclusão, contra nós, do movimento em pinça a que as circunstâncias já empurram os dois dispositivos que nos foram legados pela ditadura (o paisano e o militar), que iniciaram uma marcha sem conspiração totalizante ou plano geral prévio, mas que ganha nefasto sentido convergente a cada passo: retrocesso no marco legal da vida político-social (com a correspondente gestão reacionária e fraudulenta dos recursos do Estado) e intensificação do arbítrio policial (com o apoio da religiosidade reacionária). O mais provável candidato dessa nova solda eleitoral do entulho autoritário (p-MDB + PM, com o beneplácito garantidor das Forças Armadas, cada vez mais “prestigiadas”) é o governador de S. Paulo, Geraldo Alckmin, que, além de providências mais notórias, deslocou seu truculento secretário de segurança para a função de ministro da justiça (!) de Temer e, se necessário, se filiará a um partido “socialista” (o PSB) – você concebe alternativa pior, leitor?

VITÓRIA DE MAIA FECHA A JANELA À TRANSFORMAÇÃO ABERTA PELA LAVA JATO

Carlos Novaes, 17 de julho de 2016

Quem já leu outros posts deste blog, como os da série iniciada aqui, sabe que há anos venho explorando as conexões entre nossa desigualdade e nossa crise de representação política, problemas que, a meu ver, estão na base de nossas crises econômicas e políticas. A política brasileira é vítima de um longo cativeiro, sequestrada que foi pelas rotinas impostas por aqueles que fizeram da representação uma ferramenta para alcançar seus próprios interesses, que alimentam a manutenção da desigualdade e se opõem aos interesses da maioria da população, que sofre as consequências dela. Para sair disso precisamos de uma outra representação política, pois só ela nos permitiria adotar procedimentos de combate eficaz à desigualdade, o que destravaria o desenvolvimento pleno do país – o problema principal, portanto, é a política, e qualquer mudança real só ocorrerá contra a política profissional, cujas mazelas centrais a Lava Jato e seus desdobramentos puseram a nu nesses quase vinte meses de crise e “crise”, período no qual a sociedade brasileira teve oportunidade de iniciar um processo de transformação.

Infelizmente, porém, deu-se o mais provável, e a eleição de Rodrigo Maia (DEM, ex-PFL, saído da ARENA) para a presidência da Câmara dos Deputados indica que os políticos profissionais se reorganizaram em campo e, assim, fechou-se a janela de oportunidades à transformação política que havia sido aberta pela Lava Jato, cujo braço republicano ainda irá espernear por algum tempo, mas sem provocar qualquer novo estrago significativo no bloco de poder que se refundiu. Em outras palavras, a maioria facciosa que elegeu Maia, hegemonizada pelas facções que tem projeto de poder (para fazer dinheiro), derrotou o ajuntamento não menos faccioso de pequenos partidos que tem apenas projeto eleitoral (para fazer dinheiro), que se havia fortalecido de maneira extravagante no curso da desorientação provocada pela Lava Jato. Acompanhando o curso da liderança funesta de Eduardo Cunha, o chamado Centrão viveu a ascensão e a queda de sua agenda de miudezas, que foi devolvida aos bastidores da dinâmica parlamentar tão logo se completou o rearranjo no bloco de poder, que dentro em breve deterá coordenação suficiente para — apoiado nesse “parlamentarismo de ocasião” do “é dando que se recebe” — voltar a distribuir vantagens que contentarão esses agrupamentos minoritários momentaneamente rebelados e permitirão alcançar a governabilidade deles.

Essa refundição do bloco de poder foi possível porque ao impedirem que Lula assumisse a Casa Civil sob Dilma seus adversários eleitorais mantiveram o propósito de remover a ele e seu PT do protagonismo, mas sem perder de vista que não podiam abrir mão de seus préstimos para a reconstrução, em outros termos, e sob novo protagonismo, do que a Lava Jato havia destruído da ordem política que beneficia a eles todos. O curso das negociações políticas que se deram no teatro de operações da Lava Jato levou Lula e seu PT a acabarem por aceitar o impeachment de Dilma e, assim, puderam voltar por inteiro à condição de força subalterna, vale dizer, de oposição, no bloco de poder em que desde a eleição de 2002 figuravam como protagonistas. Dessa perspectiva, o apoio de Lula à candidatura de Maia, que foi decisivo para a vitória contra Cunha, não foi nem um erro de cálculo da “esquerda”, nem mais um episódio na derrocada do ex-presidente. Não foi um erro de cálculo porque Lula e os seus compreenderam que o que estava em questão já não era o ex-mandato de Dilma, mas a reconfiguração do bloco de poder que permite a todos que o jogo da política profissional seja jogado. Não foi mais um episódio da derrocada de Lula porque essa vitória conjunta demarca o início da sua recuperação, pelo menos no âmbito das relações internas do bloco de poder dominante desafiado pela Lava Jato a se reinventar.

Depois da investidura de Temer, a eleição de Maia é mais um passo no refreamento da Lava Jato, processo que se concluirá em breve com a cassação do mandato de Eduardo Cunha, pois a morte política do ogre do Rio (cuja obstinação obtusa acabou por se revelar conveniente) dará pegada à narrativa de que o jogo se concluiu com êxito, o que por certo contentará a grande maioria da nossa sociedade inconsequente, que não vai realizar tudo isso como mais uma derrota sua. Em outras palavras, a investidura de Temer foi uma derrota de Lula, pois o afastou do protagonismo nessa fase do jogo, mas os passos seguintes seguem a mesma lógica política que Lula teria dado ao sistema se tivesse chegado a assumir a Casa Civil – como apontei aqui, a diferença está em que na variante concluída prevaleceu o cálculo dos que jogaram para unilateralizar a Lava Jato contra o lulopetismo e em favor de seu próprio projeto de poder (p-MDB, PSDB e satélites).

Finalmente, corresponde a uma lógica profunda, nada tendo de casual, que a neutralização do potencial emancipatório da Lava Jato seja sacramentada através da eleição de um novo presidente para a Câmara dos Deputados, e que este presidente seja do antigo PFL. Afinal, se o presidente deposto da Câmara foi justamente aquele que buscou tirar da balbúrdia instalada pela Lava Jato todo o seu potencial desestabilizador contra o mandato de Dilma, que era hostil aos seus interesses miúdos; ao novo presidente dela cabe precisamente o contrário, dar estabilidade parlamentar ao arranjo político alcançado com a entronização golpista de Temer na presidência, um aliado seu. Que Rodrigo Maia seja do antigo PFL não é casual porque estamos em plena onda de interinidades pela falência dos dois protagonistas do pacto do Real, o PT e o PSDB, circunstância que traz para o proscênio justamente as forças auxiliares da ditadura (p-MDB e PFL) que ambos mantiveram vivas para poderem se engalfinhar improdutivamente um contra o outro, engalfinhamento que os levou à condição periférica em que estão, e condenou o país ao malogro das esperanças falsas que eles haviam suscitado na consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático. A sociedade brasileira está de volta à situação política de luta contra a desigualdade do final da ditadura paisano-militar, tendo que se contentar com essa nova partição de poder entre p-MDB e ARENA, só que agora sem contar com uma força emancipatória como a que o PT significou naquela altura. O país regrediu e a luta será duríssima para quem perseverar em combate contra a desigualdade.

A LAVA JATO E A “GOVERNABILIDADE” — 2 DE 2

Carlos Novaes, 18 de junho de 2016 – 21:00h

Embora haja não pequena confusão nos usos dados ao termo, há tempos ficou estabelecido entre nós que “governabilidade” é o nome de algo que o Executivo tem ou não tem no exercício do governo, a depender da relação que mantenha com o Legislativo respectivo. No caso da gestão federal, essa lógica supõe que a governabilidade depende das relações do governo com a representação assentada na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Em uma série de seis artigos recentes, iniciada aqui, discuti aspectos estruturais das relações Executivo e Legislativo, apontando que herdamos da ditadura paisano-militar uma fratura estrutural entre estes dois poderes da República. Nesses termos, uma vez obedecidos os parâmetros estruturais da nossa democracia eleitoral engatada a um Estado de Direito Autoritário, a chamada governabilidade seria, no limite, inalcançável, uma vez que esses parâmetros dão, por sua vez, forma a um modelo político insustentável, condenado ao improviso e à incerteza, porque centrado na manutenção de uma desigualdade que inviabiliza o país.

Ter essas ponderações em mente, especialmente no contexto da Lava Jato, é fundamental para que observemos com discernimento as dificuldades de Temer para governar. Essas dificuldades tem uma dimensão estrutural e uma outra, conjuntural. A dimensão estrutural das dificuldades que Temer enfrenta é a mesma que desafiou todos os presidentes do período pós ditadura: um Legislativo depositário de rotinas antigas, e majoritariamente comprometido com a manutenção da desigualdade, se choca com um Executivo não menos comprometido com a manutenção da desigualdade, mas acossado pela vontade de mudança da sociedade, via democracia eleitoral. Enquanto não há marola, a governabilidade lastreada na desigualdade não enfrenta desafio maior do que dar alguma coisa aos de baixo e satisfazer o apetite dos envolvidos no exercício faccioso dos poderes institucionais e, com isso, nossa democracia parece funcionar segundo um jogo institucional maduro entre poderes (foi assim, com senões, sob FHC e Lula).

Mas quando as trincas do modelo afloram, o Legislativo, aferrado a suas rotinas, transfere para o Executivo, na forma da não-governabilidade, os problemas advindos do desencanto popular com os desmandos e erros de que ele também é responsável (casos de Sarney e, logo-logo, Temer) — o desenlace mais extremo dessa engenhoca é o impeachment (foi assim com Collor e com Dilma). Enquanto o Legislativo não for arrancado por nós do seu apego à rotina de representar a si mesmo em obediência aos interesses dos de cima não haverá Executivo capaz de governar sem ter de prestar vassalagem a essa rotina, comprometendo com isso suas promessas de mudanças favoráveis à maioria, por mais limitadas que elas sejam. Nessa rotina está alojada a corrupção, que é o azeite da engrenagem.

A essa dimensão estrutural Temer vê somar-se uma dimensão conjuntural especialmente desfavorável à chamada “governabilidade” porque, embora sua investidura no cargo, através da derrubada de Dilma por uma contundente maioria do Legislativo, aparente ter posto fim à polarização Legislativo X Executivo, ela, na verdade, pôs fim (e a nu) apenas ao que havia de fajuto nessa polarização, pois, em suas roupas conjunturais,  essa polarização era apenas uma pantomima pela qual os agentes, ao culparem Dilma, pretenderam salvar a si mesmos de abismarem-se na fratura política do modelo que vinham compartilhando com ela: a crise de representação que atinge o Legislativo e que veio à tona com a Lava Jato e seus desdobramentos.

Temer é herdeiro da diferença conjuntural entre Collor e Dilma: no caso Collor o lulopetismo e o PSDB ainda estavam fora do bloco de poder que ruiu com o malogro do plano Collor, ao passo que o caso Dilma se dá numa conjuntura em que ruiu o bloco de poder instituído pelo Real, ao qual o lulopetismo aderiu em 2002, como já analisei aqui e aqui. Assim, se, em tempos idos, a queda do presidente Collor abriu terreno para a polarização entre os então “mudancistas” e os então “transformadores” (PSDBxPT), dando sobrevida vicária ao modelo da transição “lenta, gradual e segura”, como detalhei aqui; hoje, a queda da presidente Dilma se abre para o abismo, uma vez que o modelo se esgotou sem que a sociedade tenha engendrado uma alternativa.

Para incautos ou espertalhões a investidura de Temer pode ser defendida como tendo posto fim tanto à fratura estrutural quanto à conjuntural entre Executivo e Legislativo, afinal, diriam eles, Temer está a conduzir um governo de braços dados com a representação congressual… Entretanto, o que solda essa harmonia precária não é uma convergência pela mudança, que teria levado ambos os poderes a abandonarem a velha rotina; pelo contrário, o governo golpista de Temer promove a fusão dos dois poderes através do calor da velhacaria empenhada em escapar das consequências republicanas da Lava Jato e a enjambrar um modo novo de operar os mesmos interesses e segundo a mesma rotina. Foi a isso que o tarimbado Delfim Netto celebrou na Folha como um “hábil parlamentarismo de ocasião”, monstrengo institucional voltado a obter, através de uma maioria facciosa, o “ajuste fiscal” necessário a mais uma volta no parafuso da desigualdade, agora contando com a “lei Dilma” contra o terrorismo. Tem tudo para dar errado, mas, como sempre, infelizmente pode, mesmo, dar certo.

A manobra deles tem tudo para dar errado porque, em meio a uma crise econômica, o que chamamos de Lava Jato vem tornando cada vez mais difícil aos profissionais da política escamotear a crise  de representação, que é a expressão terminal do aspecto político da crise do modelo “seguro” que reuniu desigualdade extrema com democracia eleitoral, sob um Estado de Direito autoritário. Essa crise de representação é antiga, mas veio sendo encoberta com as esperanças suscitadas pelas saídas econômicas com que o modelo veio se reinventando: planos Cruzado, Collor e Real, mais o “desenvolvimentismo” do lulopetismo. Cada uma dessas “saídas” foi protagonizada pela vanguarda da vez, tendo como voz dissonante um ou mais dos opositores da ocasião, conjunto que dava a ideia de que se marchava adiante. Com Dilma passamos a marchar no pátio e com a queda dela ficou claro que não há, mesmo, para onde marchar: querendo se separar, p-MDB e PT se reencontraram na ruína, o p-MDB como a vanguarda da ruína e o PT como a ruína da vanguarda.

Conclusão 2: se já não há para onde marchar, temos de dispersar (a eles e a nós), ganhar a rua, para encontrar outro(s) ponto(s) de convergência. Como já defendi aqui, temos de arrancar novas eleições federais (presidente, senadores e deputados),  nas quais não mais reelegeríamos ninguém para o Legislativo. Essas eleições seriam realizadas junto com a eleição municipal deste ano, instituindo-se um novo calendário eleitoral para o país. Continuaríamos com este formato ótimo de mandatos de quatro anos com eleições a cada dois anos, o que nos permite manter a representação sob vara curta, mas com as eleições estaduais, já em 2018, separadas das eleições federais e municipais, que passariam a se dar juntas a partir de 2016.

Mas a manobra deles pode dar certo porque, infelizmente, mesmo com a maioria da sociedade muito descontente, não é tão fácil assim quebrar o arco de interesses que reúne os grandes do mercado, os agentes públicos afeitos ao exercício faccioso dos poderes institucionais e os conglomerados de mídia voltados à veiculação de temas e valores que servem à manutenção da ordem que nos infelicita. Especialista na arte de tergiversar, esse pessoal não deve ser subestimado, como o comprova a enorme volta que foi capaz de dar até cooptar, usar, submeter e descartar o lulopetismo, perda de que a sociedade brasileira levará muito tempo para se recuperar, pois ela se dá num contexto que obriga a quem se opõe ao status quo a jogar a criança fora junto com a água do banho e a assistir o adversário avançar em meio a zombaria merecida, e merecida porque a credulidade é um defeito, mesmo que se concorde com Marx, que a julgava o defeito mais tolerável do ser humano.

Conclusão 3: a “Lava Jato” nos abriu a oportunidade rara de nos fazermos menos crédulos na ordem política dos profissionais e tomarmos para nós mesmos a tarefa de construir um novo sistema político, mas para isso precisamos nos engajar num movimento de desobediência civil, negando-lhes a nossa governabilidade.

 

 

A LAVA JATO E A “GOVERNABILIDADE” — 1 DE 2

Carlos Novaes, 18 de junho de 2016

Se ainda havia alguma dúvida sobre o fato de que a vida institucional brasileira é hoje uma luta de facções, os últimos desdobramentos do que se convencionou chamar de “Lava Jato” escancaram toda a ilegitimidade de nossas instituições na forma desse Estado de Direito Autoritário: todos os eventos relevantes têm se dado a partir dos chamados vazamentos, tão benéficos quanto facciosos — benéficos porque atingem os ladrões que nos representam e governam; facciosos porque contornam as vias da forma legal, pois elas estão obstruídas pelo exercício não menos faccioso dos poderes institucionais, determinado a impedir a progressão dos danos contra os poderosos. Tem sido assim na queda de ministros, tem sido assim na revelação de que investigações contra políticos estão paradas há meses no STF, sem que se saiba o porquê.

Não obstante esta lentidão do STF, não obstante a necessidade dos vazamentos para que alguma coisa caminhe, a Lava Jato vem sendo dita irrefreável. Para quem a vê desse modo, o governo Temer parece definitivamente refém dela, ora condenado a seguir aos solavancos, de escândalo em escândalo, ora claudicando para uma queda inexorável — em suma, sob Temer a chamada “governabilidade” jamais seria alcançada.

Embora eu entenda que a Lava Jato tem uma dinâmica própria, embora eu entenda que Temer não tem como transpor todos os obstáculos à chamada governabilidade, e embora eu esteja entre aqueles que torcem e até vêem como provável a queda do golpista interino, não vejo razão para aceitar a lógica exposta no parágrafo imediatamente anterior.

Desde logo, devemos dissolver a ideia de que a Lava Jato ainda é aquele dínamo inesperado e irrefreável  que foi no início de seus trabalhos lá no Paraná. Pelo muito que fez naquela altura, pelos medos que provocou e pela natureza institucional de suas atividades, a Lava Jato foi se reformulando no curso do tempo: pelo que fez, ela teve de se reformular porque pôs a nu o sistema político do país, mexendo num vespeiro que voltou contra si os mais poderosos agentes do “mercado” e do Estado, tais como empreiteiras, bancos, e as presidências da República, da Câmara e do Senado; pelos medos que provocou, a Lava Jato teve de se reformular porque passou a receber delações não só não antecipadas por ela como, e principalmente, delações premeditadas, com materiais defensivos de alta combustão produzidos diretamente para ela, como nos casos de Cerveró e Sergio Machado que, na ânsia de atenuar penas tidas como certas, forçaram as próprias delações (preste atenção, leitor: essas delações centrais foram forçadas); pela sua natureza institucional, ela teve de se reformular porque, além da Polícia Federal (repleta de facções) não pôde deixar de envolver em seus desdobramentos outras instituições, tais como a PGR e o STF, indispensáveis na hora de tratar de suspeitos com status privilegiado, incluindo-as no que agora ainda chamamos de Lava Jato.

De modo que, diferentemente do seu início, a expressão “Lava Jato”, hoje, designa não mais, nem sequer principalmente, as ações dos servidores do Paraná, mas uma miríade de instituições e arranjos facciosos que disputam o sentido a dar ao exercício dos poderes institucionais mobilizados. A Lava Jato é, hoje, menos uma operação e mais um teatro de operações, no qual servidores públicos diligentes e sérios disputam com as mais diferentes facções políticas, jurídicas e policiais o desenlace final dessa crise de que a operação foi o gatilho. Toda a imaturidade institucional e constitucional do país está a mostra nessas combinações facciosas, sendo a mais rematada tolice pretender que a Lava Jato não possa ser contida, quer em razão de uma suposta solidez institucional do país, quer por causa do ímpeto incorruptível dos servidores do Paraná, pois nem eles, nem ninguém, controla o desenrolar do novelo, ainda que, a essa altura, o jogo dependa, sobretudo, do STF.

No salve-se quem puder que se instalou, a Lava Jato tem sido, e continuará sendo, irrefreável enquanto houver facções que, detendo força institucional, forem capazes de explorar inventivamente o ordenamento legal do país para mobilizar o material dela em proveito de seus interesses, sejam eles republicanos ou não. Não foi senão desse modo que Lula e Cunha foram abatidos; que Delcídio e Jucá tiveram destinos até aqui diferentes. Não foi por outra razão que, ao sentir a crescente fuga do chão sob seus pés, o procurador Deltan Dellagnol veio a público para nos alertar de que “é possível e até provável” que consigam parar a Lava Jato, pois, segundo ele, ela “só sobreviveu até hoje porque a sociedade é seu escudo”, diagnóstico com o qual eu pareceria dever concordar, mas não posso: é que Dellagnol não realiza que a opinião pública que foi às ruas apoiar a Lava Jato estava sobretudo animada por sentimentos hostis ao lulopetismo e, assim, o ímpeto do apoio arrefeceu tão logo se sentiram contemplados com o impeachment de Dilma — havia muito pouco ânimo republicano ou democrático naquele bater de panelas.

Por outro lado, nem o lulopetismo, nem quem vai às ruas alinhado com ele, dá força à Lava Jato quando ela atinge o p-MDB e Temer, pois embora queira desbancá-los para voltar ao planalto, não pode deixar de vê-la como uma ameaça aos seus próprios interesses. Ou seja, diferentemente do que pensa Dellagnol, a Lava Jato “só sobreviveu até hoje” porque, de início, encontrou facções poderosas interessadas nos seus serviços contra o lulopetismo, mas, em seguida, acabaram sendo colhidas no vórtice que não puderam controlar em razão do caráter agudo da nossa crise de representação, que resulta da desigualdade e expõe toda a ilegitimidade de nosso Estado de Direito Autoritário, não obstante a escolha para os cargos políticos desse Estado se dê numa democracia eleitoral.

Conclusão 1: as incertezas desse jogo de forças facciosas só serão transpostas de modo favorável à consolidação da democracia se o povo, na rua, imprimir ao conjunto um rumo claramente hostil aos políticos profissionais. Mas quem precisa se mobilizar em favor da Lava Jato enquanto vetor orientado contra o modo de operar do sistema político corrupto do Brasil são aqueles que até agora não foram para a rua — do contrário, os políticos profissionais vão acabar por conseguir se rearranjar em campo, ainda que deixando gente sua pelo caminho, e transporão as incertezas atuais de modo favorável para si, mantendo a desigualdade a um custo cada vez maior para a grande maioria de nós.

Além do que ela diz por si mesma, esta conclusão quer dizer ainda que seria um erro apostar todas as fichas na inexorabilidade da queda de Temer. Esta queda é até provável, mas não devemos subestimar nem a determinação dos setores dominantes do mercado e do Estado por uma reestabilização do sistema, nem a ânsia de parte da sociedade pelo fim da atmosfera de incerteza que nos absorve. O que nos leva ao tema da chamada “governabilidade” e à sua conexão com a “Lava Jato”.

CRISE, CUSTO BRASIL E TRANSFORMAÇÃO — 3 DE 3

A QUE HERANÇA RENUNCIAMOS E COMO AVANÇAR?

Carlos Novaes, 09 de junho de 2016

Embora tenham levado trinta longos anos, nossas persistentes e fornidas elites empresariais, o chamado “Mercado”, ao tirarem proveito dos dispositivos paisano e militar que nos foram legados pela ditadura na forma desse Estado de Direito Autoritário, acabaram por conseguir conter, cooptar, usar em seu favor e, então, descartar as duas principais ferramentas políticas construídas pela maioria da sociedade brasileira em busca de uma ordem político-social menos autoritária e menos desigual, o PT e o PSDB. Naturalmente, não estou a sugerir que o resultado complexo que estamos a viver corresponda a um desenho de prancheta, nem mesmo que ele seja a realização de desejos. De fato, ante a balbúrdia a que foi arrastado nosso Estado de Direito Autoritário, segmentado em nacos de poder que transitam entre facções segundo a formação de maiorias legislativas e/ou vetores de força institucional (principalmente no judiciário e nas polícias) cada vez mais ocasionais e oportunistas, qualquer um entende que nossa crise não pode ser resultado de nenhuma conspiração.

Sobre as ruínas do “mudancismo”,  e ainda apoiando-se nos escombros dos protagonistas decaídos (PSDB e PT), os espertalhões que julgam ter sobrevivido ao sistema político que desmoronou  propõem ao país “zerar o jogo”, encenando uma “limpeza”, como se fosse possível lavar, ou mesmo varrer, a casa que caiu. Propõem essa ou aquela “reforma política”, mas nenhuma delas nos serve, como já discuti em vários textos aqui. Não é de surpreender que tenham voltado à formação do governo Sarney de logo antes do Plano Cruzado, isto é, a um governo do p-MDB, ao qual, já naquela altura, apenas os mais crédulos hipotecaram esperanças. Tudo se passa como se não houvéssemos vivido os fracassos, os delírios ou os êxitos dos planos Cruzado, Collor e Real; como se o engajamento em sete eleições diretas e cinco disputas de segundo turno para a presidência da República nada houvesse nos ensinado; como se o desmanche do lulopetismo fosse apenas um caso isolado de corrupção e mentira, estranho ao sistema político em que ele foi docemente cooptado e usado, para então ver-se descartado como mera companhia repelente.

Ora, se, em tese, tomarmos aquela época da criação do PT e do PSDB como um marco para o início da convergência em favor de uma consolidação democrática no Brasil, e se, sempre em tese, admitirmos que essas duas forças, naquela altura, significavam o que de melhor o país pôde produzir em favor da consolidação democrática, então não podemos escapar de enxergar que esse governo Temer, saído da derrota do melhor daquelas forças, é o oposto da consolidação pretendida num Estado de Direito Democrático e o máximo da crise de legitimidade a que poderia chegar nosso Estado de Direito Autoritário. Não é à toa, e nem por causa de Temer, portanto, que seu governo não pare de pé e de que sua queda ou permanência em nada dependam dos defeitos ou qualidades do interino — pior do que isso só se Temer cair depois do fim de 2016, nos levando à escolha indireta de um presidente da República, quando então regrediríamos ao Colégio Eleitoral do período da ditadura paisano-militar, dessa vez com os mesmos paisanos, mas tendo como braço militar não as Forças Armadas, mas a PM (é melhor não duvidar).

E ainda há quem fale numa suposta robustez das nossas “instituições democráticas”, como se o nosso Estado de Direito não estivesse atravessado pelo choque cotidiano entre o exercício faccioso dos poderes institucionais  e o pendor democrático da maioria da sociedade brasileira. Para além das idas e vindas da Lava Jato, deixem-me dar três outros exemplos recentes deste choque:

— Embora a sociedade condene inequívoca e majoritariamente a violência contra a mulher, a polícia civil do Rio encontrou dificuldades para que profissionais seus encarassem como estupro as relações sexuais não consentidas a que mais de trinta homens submeteram uma mulher.

— A mesma sociedade que quer mais democracia, é obrigada a conviver com uma polícia militar-PM cuja conduta torna plausível, para as pessoas de bem, que os próprios policiais tenham plantado na mão de um menino-delinquente de dez anos não só a arma, mas vestígios de pólvora, de modo a fazer parecer que o tiro que o matou fora o revide inevitável aos disparos efetuados pela vítima contra profissionais do nosso Estado de Direito Autoritário.

— Nesses dias de perda salarial e desemprego, Marcelo Jucá (quando já estava afastado do ministério de Temer), negociou com a facção de plantão no Congresso, pouco antes do pedido de sua prisão pela PGR, em nome do presidente golpista, a aceitação pela presidência de um aumento para servidores públicos em troca da aprovação da DRU que vai abrir as portas para que o ajuste fiscal penalize os segmentos mais pobres da população.

Sobre esse aumento, que beneficia juízes, disse  na Folha de S.Paulo o ex-ministro Delfim Netto (que além de grilo falante do legado paisano da ditadura, vem a ser, talvez, o mais acatado teórico do “custo Brasil” e o mais abalizado especialista nessas lutas entre facções do nosso Estado de Direito): “talvez a relação custo/benefício não tenha sido bem calculada, mas sua troca política pela aprovação da DRU era essencial. Foi um passo custoso, mas decisivo para a execução do programa geral [o ajuste fiscal]”. Ainda segundo o ex-ministro, essa proposta de ajuste fiscal de Temer “parece ter boa probabilidade de ser aprovada pelo Congresso Nacional, graças a um hábil parlamentarismo de ocasião”.

Como sair disso?

Antes de mais nada, encarando que vivemos o esgotamento do modelo saído da transição “lenta, gradual e segura”: ou vamos adiante, nos livrando do que resta da ditadura, exigindo o que nos foi prometido, mas não foi entregue, desdobrando nossa democracia eleitoral num Estado de Direito Democrático; ou retrocedemos, deixando que façam da crise o pretexto para um recuo a formas ainda mais autoritárias, permitindo que aumentem o controle sobre nossa democracia eleitoral pelo recrudescimento desse Estado de Direito Autoritário que nos infelicita — essa é a encruzilhada.

Precisamos encarar também que não dispomos de uma força política, muito menos de um partido, capaz de nos liderar. Aliás, como já dito, foi essa falta de alternativa que deu sentido de crise à situação intolerável em que vivemos. Como também já vimos, em 1974 e em 1994 o intolerável desaguou em realinhamentos eleitorais que nos impulsionaram na direção de mais democracia: o realinhamento de 1974 levou ao início da transição cujo modelo agora vemos esgotado, e o realinhamento de 1994 permitiu que as forças da mudança derrotassem as forças da transformação, dando sobrevida ao modelo, que já então apresentava sinais de fadiga. Passados outros 20 anos, chegamos às eleições de 2014 com o modelo saído da ditadura em frangalhos.

O empate eleitoral entre PT e PSDB na disputa para a presidência da República mostrou muitas coisas, das quais isolo duas para tentar deixar mais claro o que penso: primeiro, ao chegar a este empate no âmbito da democracia eleitoral, a sociedade brasileira mostrou que extraíra dessa democracia incompleta o melhor que ela poderia dar — para ir adiante será necessário democratizar o Estado de Direito; segundo, este empate só se deu porque nenhuma outra candidatura ofereceu um projeto claro e, sobretudo, confiável na direção da consolidação da democracia, que para nós tem de ser um compromisso de enfrentamento democrático da desigualdade.

Conclusão 5: essa falta de alternativa é, em boa parte, responsabilidade da própria sociedade, que indevidamente delegou aos políticos profissionais a tarefa de democratizar nosso Estado de Direito.

PSDB e PT receberam essa delegação, mas deixaram de ser alternativa precisamente porque se acomodaram ao aspecto “seguro” da transição, acomodação que se traduziu na economia e na política: o pacto do Real continuou a garantir que os ricos nada percam; a adesão do lulopetismo a esse pacto foi coroada com a sanção de Dilma a uma lei anti-democrática que, disfarçada de lei contra o terrorismo, aperfeiçoa nosso Estado de Direito Autoritário, permitindo que ele se antecipe aos tempos de convulsão social e política que estão a se abrir para a sociedade brasileira. Portanto, mesmo que já contássemos com um partido transformador, seria de pouca valia nos dirigirmos a ele com o ânimo delegativo que nos fez vítimas do PSDB e do PT. Para que a crise nos leve a dar um passo adiante no rumo de um Estado de Direito Democrático, que é uma ordem mais propícia à luta contra a desigualdade extrema, precisamos aprender com os êxitos e com os erros do passado.

Olhadas com grandeza, as duas operações mais notáveis das últimas décadas foram justamente a construção do PT e a implementação do plano Real. Entretanto, a mais genuína força política emancipatória construída pela sociedade brasileira, o PT, se posicionou contra o projeto governamental de maior potencial emancipatório já implementado entre nós, o plano Real. O PT foi emancipatório porque, para dar certo, reuniu contra a desigualdade, de forma inteligente, espontânea e democrática, o maior arco político de forças populares e médias já construído organicamente no Brasil; o plano Real abrigou enorme potencial emancipatório porque, para ter êxito, previu e contou com a adesão inteligente, espontânea e democrática da população, no maior esforço popular já realizado em prol de uma tarefa governamental no Brasil. No PT cada um falava três minutos; no Real cada um conferia a tablita da URV.

Tudo isso acabou em quase nada porque delegamos aos profissionais a consolidação dessas iniciativas. A burocracia profissionalizada e oligarquizada do PT, sempre a mesma, conduziu o partido à capitulação pela corrupção, assim como o plano Real fora rebaixado pelos tucanos a um plano de estabilização monetária de profissionais da economia chancelados pelo “mercado” — nos dois casos se deixou para trás a variável que fora decisiva para o sucesso: a energia do engajamento popular. Como esse engajamento punha dificuldades para o controle social que PT e PSDB rivalizavam em protagonizar, a energia popular foi devolvida ao calendário eleitoral, no qual predominavam as rotinas das eleições Legislativas, que vinham desde os tempos da ditadura paisano-militar, e nas quais o p-MDB se especializara, como discuti detalhadamente aqui.

Como também já discuti aqui, essas rotinas travam até hoje nosso processo político e estão na raiz dessa nossa crise de representação: o problema é a reeleição para o Legislativo e suas mazelas conexas, a política como carreira e como profissão. Acabar com a reeleição para o Legislativo é a bandeira que proponho para unificar a luta em prol de um Estado de Direito Democrático no Brasil. Assim como a hiperinflação não pôde acabar por decreto, também a reeleição para o Legislativo não irá acabar por decreto algum  — são problemas que requerem engajamento popular, pois trata-se de quebrar inércias que nos foram legadas pela ditadura paisano-militar: na economia, a inércia da inflação; na política, a inércia da reeleição para o Legislativo. Logo, assim como para acabar com a hiperinflação foi necessário quebrar o que havia de inercial nela, para acabar com a reeleição legislativa será necessário interromper a dinâmica inercial que beneficia os profissionais da política e permite armar esse circo da polarização Legislativo contra Executivo.

Conclusão 6: diante dessa ressaca que pretende nos arrastar de volta às limitações do fim da ditadura (o p-MDB do Sarney, agora com Temer), os que queremos mais democracia estamos de volta à necessidade de nos concentrarmos numa bandeira de ordem geral — o problema está na inércia da política como profissão.

Essa transformação precede todas as outras e não requer um partido para ser levada adiante, ainda que, não sendo um horizontalista, eu entenda que partidos são importantes. Tampouco precisa ser prevista em lei, pois cada um pode se engajar até solitariamente nela e, se preferir, limitando sua participação a um gesto simples: jamais votar para o Legislativo em quem já tenha ocupado um cargo Legislativo, a começar pela escolha dos vereadores em 2016: chega dos mesmos! O fim da reeleição para o Legislativo permitirá que aflorem da sociedade brasileira as alternativas que nos levem à construção de um Estado de Direito em conexão com o ânimo democrático dela, acabando com a incongruência atual entre Estado de Direito e sociedade, e colocando nossa ordem política num plano superior.

 

 

 

CRISE, CUSTO BRASIL E TRANSFORMAÇÃO — 2 DE 3

PARA ESTARMOS AQUI, DE ONDE VIEMOS? 

Carlos Novaes, 08 de junho de 2016

 

O fosso crescente entre as esperanças suscitadas pela democracia eleitoral (na qual a maioria da sociedade se engaja e acredita) e os danos contra ela saídos do exercício faccioso dos poderes institucionais (pelo qual uma minoria tira proveito da energia social democraticamente produzida) escancara a falta de legitimidade do Estado de Direito Autoritário, que, para disfarçá-la, vem transferindo para a sociedade uma crise que é, antes de tudo, dele próprio. Essa transferência aparece nas crises econômicas e nas crises políticas, que vêm sendo “resolvidas” com manobras procrastinadoras mais ou menos engenhosas e de êxito menor a cada volta do parafuso, o que veio gerando a crise em que agora estamos.

Eis o ápice da crise de legitimidade do autoritarismo do nosso Estado de Direito: na política, uma crise de representação que se buscou disfarçar em uma crise de governabilidade (que, assim, se fez “real”); na economia, uma crise de modelo que se busca reduzir a uma crise fiscal (que, não obstante, é real); na gestão administrativa, um governo faccioso (do p-MDB!), a que se tenta dar status de governo de salvação nacional (de que não precisamos); e, na sociedade, idas à rua que, em sua cegueira, levam multidões a se dividirem em facções, numa imitação contraproducente da disputa de poder dentro do Estado de Direito Autoritário (daí a presença tão marcante de comportamentos boçais: se tropeça em bolsonarinhos em toda via).

Conclusão 3: para transpor as dificuldades impostas por essa crise de legitimidade só há dois caminhos: ou aprofundar o autoritarismo, reduzindo a liberdade de ação democrática, encarada como desordem; ou expandir a democracia, levando seus métodos para dentro do Estado de Direito, passando-o de autoritário a democrático.

Qual desses dois caminhos a maioria da sociedade brasileira prefere? Conseguirá ela fazer valer sua preferência? Da resposta a essas perguntas poderemos sair do impasse em que estamos, que muita gente supõe se dever ao despreparo ou à fraqueza de Temer… Quem é Temer, diante de uma crise assim monumental?!

Nossa preferência vem sendo declarada há mais de quarenta anos: nas eleições de 1974, ainda sob a ditadura paisano-militar, a maioria de nós mostrou preferir a democracia quando, dentro dos limites impostos, em resposta ao intolerável, deu esmagadora vitória ao MDB, única alternativa de “oposição” à ordem autoritária de então. Desde ali, não houve recuo: nossa marcha veio sendo por mais democracia. Aquele realinhamento eleitoral de 74, que recentemente discuti aqui (nesse contexto, julgo proveitosa a leitura desse texto), foi tão duradouro quanto manipulado e, não por acaso, se esgotou no malogro do plano cruzado, quando o p-MDB de Sarney colheu os resultados do seu estelionato eleitoral na magra votação de Ulisses na disputa presidencial de 1989. Era a época dos tormentos da inflação, a forma que então se dava à manutenção da desigualdade extrema, numa espoliação sem paralelo da maioria pela minoria.

Naquela altura a situação também era intolerável, mas, assim como em 1974, não se instalou uma crise como a de hoje porque a sociedade ainda reconhecia alternativas dentro da ordem política: PSDB e PT (mudança X transformação) davam norte e esperança para o ânimo democrático da maioria da sociedade — ela não podia adivinhar que eles a atraiçoariam tal como fizera o p-MDB. Se hoje não vemos alternativa é porque essas duas forças foram engolfadas pela crise, depois de terem desperdiçado todas as oportunidades que tiveram para levar nossa democracia a um estágio superior: depois de obter o realinhamento eleitoral de 1994, em nova resposta da maioria da sociedade ao intolerável, o PSDB preferiu abandonar o Real a arriscar-se em perseverar no mudancismo que, a partir dali, teria de se aprofundar (Serra, mais establishiment do que FHC, escondeu o plano bem sucedido na campanha presidencial de 2002); o PT preferiu um caminho rápido para o poder e aderiu à mudança, ao invés de perseverar na transformação.

O pior é que, com essa adesão, o PT avacalhou o próprio mudancismo, enfraquecendo o que já era fraco, e de duas maneiras: primeiro, como aderiu sem enxergar as virtualidades emancipatórias do plano Real, deu seguimento inercial às políticas sociais dele, apenas intensificando-as; segundo, como essa adesão foi eleitoreira, teve de empurrar o PSDB para longe da própria cria, dando corda a uma polarização falsa que obrigou ambos a se valerem, um contra o outro, das forças políticas que encarnavam o legado paisano da ditadura (p-MDB, PDS, PFL, PP, PTB…), que, assim, foram preservadas da extinção a que seriam levadas se tivesse havido uma autêntica seleção natural dos mais aptos para a vida em ambiente democrático.

O empate havido nas eleições de 2014 já apontava o esgotamento do modelo e, por isso mesmo, exibiu-se tão encenadamente radical a polarização havida naquela disputa: sem saber para onde correr, pois não haviam elementos para um novo realinhamento eleitoral, o país, enraivecido, empatou, hipertrofiando a ilusão em torno de diferenças inexistentes entre PT e PSDB. Mas, ilusório que tenha sido, o empate se deu por mais democracia, não por menos, como mesmo o que há de enganoso no engajamento em favor da Lava Jato está a mostrar.

Conclusão 4: a maioria da sociedade brasileira quer mais democracia, não menos.

Como fazer valer essa preferência?

 

 

CRISE, CUSTO BRASIL E TRANSFORMAÇÃO — 1 DE 3

ONDE ESTAMOS?

Carlos Novaes, 07 de junho de 2016

Uma sociedade está em crise quando vive sua situação como intolerável e não encontra nas instituições disponíveis os meios de transpor de modo auspicioso o que lhe parece intolerável. Em uma sociedade em crise, a atividade política, seja ela profissional ou não, torna-se uma disputa pela narrativa da crise, e isso porque “definir” a crise já é uma maneira de principiar a escolher uma saída dela – sair de uma crise sempre exige arbitrar perdas, e ninguém quer perder. Por isso mesmo, ou seja, como desenhar a crise é uma disputa, nem sempre as sociedades alcançam os fundamentos da crise em que vivem e, então, os sofrimentos ganham intensidade e/ou se prolongam na medida em que aqueles que vinham tirando vantagem do arranjo que desembocou na crise conservam poder para defini-la e dar-lhe “solução”.

A sociedade brasileira está em crise porque a insistência em manter uma desigualdade tão extrema — que premia assim regiamente os brasileiros ricos, enquanto desfavorece os brasileiros remediados e pune os brasileiros pobres — engendrou uma situação social e uma ordem político-institucional que são vividas como intoleráveis pela maioria da população. A situação social é vivida como intolerável porque já ninguém escapa das consequências de suas flagrantes inutilidade, injustiça e desperdício. Ela é flagrantemente inútil porque a expansão da riqueza dos ricos em nada aproveita ao desenvolvimento do país; ela é flagrantemente injusta porque se dá numa escala na qual o que se contrapõe à reiterada miséria de muitos e à escalonada penúria de tantos é o luxo em expansão de muito poucos; e ela é um desperdício porque há um abismo não menos flagrante entre as potencialidades do país e de seu povo e as condições de vida a que o modelo vigente condena esse mesmo povo. A ordem político-institucional é, por sua vez, vivida como intolerável porque já somos maioria os que nos vemos maltratados pelo exercício faccioso dos poderes institucionais, marcados por violência, arbitrariedade e ineficácia. Ela é violenta na ação e inação seletivas de seus efetivos policiais; ela é arbitrária nas decisões assimétricas de suas burocracias interessadas; e ela é ineficaz também porque tem na corrupção um motivo de planejamento, empregando-a ainda para premiar adesões e obter obediência.

Conclusão 1: o custo Brasil é a desigualdade, não a legislação e os programas que, sem enfrenta-la, mitigam defeituosamente seus efeitos danosos sobre os mais pobres, como o SUS, o Minha Casa Minha Vida, a Escola Pública e Universal, o Bolsa Família e a Previdência Social. Instituições assim abrigam distorções precisamente porque vivemos sob um Estado de Direito Autoritário, que combina democracia eleitoral e exercício faccioso dos poderes institucionais: facções lutam pelo manejo (fechado) do orçamento e pela chancela eleitoral (aberta) dessas instituições, o que faz delas ambiente para a combinação de corrupção com encenação populista, o que só pode gerar ineficácia, que é a mãe do desperdício.

Não obstante, desde que a crise eclodiu, a minoria numerosa e poderosa que tem ganho com esse arranjo condenado, e controla instituições e meios de comunicação de prestígio, vem conseguindo tanger a opinião pública, fazendo-a acreditar nas três seguintes fantasias: primeiro, que há (ou havia) uma crise política entre Executivo e Legislativo; como se a crise de representação decorrente da autonomia que a desigualdade extrema proporcionou aos políticos profissionais não engolfasse todo o sistema político e pudesse ser resolvida com essa encenação que sazonalmente contrapõe o Congresso à presidência da República — resultado: as ruas se dividiram improdutivamente em torno do impeachment de Dilma, quando o problema é o sistema político enquanto tal.

Segundo, a fantasia de que vivemos uma crise econômica decorrente principalmente da má gestão da presidente afastada no curso da encenação anterior; como se o malabarismo necessário à manutenção da desigualdade extrema não nos condenasse a crises econômicas uma atrás da outra, mesmo que por vezes o malabarismo se mostre engenhoso, dê certo e adie problemas, como o foi no caso do Real ou, em grau menor, no caso das receitas do Lula contra a “marolinha” — resultado: as ruas se dividiram improdutivamente entre os defensores da via tucana e os defensores da via lulopetista, quando nenhuma dessas duas vias leva ao enfrentamento da desigualdade precisamente porque se deixaram fazer instrumento da sua conservação.

Terceiro, a fantasia de que vivemos uma crise moral; como se a corrupção generalizada fosse um mero desvio de conduta e não o próprio modo de operar de todo o sistema institucional voltado a manter a desigualdade extrema através do exercício faccioso dos poderes institucionaisresultado: as ruas se dividiram hipocrita e improdutivamente em grupos que se acusam uns aos outros de “desvio”, cada um fingindo não ver seus próprios corruptos e todos contribuindo para o disparate de que a corrupção generalizada no sistema político “representaria” uma suposta cultura brasileira de corrupção, como se a corrupção não fosse exatamente o dispositivo que, aliado à reeleição legislativa, permitiu que nossos “representantes” nos dessem as costas, ganhando a autonomia que lhes permite fazerem-se ferramentas de quem lhes paga para representarem interesses contrários aos nossos.

Conclusão 2: embora com dificuldades crescentes para legitimar o Estado de Direito Autoritário que os beneficia, os titulares do exercício faccioso dos poderes institucionais lograram, até aqui, esconder a extensão e a profundidade da crise, e a luta social mais estridente tornou-se uma caricatura das disputas entre eles: os grupos que vão à rua comportam-se como facções que anulam uma à outra e, assim, o ânimo democrático da sociedade não converge para um projeto de transformação e a energia social voltada à mudança é dissipada em hostilidades vis.

CRISE EM PONTO MORTO, MAS VAI REENGATAR

Carlos Novaes, 05 de junho de 2016

Há quase um ano, quando já estava claro que a Lava Jato, se prosseguisse sem freios, reuniria material para “pegar” todo mundo, escrevi aqui:

“Tal como em programas de auditório, também na política é pela baixaria que surge a verdade, como comprovam as declarações de Geddel que, em alto e bom som, disse o que pode ser resumido assim: ‘a esculhambação em que vínhamos nos locupletando até aqui entrou em falência e precisamos encontrar um outro modo de operar’. Desafio qualquer um a encontrar resumo mais apurado do que esse para a “crise” política brasileira que, como venho insistindo, é uma “crise” do modo de operar dos profissionais, por sua vez sobreposta ao desmanche do pacto do Real. Se não houver freio algum na Lava Jato, figurões do p-MDB, aliados de Geddel, se não o próprio (impossível não é) irão logo-logo aparecer entre os indiciados.”

Como todos estamos a ver, embora a Lava Jato venha recebendo freios, ainda não foi possível estancar o processo nos limites da destruição do lulopetismo e, assim, embora com tardança, figurões do p-MDB vem caindo, menos pela ação resoluta do Judiciário e das instituições conexas e mais pelas dificuldades de coordenação que todo o processo vem apresentando, ele próprio abrigando uma luta de facções entre policiais, procuradores e juízes, onde a moeda principal parece ser o chamado “vazamento” de evidências que, como toda moeda, é distribuída seletivamente e tem seu valor alterado no decorrer do tempo. Prova disso é o tratamento dado a Marcelo Jucá: os áudios comprometedores vazaram, mas ele não foi submetido a nada parecido com o que aconteceu com Delcídio, apanhado em situação igualmente comprometedora. Delcídio virou réu e teve o senado contra si, enquanto Jucá, até aqui, perdeu apenas o cargo de ministro de Temer, junto ao qual continua a operar, fazendo dobradinha com ninguém menos que o mesmo Geddel Vieira Lima da citação acima, que não faz outro uso do poderoso cargo de Ministro da Secretaria de Governo da presidência da República, que faz a articulação política com o Congresso, senão para “encontrar um novo modo de operar”.

Por mais que tenham tentado transpor a crise de representação com o sacrifício do sócio mais recente (o lulopetismo) através da manipulação da Lava Jato e da crise econômica numa “crise” política fajuta entre Legislativo e Executivo, “crise” esta que se esgotou com o golpe congressual do impeachment, os políticos profissionais enfrentam a cada dia novas dificuldades para reestabilizar o sistema corrupto em que operam a manutenção da desigualdade. Ao que parece, a autonomia que os operadores da política ganharam graças à desigualdade, da qual dependem, entrou em desordem porque praticamente todos os agentes políticos profissionais, cada vez mais selecionados entre os piores, aderiram ao modus operandi pelo qual o “Mercado” havia proveitosa e confortavelmente engatado no Estado (o poder) a dinâmica dos seus interesses (o dinheiro). Disfarçado de campanha eleitoral, o fluxo de dinheiro para enriquecimento ilícito de empresários e políticos sempre foi a base desse engate; entretanto, o êxito dessa cooptação remunerada dos políticos profissionais e de seus partidos foi de tal ordem que a corrupção se generalizou e saiu de controle, tornando-se ela própria a inspiração e a razão de ser das principais facções que se digladiam no ambiente institucional assim deteriorado. Mesmo nos menores municípios brasileiros, a luta eleitoral deste ano será uma luta não pelas prefeituras como instâncias de gestão pública, mas sim pelo controle de unidades de negócios: por exemplo, não há cidade brasileira em que vereadores (Legislativo) não tenham laranjas à testa de pequenas empresas operadoras de máquinas e equipamentos alugados a preços corruptos pela prefeitura (Executivo) – os raros prefeitos que resistem aos esquemas enfrentam processos de afastamento do cargo.

Como tudo isso está a acontecer na décima economia do mundo, que possui um mercado de 200 milhões de consumidores, longe de mim pretender que a crise seja apenas nossa, brasileira. E não estou a falar de atenuantes para erros internos, estou a dizer que a encrenca política em que se meteu o sistema mantenedor da desigualdade no Brasil está a indicar uma dificuldade mais geral para manter a desigualdade que, não obstante, não para de se expandir pelo mundo, salvo em países que são exceção e, como tal, tem tanta serventia nesse debate quanto as exceções honestas do Congresso brasileiro. De outra perspectiva, nossa desigualdade está para a desigualdade mundial assim como o desmantelamento do lulopetismo está para o desmantelamento do sistema político brasileiro: assim como a nossa crise de representação não irá se resolver pelo sacrifício do PT e de Lula no altar das imposturas moralizantes, também nossa desigualdade não poderá ser enfrentada sem colocar problemas para a manutenção da desigualdade mundial. Daí também o interesse do mundo pela crise no Brasil e a impertinência de alguém se declarar envergonhado de ser brasileiro, afinal, onde viver sem sentir vergonha?!

DIAGNÓSTICO RUIM LEVA A SOLUÇÕES ENGANOSAS — 1 DE 2

Carlos Novaes, 22 de maio de 2016

Car@s leitor@s,

tem havido alguma queixa sobre períodos de silêncio neste blog. Se, em momentos, digamos, mais quentes, encontro motivação para engatar análises quase diárias, há períodos em que se faz necessário deixar a situação política se assentar para, então, avaliar se há algo a ser dito. Oportuno salientar ainda que, tanto quanto o consigo, escrevo cada artigo em conexão com os anteriores e, assim, julgo que as linhas a seguir ficarão melhor explicadas a quem tiver lido os últimos dez artigos deste blog, e/ou uma série mais antiga, sobre desigualdade e voto.

DIAGNÓSTICO RUIM LEVA A SOLUÇÕES ENGANOSAS

Meu assunto hoje são as conexões que vejo entre a recriação do Ministério da Cultura e duas entrevistas recentemente publicadas pela Folha de S.Paulo. É que um vai-e-vem como este não apenas mostra a presidência Temer mais frágil do que supõem os dois entrevistados, como também, e sobretudo, serve de gancho para que se deixe claro que nenhum dos dois agarrou o nervo central do que se tem de encarar como crise no Brasil contemporâneo. A duas entrevistas trazem um ótimo resumo do senso comum daninho que vai se consolidando sobre o que é central na crise em que o Brasil se arrasta, daninho porque distrai do potencial transformador dela.

Segundo o ex-presidente Fernando Henrique:

“a população é suficientemente realista para não pedir o impossível. Ela não saiu à rua gritando: ‘Viva Temer’. Saiu gritando: ‘Fora, Dilma’. Por trás disso estão dois fatores: um, a crise econômica, e o outro, a crise moral. Esse governo tem que dar sinais nesses dois lados. […] Ele nasceu no Congresso, e o Congresso hoje é mais conservador, porque a sociedade ficou mais conservadora. O Congresso, não de maneira perfeita, reflete a sociedade. Você hoje tem a bancada da bala, a do boi… Não tinha isso no meu tempo. […] A maioria sempre foi formada por uma massa useira e vezeira em utilizar o aparelho do Estado, como esse novo “centrão” de que estão falando agora. O PMDB não é isso. É um partido que tem capacidade para fazer o Estado funcionar. [Os ministros de Temer] são bons operadores políticos. Na economia, montaram uma equipe consistente” (grifos meus).

Para David Rothkopf, editor-chefe da”Foreign Policy”:

a recuperação econômica sozinha não trará a estabilidade que Temer ou o Brasil precisam. Até a corrupção ser debelada do sistema político, o Brasil correrá riscos de mais retrocessos por culpa de novos escândalos. […]. Ninguém pode ter alguma fé na força das instituições brasileiras quando tanta gente em posições de controle nessas instituições está sob suspeita de crimes e de abuso da confiança pública. O problema é mais profundo que as instituições. É a cultura que permite que bilhões sejam roubados e corrupção generalizada nos mais altos escalões do governo se mantenha por anos intocada. Veja quantos membros da elite política brasileira estão sob suspeita ou algo pior. É um fracasso do sistema inteiro. Quem se preocupa com o Brasil vai demandar que juízes e promotores independentes apurem e que novos mecanismos e leis anticorrupção sejam estabelecidos. É um momento crucial na história brasileira. É uma encruzilhada.” (grifos meus).

Embora mais crítico e cético diante deste governo do p-MDB do que FHC, Rothkopf partilha com o ex-presidente o mesmo diagnóstico: nossa crise está centrada na economia e na corrupção, estando nelas a encruzilhada das escolhas cruciais que temos de fazer. Nada mais errado. Nossa crise é antes de tudo política, é uma crise de representação derivada da desigualdade, desigualdade esta que, para ser mantida, engendra, entre outros, mecanismos políticos favorecedores da corrupção. Não há “crise moral” como quer FHC, pois nossa corrupção está muito além da moral, ela se tornou não um defeito, mas o próprio modo de operar do sistema político. Por isso, contra ela nada resolvem nem indignação, nem prédica moralizante.

Apegado a aspectos formais, Fernando Henrique faz uma análise que recobre de legitimidade precisamente os esquemas de mando que não a têm. Ao contrário do que ele diz, nosso Congresso não é representativo sequer no que exibe de conservador — esses congressistas conservadores são corruptos, truculentos e intolerantes, e a grande maioria da sociedade, mesmo no que ela exibe de conservadorismo, não é corrupta, nem truculenta, nem intolerante; se assim não fosse, nem teria sido possível eleger FHC, Lula ou Dilma, nem haveria essa ausência de entusiasmo diante da presidência Temer, repleta de congressistas, tanto como ele próprio, “sob suspeita de crimes e de abuso da confiança pública”.

Mesmo no núcleo duro do conservadorismo brasileiro há divórcio de representação: as tais bancadas da bala, evangélica e ruralista não representam o conservadorismo médio brasileiro, basta olhar os números mais básicos: ainda que tomássemos todos os evangélicos brasileiros como intolerantes políticos (e eles não o são), eles não chegariam a 20% da população; a violência da PM, esse dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura, é condenada pela maioria da população, que muito mais teme do que admira essa polícia truculenta que dá base à bancada da bala; a atividade ruralista do grande agro-negócio é economicamente expressiva, mas emprega relativamente pouca gente, especialmente se comparada à agricultura familiar, contingente imenso que não se acha representado na intolerância egoísta da bancada ruralista.

O que leva essa gente ao êxito eleitoral não é exatamente o conservadorismo da sociedade brasileira, mas o dispositivo da reeleição para o Legislativo, que propicia a junção do endinheirado ativismo sectário dessas “vanguardas” de rotina com a não menos rotineira inércia preguiçosa do eleitorado, que é mais inconsequente do que conservador. Por tudo isso, não há que falar impotentemente em “cultura” da corrupção, como o faz Rothkopf, que acaba por diluir indevidamente na sociedade uma corrupção que nasce e se nutre no sistema político que trai a sociedade que deveria representar. Pensar a corrupção brasileira como cultura torna tão impossível acabar com ela como o seria dar cabo do samba.

Para tirar o eleitorado de sua inconsequência preguiçosa precisamos esclarecê-lo sobre o que está em jogo e, para isso, não há proveito em análises como as desses entrevistados, que tratam política sócio-econômica e corrupção institucional como problemas independentes e, pior, tangem as esperanças incautas para as próprias instituições cujo exercício faccioso é elemento central de todo o circuito malsão. FHC pretende distinguir as práticas do p-MDB das dos chamados “centrões”, quando é o próprio p-MDB que lidera e provê de espinha dorsal essas maiorias facciosas que se formam em nossos parlamentos. Rothkopf espera que esse sistema político crie “novos mecanismos e leis anticorrupção” inspirados na ação apuradora de “juízes e promotores”, como se a unilateralidade em que se extinguiu a energia renovadora da mais determinada operação anticorrupção já empreendida no Brasil, a Lava Jato, não tivesse deixado claro os limites que o exercício faccioso dos poderes institucionais permite impor a essas iniciativas “independentes”: a Lava Jato acabou manipulada para garantir a saída de Dilma e o aniquilamento do lulopetismo.

Ao ter de recuar da decisão de extinguir o Ministério da Cultura Temer mostrou não a fragilidade do seu governo ilegítimo, mas a própria inviabilidade dele: um governo inteiramente saído de um Congresso faccioso e não-representativo não tem como resistir às pressões da sociedade que não se vê representada nesse mesmo Congresso. Ou seja, o que permite alguma força propriamente governamental ainda é o voto direto para presidente (que falta a Temer), precisamente porque é essa escolha que cria mecanismos de pressão da sociedade contra o Congresso, tal como explorei em série recente publicada aqui. A cada vez que Temer ceder aos congressistas, e isso será diário, estará abrindo o flanco para descontentamentos na sociedade. Considerando que ele está a serviço da manutenção da ordem que garante a desigualdade, faz sentido esperar que ele tenha legitimidade, e a força decorrente dela, para fazer a reforma da previdência, ou acabar com o incremento crescente no valor do salário mínimo? Se não conseguirem impedir que apareçam provas de corrupção contra ele, então

FORA TEMER! — MAS NÃO PELA VOLTA DE DILMA

Carlos Novaes, 12 de maio de 2016

Beneficiado por uma agressão à Constituição em que ele próprio se empenhou, Temer é o novo chefe do nosso Estado de Direito Autoritário. Qualquer um que almeje um Estado de Direito Democrático para a nossa democracia eleitoral tem o dever de se empenhar pela derrubada de Temer em favor da realização de eleições para deputado, senador e presidente ainda este ano. Seguindo um roteiro antevisto aqui em novembro de 2015, cumpriu-se o golpe que dá cabo de uma “crise” política fajuta através do rearranjo faccioso do poder e das perspectivas de ganho associadas a ele, ao mesmo tempo em que os titulares dessas práticas nefastas tentarão fugir da crise política real, a crise de representação, da qual pretendem distrair a opinião pública com a ajuda, intencional ou não, da mídia convencional. Uma vez consumado o sacrifício da “culpada”, já se apontam indícios de uma superação mágica da crise econômica, acompanhados, é claro, da defesa das ditas reformas fundamentais, na qual abundam medidas contra os direitos dos de baixo e silêncio acerca dos privilégios dos de cima, num relançamento da ciranda da desigualdade.

Mesmo considerando, como considero, que Dilma sofreu uma injustiça, entendo que dissipar energia social num engajamento pela volta dela à presidência seria contraproducente por três razões principais: primeiro, defender o “Volta Dilma” seria nutrir as três forças que precisamos deixar para trás, pois alimentaríamos a polarização fajuta que armou a “crise” política não menos fajuta, “crise” esta vencida pelos golpistas vitoriosos do Fora Dilma: Temer e seu p-MDB seriam beneficiados porque eles precisam do fantasma do lulopetismo como ameaça, até para levar ao esquecimento a longa aliança recente; já os tucanos e os petistas continuariam a contar um com o outro para manter o ritual das diferenças programáticas inexistentes.

Em segundo lugar, lutar pela volta de Dilma seria um erro porque nos levaria a desviar energia de uma luta mais importante, e que se faz também contra a presidente afastada: a cassação da chapa Dilma-Temer por corrupção eleitoral, condenação que abriria parcialmente o caminho para as eleições federais desejadas; terceiro, insistir em devolver o mandato a Dilma nos levaria à defesa de uma letra constitucional que nossa própria Côrte constitucional ajudou a rasgar com seu unilateralismo na condução da Lava Jato e nas decisões conexas, ou seja, nos transformaria em formalistas ante aquilo que já não tem forma – e que está a pedir uma outra forma precisamente para autorizar as novas eleições que almejamos, condição necessária, mas não suficiente, à consolidação da nossa democracia na forma de um Estado de Direito Democrático.

LUTA DE FACÇÕES, FICÇÃO CONSTITUCIONAL E SOCIEDADE INCONSEQUENTE

Carlos Novaes, 09 de maio de 2016

A decisão de Maranhão não é mais nem menos facciosa do que a de Teori ao afastar Cunha, e nenhuma das duas excede ou fica a dever à do mesmo Cunha quando deliberou tocar o golpe do impeachment, ou mesmo a muitas das iniciativas de Moro no curso paranaense da Lava Jato. Atingimos uma altura da crise de representação em que as facções estão em plena luta entre si, tanto no Legislativo, como no Executivo e no Judiciário. Note bem, leitor, não estou a apontar luta partidária, nem luta governo versus oposição, nem muito menos pretendo me dar ao trabalho de procurar luta de classes ali onde nem mesmo há classes em luta. O exercício faccioso dos poderes institucionais de nosso Estado de Direito Autoritário perdeu a gramática comum que permitia o faz de conta e se instalou a balbúrdia não apenas na relação entre os três poderes que a República pretende harmônicos, mas dentro da dinâmica de cada um desses poderes.

Pouco importa quão benéfica ou maléfica se possa achar cada uma das decisões recentes dessas nossas autoridades, a conclusão é uma só: a autonomia da política brasileira em relação à sociedade que deveria representar é de tal ordem que as instituições tornaram-se palco de uma luta aberta entre facções ao arrepio da norma constitucional, que vai sendo rasgada, remendada e interpretada no curso de uma luta de punhais pela sobrevivência que não leva em conta nenhum dos problemas que infelicitam a sociedade brasileira.

As próximas horas trarão uma chuva de artigos contra o pobre Maranhão, acrescidos da ladainha de que tudo se deve a Dilma, como se a essa altura não estivesse suficientemente claro que a “crise” contra ela é tão fajuta quanto as soluções imaginadas pelos políticos profissionais e seus parceiros no Judiciário para debela-la; como se não fosse óbvio que a crise de representação tornou-se uma crise do Estado de Direito Autoritário, resultado que se deve a um desarranjo duplo: ruiu o pacto do Real (que dava solda econômico-social provisória à manutenção da desigualdade); e ruiu o modo de operar do sistema político, cuja disputa por poder para fazer dinheiro simulava uma polarização em torno da desigualdade (arranjo velho, desmascarado pelo ímpeto inicial de um dínamo imprevisto, a Lava Jato). Engripou a engrenagem do exercício faccioso dos poderes institucionais e como ainda não se encontrou um meio de restaurar uma gramática comum nesse bloco de poder erodido (no qual quem ainda não caiu se apóia em bodes expiatórios), o que se vê é a mais escancarada evidência da nossa ficção constitucional, para desespero do mercado e aturdimento de uma sociedade inerme, que assiste desmancharem no curso do dia a compreensão que julgara ter alcançado na noite anterior – e tudo o que já era bambo se dissolve no ar.

QUEDA DE CUNHA É TÃO BENÉFICA QUANTO FACCIOSA

Carlos Novaes, 05 de maio de 2016

 

Tendo em mente o apanhado que fiz nos últimos seis artigos deste blog, não há nada mais emblemático do que houve de abjeto nos sofrimentos impostos à sociedade brasileira nesses últimos 18 meses do que a figura de Eduardo Cunha: um político profissional de carreira corrupta que, por isso mesmo, se fez, à partir do p-MDB, um dos principais articuladores do dispositivo paisano que nos foi legado pela ditadura via Legislativo e coroou essa trajetória sendo eleito por seus pares para a presidência da Câmara Federal, de onde comandou um ataque à Constituição na forma deste golpe em curso contra o mandato popular de uma presidente da República que se confirmou um alvo frágil.

Recebo o afastamento dele da presidência da Câmara com um misto de indiferença, alívio e pesar: indiferença porque há muito tempo ficou claro que Cunha estava perdido; alívio por duas razões: primeiro, porque desde sempre entendi como desastrosa a sua ascensão (cheguei a propor aqui um acerto PT-PSDB para evitar a vitória de Cunha), segundo, porque, por mais enojante que a Câmara continue sem ele, era por demais obsceno tê-lo na presidência dela; e pesar porque o sacrifício de Cunha destina-se a ajudar o assentamento de Temer: condenado há tempos, Cunha durou o necessário para provocar danos com direção certa e, agora, quando sua desenvoltura e cinismo antes atrapalham do que servem ao exercício faccioso dos poderes institucionais, fecha-se o circuito ritual sobre ele.

Tal como a posse de Sarney depois do malogro das diretas-Já, Temer na presidência da República é mais um coroamento coerentemente medíocre para a dinâmica facciosa do nosso Estado de Direito Autoritário, peça fundamental na manutenção da desigualdade. O mercado teria até preferido que Dilma continuasse, mas, diante da ruína do PT, braço fundamental do bloco de poder instituído pelo Real, se viu obrigado a voltar à estaca zero, ao limiar do fim da ditadura, pois vem descobrindo dificuldades crescentes para coordenar uma ordem política profissional que se tornou autônoma a ponto de lhe fugir ao controle.

Ela se tornou autônoma em razão da longevidade e da largueza do fosso da desigualdade que lhe aproveita (de um lado, a política feita nicho, onde se refugiam os que querem escapar da desigualdade; de outro lado, a sociedade, que sofre, em camadas atenuadoras, os efeitos da desigualdade); e ela, a ordem política profissional, foge ao controle do mercado pelo rebaixamento a que chegaram seus próprios representantes: de tanto recrutar os piores e leva-los ao sucesso pela corrupção (no p-MDB, no PT, no PSDB e em seus satélites), as elites estão a descobrir que, cegos pela realização dos próprios desejos de poder e dinheiro, esses representantes se fazem mais e mais incapazes para corresponder aos desígnios dela por uma dominação estável: Cunha é o símbolo máximo dessa besta que, tendo mordido o freio, obrigou todo o sistema a manobras adicionais para fazê-lo útil e, só então, abandonou-o ao mata-burro que todo desembestado acaba por encontrar.

Nunca é demais alertar para que não se veja nessa análise o desenho de uma conspiração pré-ciente, que a tudo engendrou e arranjou em seu favor. Não. No desenrolar de uma conjuntura complexa como a que estamos vivendo, no bojo da qual tem havido toda sorte de conspirações rivais e movimentação social, não há lugar para conspirações totalizantes e, por isso mesmo, o jogo ainda está aberto. A cada passo os atores redefinem suas táticas segundo o transcurso institucional dos fatos e a evolução da opinião pública – em situações assim, não é só que tudo o que cai na rede é peixe; é a rede mesma que se faz ao pescar.

Se observarmos com o devido cuidado o modo de proceder da Lava Jato veremos que há método no caos, e que esse método não foi mentado, mas resulta do jogo miúdo das forças que atuam segundo a ordem da desigualdade. O pêndulo entre celeridade e morosidade que dividia os braços local e federal da operação Lava Jato chega, agora, ao coração do próprio Judiciário Federal: antes havia celeridade contra Lula e morosidade contra Cunha e os demais; uma vez tenha Lula sido batido, agora há celeridade contra Cunha e morosidade com os demais. O beneficiário do jogo é Temer, peça em torno da qual o sistema passou a girar sua ânsia por alcançar o equilíbrio perdido. Nessa nova fase do exercício faccioso dos poderes institucionais, poupar o que resta de Lula de dissabores adicionais poderá se mostrar útil, concessão que não seria senão a outra face desse não menos faccioso descarte total de Cunha, tornado símbolo purgativo, e muito conveniente, do que não presta. Já vai tarde, mas temos que impedir, nas ruas, que da besta se faça um bode expiatório em favor seja da estabilização com Temer, seja de arranjos improvisados para dar sobrevida ao sistema cujo modo de operar ruiu.

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 6 DE 6

A alternativa pede você no olho da rua, não de olho na TV

Carlos Novaes, 04 de maio de 2016

 

O domingo é um dia de encenação, suspendem-se os conflitos familiares, adia-se (para segunda-feira) a vigência dos problemas lá fora. Não deve ser por outra razão que a TV reservou para o domingo os programas de entretenimento mais caprichados, com seus homens de palco mais tarimbados, que são transmitidos ao vivo para compor melhor o quadro em que realidade e ficção aparecem na dose certa, isto é, de modo a que a segunda prevaleça sobre a primeira. As performances dominicais são feitas para escamotear o que está em jogo, ainda que elas mesmas sejam expressões da realidade, diluída na teatralização de sentimentos e motivações, não obstante, autênticos. Os deputados gritaram em defesa da família naquele domingo inesquecível porque suas intenções públicas são impublicáveis, não obstante eles tenham como autênticos para si os sentimentos privados que colocaram a serviço da ficção.

A se debater em meio às rotinas propriamente políticas do legado paisano da ditadura, a sociedade brasileira tem nos domingos televisivos rotineiros a reiteração por assim dizer cultural desse legado, não apenas na versão mais retrógrada de um Silvio Santos perturbado, com tiques de déspota senil e aparentemente inofensivo, a simular harmonia familiar enquanto arruína o negócio dela; mas também, e sobretudo, com Fausto Silva, em seu Domingão do Faustão, um programa a que as pessoas assistem não obstante estarem sempre prontas a declarar desapreço pelo apresentador. Qualquer um que venha pesquisando TV profissionalmente sabe que Fausto é visto pelo público como alguém que “não deixa os outros falarem”, sendo frequentemente classificado como “autoritário”, “grosseiro” ou “rude” pelo telespectador que, ainda assim, continua a assisti-lo: abandonado a rotinas, esse telespectador imagina encontrar no palco do “Domingão” a “vida real” do elenco ficcional da Globo; mais ou menos como o eleitor que depois de ter votado para o legislativo segundo rotinas sonhou encontrar na sessão dominical do impeachment um representante à altura dos desafios da hora presente.

Ora, se no “Domingão do Faustão” o telespectador escolhe se distrair da realidade enquanto simula para si mesmo um encontro com ela; no “Domingão do Cunha” o eleitor foi em busca da realidade e não teve como dissimular o encontro com o resultado das suas próprias escolhas distraídas*. O “se vira nos trinta” dos deputados repugnou a todos, mas, como não poderia deixar de ser, embalado que fora pela platéia tola, o show prosseguiu e, agora, estamos às vésperas de repetir a história pela terceira vez: a primeira como tragédia, com Vargas; a segunda como farsa, com Jânio; e a terceira como pornochanchada, com Temer. Vargas morreu em 1954 para evitar um golpe militar, mas só o adiou; Jânio renunciou para dar um golpe paisano, e abriu espaço para o golpe militar de 1964; Temer urdiu um golpe paisano cujo desfecho está em aberto — cabe a nós, nas ruas, pô-lo para fora e iniciar a consolidação de uma democracia que faça dos golpes coisa do passado.

Depois de termos seguido tão de perto o remanchar da conjuntura, marcada, de um lado, pela vivacidade equivocada das ruas e, de outro, pelo exercício faccioso dos recursos de palácio, não há porque apostar no jogo institucional tal como ele se apresenta. Não há lições incrementalistas a tirar desse último golpe. Assim como não iremos enfrentar a desigualdade com uma aposta incrementalista em políticas como o Bolsa Família ou o Minha Casa Minha Vida (por mais que esses programas tenham levado benefícios aos pobres, e levaram); tampouco iremos alcançar a consolidação democrática na forma de um Estado de Direito Democrático com uma aposta incrementalista nas práticas dessas instituições que nos foram legadas pela ditadura paisano-militar (por mais que elas se mostrem melhores do que no período da gestão dos militares), afinal, elas estão a nos conduzir à estaca zero do fim da ditadura: mais uma vez, um vice inconfiável e sem voto (Sarney/Temer) assumiu um governo mambembe do p-MDB voltado a fazer negócios em prol da manutenção do status quo.

Para lutar contra a desigualdade temos de ir além do incrementalismo social, impondo aos muito ricos perdas que se mostrem produtivas para o desenvolvimento da sociedade em seu conjunto; para alcançarmos um Estado de Direito Democrático temos de ir além dos marcos institucionais atuais, diminuindo seu pendor faccioso pelos interesses dos ricos. Para abrir caminho à construção de novas instituições precisamos nos lançar às incertezas da inventividade do nosso povo, chamando-o às urnas em nova eleição para os cargos federais: deputado, senador e presidente. Para realizar essa nova eleição será necessário arrancar do Congresso uma alteração constitucional que permita convoca-la e na qual, talvez, possamos nos livrar dos políticos profissionais que colonizaram a representação, dando fim à reeleição para o Legislativo, nos termos em que já tratei em vários posts neste blog, sobretudo aqui, aqui e aqui.

Um desfecho assim é improvável, mas não impossível, pois está a se abrir uma conjuntura de crise especialmente avessa a acomodações – se só com base na inventividade das ruas consolidaremos a nossa democracia, temos de abandonar nesse chamado todo desenho totalizante para a mudança e, por isso mesmo, o que quer que tenhamos nomeado de socialismo pouco tem a fazer aqui. Se um outro mundo é possível, ele só o será se for outro também em relação aos mundos anteriormente sonhados.

Nota: * – Tratei aqui dessa imbricação convergente, sem estrategista ou conspiração, entre os interesses da Globo e do p-MDB.

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 5 DE 6

Saídas tão fajutas quanto a “crise” que visam debelar 

Carlos Novaes, 01 de maio de 2016

Pobre ou rico que seja, o brasileiro tem um hábito velho: falar mal de nós mesmos, de nosso arranjo político, social e econômico, e o faz de um modo tão ácido e auto-depreciativo quanto inócuo para a verdadeira crítica, aquela que resulta em assumir responsabilidades decorrentes do sentimento de tarefa diante da necessidade de superação, que sempre assoma quando realmente se ajuíza os problemas. Caprichamos no auto-deboche enquanto damos às dificuldades um jeitão de intransponíveis; nos fingimos críticos duros para ficar na moleza presumida de quem sabe das coisas, pois a conclusão última de tal sabichão é a de que nada se pode fazer diante do mundo real, como se o mundo político não fosse aquilo que fazemos dele, como se toda imaginação criadora tivesse de ser condenada como excentricidade.

Não é outro o cacoete acionado quando, diante do desfecho mais provável da crise atual, começam a aparecer na mídia expressões pseudo críticas para caracterizar o acordão em curso, tais como “República das bananas”, “democracia bananeira” e outras variedades, não sendo raro que se ornamente essa natureza morta conceitual com a famosa “jabuticaba”, invocada sempre que se quer ridicularizar qualquer movimento da inventividade brasileira para sair dos impasses gerados pela nossa mania de copiar – já é hora de deixarmos a banana e a jabuticaba para trás. Parece mais fecundo encarar que o Brasil é uma democracia com Estado de Direito Autoritário, armação em que não estamos sozinhos — basta olhar, por exemplo, a Rússia, o Peru ou a Turquia, países onde, depois de períodos de ditadura, há eleições diretas e imprensa formalmente livre, acompanhadas do exercício faccioso dos poderes institucionais (corrupção, violação de direitos, descaso social, truculência policial) que caracteriza o Estado de Direito Autoritário sempre que se combina a democracia com a preservação, em favor de minorias muito ricas, de contrastes acentuados na apropriação privada de renda e riqueza, via “livre” mercado.

Talvez a maior evidência do caráter autoritário do Estado de Direito em que transcorre a aventura da nossa democracia não-consolidada seja a crise atual desembocar numa disputa sobre a Constituição, ou seja, como todos estamos a ver, a Constituição não rege a superação da crise, pois tornamos ela mesma elemento da crise: os lados que o impeachment dividiu disputam as bênçãos dela (o debate sobre o golpe); as saídas pensadas para a situação precária de Temer requerem emendas à Constituição, ou renúncia a direito por ela conferido (eleições antecipadas, parlamentarismo, promessa de fim da reeleição presidencial); as ideias em que as opiniões se dividem sobre as ditas “reformas fundamentais” exigirão, por sua vez, em graus variados, alterações constitucionais (desvinculações orçamentárias, direitos sociais, previdência).

Trocando em miúdos, se já não é um bom sinal que uma vez em crise um país se veja levado a debates constitucionais, menos consolidada é a sua democracia quando se vai ao texto constitucional não para consultá-lo, mas para alterá-lo – ainda menos consolidada ela é se essas tentativas de alteração se mostram recorrentes. As coisas ficam mesmo desfavoráveis à consolidação democrática ali onde se fez rotina a luta entre os que pretendem alterar a Constituição e os que simplesmente arregimentam maiorias legislativas facciosas para atropela-la, como estamos a ver no Brasil — aliás, tem sido frequente encontrar na mídia convencional opiniões sobre essa luta que indevidamente tratam como equivalentes as propostas de alterar a Constituição e as iniciativas para atropela-la.

Embora seja verdade que ambas dão prova de que nossa democracia não está consolidada, é forçoso reconhecer que num Estado de Direito Autoritário alterar a Constituição é condição para consolidar a democracia, ao passo que atropelá-la é fazer arma contra ela o autoritarismo de cujo banimento a Constituição deveria ser ela mesma uma prova. Toda proposta de mudança constitucional que não vá à raiz institucional dos nossos problemas é um atropelo à Constituição. Como vimos nos quatro artigos anteriores desta série (que, julgo eu, são melhor compreendidos pelo leitor que leu também a série imediatamente anterior a esta, com dois artigos sobre o golpe), a principal raiz institucional dos nossos problemas é o legado paisano da ditadura ao funcionamento do nosso Legislativo, esse ferramental forjado da, e para a, manutenção da desigualdade. Examinemos as propostas de mudança na ordem política que vem sendo apresentadas no bulevar de ilusões da nossa mídia convencional, tratando primeiro de mudanças e preceitos constitucionais e, em seguida, do âmbito infra-constitucional.

O Parlamentarismo – qualquer proposta de parlamentarismo implica dar mais poder ao Congresso, a este Congresso que está aí. A escolha do chefe de governo passaria a ser indireta. E este chefe de governo formaria seu ministério negociando diretamente com este Congresso que o elegeu. Quem, morando no país dos “anões do orçamento”, acredita que esse arranjo contribuiria para a consolidação da democracia está a um passo de acreditar em duendes, afinal, estaríamos não só removendo o único vetor de mudança de que ainda dispomos, isto é, a eleição direta de um presidente da República para a chefia do governo, como entronizando nesta chefia o legado paisano da ditadura por nós derrubada justamente para podermos eleger o presidente da República! Em outras palavras, adotar o parlamentarismo é resolver contra a democracia a disputa entre o Legislativo e o Executivo de que já falamos nesta série. Isso é tão verdade que, em duas consultas diretas, o eleitorado brasileiro rejeitou amplamente essa forma de governo, pois reconheceu nela um ataque à democracia, não um passo na direção da sua consolidação.

O fim da possibilidade de reeleger o chefe do Executivo – não há qualquer evidência de que a possibilidade de reeleger prefeitos, governadores e presidente venha pondo problemas para a consolidação da democracia. Bem ao contrário, os anos de vigência deste dispositivo deixam claro que ele não deu a ninguém, por si mesmo, garantias de recondução. Se inconveniente há, é na possibilidade da volta intermitente do governante já reeleito, um fator que está a permitir uma ciranda combinada a simular a renovação, como dão exemplo as escolhas recentes para o governo de São Paulo – um tucano sai, mas entra outro, a ser sucedido pelo primeiro. Na verdade, querem o fim da reeleição aqueles que — tendo pressa em poder disputar o comando do orçamento governamental nesse país em que a corrupção se fez rotina, seja em âmbito municipal, estadual ou federal – preferem ter as vagas para o executivo sob exigência de renovação compulsória pelo eleitorado, e enxergam nos membros do próprio partido um obstáculo à realização das suas ambições: por exemplo, como os tucanos que aspiram à presidência já foram governadores e estão, portanto, no final da “carreira”, nenhum deles quer arriscar munir o adversário interno do direito “natural” de disputar a reeleição. Seja como for, está claro que essa mudança constitucional é um atropelo, pois cria tensões à partir de ambições miúdas e não em resposta a demandas da sociedade pela consolidação da democracia.

Nova escolha do presidente da República – a realização de novas eleições presidenciais está prevista na Constituição para o caso de presidente e vice deixarem a presidência antes de cumprida a metade do mandato. Logo, se o TSE cassar a chapa Dilma-Temer por crime eleitoral antes do final do ano teremos novas eleições diretas 90 dias depois. Em caso de a decisão do Judiciário se dar depois de cumprida a metade do mandato, caberá ao Congresso a escolha de um novo presidente. Nenhuma das soluções convém à consolidação da democracia: a primeira porque nos levaria a mais uma eleição solteira, como a de Collor, sem pôr em jogo as cadeiras do Legislativo federal, moradia dos nossos maiores problemas. A segunda porque daria a qualquer maioria facciosa no Legislativo a oportunidade de escolher um presidente conveniente para si. Olhadas segundo a dicotomia Executivo-Legislativo que marca nossa vida política desde a ditadura, essas duas soluções são tão ruins que, inclusive, apontam para resultados opostos: a primeira permite eleger um chefe do Executivo totalmente desligado do Legislativo; a segunda faz o chefe do Executivo sair diretamente de dentro do Legislativo. É como se, a depender do curso do mandato, o eleitorado quisesse mais ou menos democracia. Uma contradição dessas, prevista na própria Constituição, não chega a ser um convite à consolidação da democracia.

Adoção do voto distrital – provavelmente esta é a proposta mais carregada de mistificação quando se pensa na consolidação da democracia. Em primeiro lugar, ela mistifica porque faz acreditar que finalmente iremos enfrentar o problema principal, o Legislativo; em segundo lugar, há mistificação porque indica que o problema estaria na forma de eleger o parlamentar, não na conduta do parlamentar depois de eleito. Em terceiro lugar, ela mistifica porque espera que, eleito pelo distrito, o parlamentar, “confinado” a um território, vá ficar mais sujeito ao crivo do eleitor e, assim, mudar sua conduta (se fosse assim, as Câmaras de Vereadores de cidades pequenas seriam um primor de virtudes republicanas e não os antros de negociatas e enriquecimento que todos conhecemos). Ora, essa esperança é vã porque: (a) no interior dos estados os distritos serão enormes, reunindo vários municípios. Não haverá, portanto, a simpática figura imaginada por Delfim Netto em artigo recente (um primor de cientificismo institucional sem qualquer base material): a esposa do deputado indo ao salão de beleza do seu distrito – por mais eficaz que alguém possa achar essa singela interação social, qualquer um que já tenha feito simulações de distritos com base nos números e na dispersão geográfica do nosso eleitorado sabe que será impossível haver o salão de beleza do distrito, serão muitos. A esperança de proximidade eleitor-eleito no distrito é vã também porque (b) na maioria das capitais e nas grandes cidades, a subdivisão vai gerar distritos que, por si só, serão maiores do que os redutos, serão densamente povoados (com mais de um salão de beleza, garanto) e, por isso mesmo, tampouco permitirão ao eleitor controlar “seu” deputado, seja em razão de, nessas conurbações, não haver necessidade de despachantes em Brasília, seja porque com o voto distrital se esmagará o chamado voto de opinião, característica dessa áreas densamente povoadas – afinal, não se pode tratar como temas de vizinhança a opinião sobre o aborto, a pena de morte, o presidencialismo, o ensino de religião nas escolas, o casamento gay, etc. Em quarto lugar, há mistificação quando, até por não saber do que está falando, o defensor do voto distrital omite que sua adoção exigiria rever, para, no mínimo, tornar múltiplos entre si, o número de deputados federais e/ou estaduais do país, pois vamos ter que ter desenhos distritais compatíveis para os dois cargos em cada estado, sob pena de cidadãos pertencerem a distritos disparatados – prático e realista, não? Em suma, ao invés de contribuir para a consolidação da democracia, o voto distrital criaria novos problemas e baniria da disputa do Legislativo os representantes do voto de opinião, justamente aquele mais afeito à mudança. (Para maiores esclarecimentos sobre o voto distrital, ver aqui e aqui).

Financiamento público de campanhas eleitorais – como já foi dito detalhadamente aqui, se aprovado, esse financiamento daria o paraíso aos políticos, sem que eles precisassem morrer. Para consolidar nossa democracia precisamos aumentar o vínculo entre eleitor e eleito. Parece claro que se o político já tiver garantido o dinheiro público para a campanha, não irá precisar correr atrás do dinheiro do eleitor, ficando ainda mais independente dele. Temos de obrigar os políticos a pedirem dinheiro ao cidadão e às empresas, mas estabelecendo rigorosos tetos iguais (digamos, no máximo 100 mil reais, seja para indivíduos, seja para empresas). Ou seja, o problema não está no financiamento privado legal, mas no volumoso dinheiro ilegal que, obtido da corrupção público-privada, jorra do estado, via empresas, para as campanhas eleitorais na forma de “restos a pagar” (pois o dinheiro grosso não vai para campanhas, mas sim para o enriquecimento ilícito dos envolvidos, como já discuti aqui).

Todos esses exemplos de mudança no texto constitucional ou na norma legal infra-constitucional deixam claro duas coisas: primeiro, uma democracia que requer mudanças dessa ordem não pode estar consolidada, ou seja, vivemos sob um Estado de Direito Autoritário; segundo, e precisamente em razão dessa não-consolidação, todas as mudanças mais citadas visam fortalecer o Legislativo no que ele tem de pior: o poder de impedir a mudança e, assim, de solapar o enfrentamento da desigualdade, enfrentamento que é indispensável à consolidação da nossa democracia e ao desenvolvimento do país. Não foi à toa, portanto, que o domingo inesquecível do triunfo da reação tenha se dado no cinquentenário do p-MDB, o partido de Temer, o partido fiador da desigualdade, em torno do qual simulam polarização as duas forças políticas que, ao abrirem mão da luta contra essa mesma desigualdade, se tornaram igualmente irrelevantes para a consolidação da democracia brasileira, o PSDB e o PT — não obstante esses partidos só tenham alcançado acolhimento na opinião pública precisamente porque, lá atrás, se disseram inspirados pelas duas vertentes tradicionais daquela luta, a social-democracia e o socialismo. Ou seja, a sociedade brasileira precisa refletir sobre essa reiterada frustração/traição de suas escolhas pela mudança e tirar dessa reflexão as consequências correspondentes, que podem ser resumidas assim: chega dos mesmos!

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 4 DE 6

A ritualização da ira

Carlos Novaes, 27 de abril de 2016

Nos três artigos anteriores desta série tentei mostrar, entre outras coisas, que o impeachment de Dilma reproduz o modus operandi imposto à política brasileira pela ditadura paisano-militar (nas circunstâncias atuais, esse legado nefasto se aproveita do cadáver do lulopetismo, morto, como vimos, justamente porque desistiu de enfrentar a desigualdade, que é o fundamento do Estado de Direito Autoritário que nos infelicita). Esse modus operandi pode ser resumido assim: um Legislativo hegemonizado por agrupamentos desprovidos de qualquer projeto de desenvolvimento e consolidação democrática para o país, sempre que vê ameaçado o status quo em que foi treinado a obter e preservar vantagens para si, passa a criar, em forma de “crise”, dificuldades para o Executivo, de modo a simular sintonia com a sociedade insatisfeita e, sobretudo, dissipar a energia transformadora emitida pelos segmentos mobilizados dela, que estão justamente a ameaçar a manutenção desse status quo.

Dizendo o mesmo de outro modo, ao contrário do que temos sido levados a acreditar, quando olhada de mais longe a dinâmica da política brasileira dos últimos 50 anos deixa ver poucas variações: sob ditadura ou sob democracia, o Legislativo, onde os mandões, depois de se acomodarem às práticas de dispositivo paisano da ditadura, se habituaram a não ter projeto para o país e fizeram da expertise adquirida naquela acomodação um instrumento para a defesa da ordem desigual que é favorável a si; um Legislativo assim degradado, eu dizia, se opõe ao Executivo, a quem as responsabilidades inerentes às funções exercidas — e, sob democracia, também em razão das expectativas geradas para obter o voto — obrigam a apresentar, e a pôr em prática, algum projeto que leve o país a esta ou àquela mudança, o que sempre implica incerteza incômoda para os cardeais do Congresso (ao contrário do que se pensa, e do que seria de almejar numa democracia consolidada, no Brasil o Legislativo está ainda mais agarrado a rotinas do que o Executivo, pois atua segundo práticas paisanas que transitaram eleitoralmente da ditadura para a democracia).

Sob um arranjo desses, e numa sociedade encharcada de demandas insatisfeitas como a nossa, qualquer dificuldade institucional mais séria para a reprodução da ordem (uma Lava Jato, por exemplo), ou diante de mobilização direta da sociedade que sofre as consequências dessa mesma desigualdade (um panelaço contra a carestia como o de 1976; ou as manifestações contra a tarifa de transportes em 2103), o Executivo estará sempre vulnerável para que se faça nele o desenho do alvo – para bem e para mal. Se as coisas se complicam, as forças que hegemonizam as práticas autoritárias paisanas logo começam a preparar o bote, que pode acabar em desengate: primeiro, passam a cobrar mais caro pelo apoio do Legislativo à chamada governabilidade (como fizeram com o Figueiredo da Anistia, com o Sarney da ressaca do cruzado, com o FHC da emenda da reeleição e com o Lula do mensalão, salvaguardadas as diferenças de objetivos, claro, e as margens havidas para a chantagem em cada caso); segundo, se o ardil não funciona e as coisas pioram, isolam o Executivo na condição de mal a vencer, tangendo contra ele a insatisfação popular, distraindo-a da conclusão de que o mal a superar engloba todo o sistema político garantidor da desigualdade – foi assim com o Figueiredo da fase final da transição “lenta, gradual e segura”, foi assim com Collor e está a ser assim com Dilma (naturalmente, para isolar o essencial estou a deixar de lado as diferenças do que se pôs em jogo em cada caso).

Longe de mim atribuir o desfecho comum para esses estados de coisas a uma conspiração, afinal, esse desenho final é resultado, dentre outros fatores, tanto de inúmeras conspirações inconclusivas rivais entre si, quanto de entrechoques havidos na sociedade mesma em cada um dos momentos históricos respectivos. Também estou longe de não valorizar as diferenças marcantes entre estar submetido ao dispositivo paisano da representação congressual sob gestão ditatorial (no caso, militar) ou sob gestão democrática: a eleição presidencial direta trouxe óbvias diferenças para melhor. Menos óbvio, porém, é o que há de continuidade entre democracia e ditadura, e é essa continuidade que estou a apontar, de modo a nos permitir explorar o potencial emancipatório da atual crise brasileira, cujo desatamento depende da lucidez e da disposição de luta que tenhamos para encarar o problema central: o Legislativo. Vejamos, nas linhas a seguir, como ele tem obtido sucesso e, em seguida, no próximo post, exploremos as falsas soluções (sempre mais prováveis), deixando para o post final a discussão de um possível caminho de superação.

Embora com dificuldades crescentes, essa operação do dispositivo paisano via Legislativo tem se realizado com êxito porque, de um lado, a despeito de insatisfeita, a sociedade brasileira é preguiçosamente conservadora, o que a leva a evitar desfecho cabal para suas inquietações, isto é, está sempre na torcida íntima para que “os políticos se entendam” (o que robustece o que deveria ser vencido) e, de outro lado, o dispositivo paisano se sai bem também porque o dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura, a PM, jamais deixou de ser mobilizado para lembrar ao nosso povo os custos do engajamento na luta contra a ordem, como Alckmin fez contra os manifestantes de junho de 2013 e, mais recentemente, contra as mobilizações dos adolescentes secundaristas.

Mas as dificuldades para repetir a pantomima com êxito têm aumentado, já que as contradições postas pela desigualdade não param de crescer e a ordem política moldada à imagem e semelhança da desigualdade não pára de se desmoralizar. E ela se desmoraliza porque não há roubalheira que chegue para contentar a todos os agentes políticos que aderiram ao esquemão – não há parceria Público-Privada que absorva todos os agrupamentos voltados a ganhar com, e a driblar a, desigualdade quando todo mundo (de Odebrecht a Paulinho da Força, de Aécio a Cunha) já descobriu o caminho das pedras – a disputa eleitoral adquiriu contornos de uma luta de morte.

Daí a Lava Jato ter encontrado tanto material criminal, o que, por sua vez, levou todo o sistema político a se mobilizar para contê-la ou dela tirar vantagem. Provida de dois braços, o da primeira instância, no Paraná, e o da última instância, no Supremo, no decorrer da luta a Lava Jato teve sua inevitável ênfase no PT (inevitável porque quando tudo começou o partido já ocupava o centro do poder político federal há 12 anos) empurrada para uma unilateralidade que, até aqui, na prática, dirigiu apenas contra o lulopetismo uma corrupção que diz respeito a todo o sistema político. Embora a equipe do Paraná estivesse impedida por lei de investigar pessoas com fôro privilegiado, certas escolhas de Moro não deixam dúvidas sobre os objetivos políticos de decisões suas contra Lula. Ou seja, no andamento das disputas em torno da Lava Jato, mesmo a primeira instância passou a oferecer evidências do caráter unilateral das suas escolhas. Caso bem diferente é o da esfera federal, protagonizada pelo STF, pois ali a unilateralidade tem sido total: salvo no caso de Cunha, nada vai adiante contra políticos graúdos fora do PT.

O Paraná foi unilateral em sua celeridade; o Supremo vai sendo unilateral na sua morosidade – ambos dão exemplo do exercício faccioso dos poderes institucionais próprio do nosso Estado de Direito Autoritário: o primeiro ofereceu material que serviu ao incitamento da sociedade; o segundo digere o material num ritmo que serve à dissuasão dela – entre uma escolha e outra, o impeachment. Combinadas com a maioria facciosa improvisada no Legislativo, essas práticas do Judiciário conferem a todo o conjunto um ar de encenação sacrificial onde a vítima é o Executivo, contra quem se fez a ritualização da ira da sociedade.

Mas ainda é possível que essa crise não desemboque num novo acordão contra a mudança, pois ao longo dos últimos anos, e especialmente no curso dos últimos meses, a sociedade tem mostrado ganhos de consciência sobre o que está em jogo. O contraste entre as práticas facciosas descritas acima e esses ganhos de consciência apareceu na forma da estupefação, que uniu a todos, qualquer que fosse o lado a que se tenha deixado arrastar nessa disputa. Por um momento nos esquecemos da crise, de Dilma, do PT, de Temer, de Lula ou da corrupção e nos concentramos na realidade: a conduta efetiva, indubitável, ali, na nossa frente, dessa corja liderada por Cunha, que nos “representa”. Tal como num programa de auditório em que as aberrações saíram de controle e a realidade da violência cotidiana se deixa ver, também naquele domingo nosso parlamento se viu desnudo em sua violência e cinismo, diante de um país perplexo.

A força da realidade se impôs a todo o alarido da mídia, a todas as análises mistificadoras, e pudemos ver, ao vivo e em cores, de que material é feita a representação legislativa que nossa negligência permitiu entronizar-se. A ninguém escapou o imenso fosso, talvez tão grande quanto o da desigualdade, entre a importância que fora dada ao impeachment ao longo de 16 meses de luta e aquela encenação decisória dele: a performance coerente dos atores fez aflorar a pequenez do melodrama que levara as ruas a se dividirem improdutivamente entre vilões e mocinhos, e nos deixou em vias de enxergar a extensão da tragédia.

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 3 DE 6

O lulopetismo como cadáver

Carlos Novaes, 25 de abril de 2016

Para quem enxerga a desigualdade como o problema central a entravar a consolidação da democracia e o desenvolvimento do Brasil, o lulopetismo vagueia insepulto não é de hoje, pois ele só chegou à presidência da República depois de ter abandonado a luta contra a desigualdade, tornando-se sócio do bloco de poder articulado pelo Real justamente em torno do pacto de que os ricos não podem perder e os pobres só podem melhorar em uma de duas circunstâncias: quando todos ganham, ou quando se pode impor perdas às camadas médias para que os pobres ganhem. Ora, se os ricos nada devolvem do até aqui acumulado, e se logram manter as engrenagens de concentração de renda e riqueza que lhes permite essa acumulação, não se altera o modelo concentrador e se continua a sonegar a todo o sistema uma energia que ganha formas improdutivas, como o entesouramento, o desperdício ou o luxo. Nas raras oportunidades em que é possível fazer políticas para que todos ganhem não há luta contra a desigualdade porque não há empenho para estreitar o fosso que separa ricos e pobres e os arrancos para adiante terão sempre o desenho do voo do jacu; já quando as camadas médias perdem para que os pobres ganhem não há luta contra a desigualdade, mas mero remanejamento dos sofrimentos entre os não-ricos, sem alteração da estrutura que gera e organiza esses sofrimentos.

O período de poder do lulopetismo foi caracterizado pela obediência à clausula pétrea do pacto (a de que os ricos não podem perder) e, em decorrência disso, pelo deslocamento descendente de uma para outra das cláusulas subsidiárias dele, conforme as oportunidades do cenário internacional passaram de propícias a adversas: sob Lula, como o cenário internacional era favorável, depois de um ajuste ortodoxo inicial, os ricos “ganharam dinheiro como nunca antes” e o resto da pirâmide social melhorou junto, com grande ênfase nos ganhos dos muito pobres (ganhos estes erroneamente vistos como queda da desigualdade); sob Dilma, num primeiro momento, mantiveram-se os ganhos dos ricos, enquanto as camadas médias tiveram sua qualidade de vida diminuída para que os pobres não sofressem todo o impacto dos ventos estrangeiros, que se haviam feito desfavoráveis; num segundo momento, diminuíram os ganhos dos ricos, enquanto as camadas médias passavam a dividir perdas com os pobres; finalmente, em sua fase terminal, o governo Dilma levou à estagnação os ganhos dos ricos, acompanhada do sucateamento da qualidade de vida das camadas médias (via deterioração dos equipamentos e serviços públicos) e da regressão dos ganhos que os mais pobres julgavam ter incorporado, mas que revelaram toda a sua insustentabilidade, conjunto que não decorre senão da obediência ao pacto que o havia enjambrado, combinada com uma gestão incompetente dos desdobramentos fiscais adversos. Não foi à toa, portanto, que o PT perdeu apoio nas camadas médias que lhe eram favoráveis e enfureceu aqueles segmentos dela que já lhe eram hostis.

O que fez do lulopetismo insepulto um Judas a ser malhado em procissão, impedindo-o de continuar a ter sucesso fingindo vivo o compromisso há muito abandonado com a luta contra a desigualdade, foram os sofrimentos acima e os desdobramentos da operação Lava Jato – sem ela, a farsa “reformista” do lulopetismo ainda poderia lhe permitir empurrar os problemas com a barriga. Finalmente ficou claro, porém, que o PT, tanto quanto o resto do sistema político, vinha operando com base na corrupção. A corrupção resulta da determinação dos de cima em manter a desigualdade como estrutura de proveitos (reforçando-a nos acertos corruptos em que o mercado combina previamente os ganhos de cada um dos supostos concorrentes em torno de contratos fraudulentos com o Estado), e se espraia no impulso dos de baixo para escapar dos efeitos negativos da desigualdade (evitando os custos de enfrentá-la).

Ou seja, diante de um Estado faccioso, saído de uma sociedade extremamente desigual, os de baixo tem na corrupção um dispositivo para driblar perdas; os de cima promovem a corrupção para assegurar ganhos  — no dia-a-dia de uma tal sociedade, há uns que incorrem na corrupção por pequenas benesses, que podem ser obtidas de forma individual (escapar a uma multa de trânsito) ou coletiva (tirar vantagem do exercício de mandato sindical); enquanto outros articulam pela corrupção grandes fraudes, que darão tão mais certo quanto melhor combinarem, via contratos fraudulentos entre o Estado e o mercado, o ganho individual dos operadores com as conquistas coletivas ilícitas das organizações envolvidas (lucro para as empresas; poder e dinheiro para os partidos e seus mandatários — campanhas são financiadas com parte desses dinheiros).

O que preparou o lulopetismo para o abandono da luta contra a desigualdade foi sua adesão à corrupção, tanto como método para alcançar o poder, quanto meio de os envolvidos ganharem dinheiro, práticas que passaram a dar forma ao PT desde a conquista das primeiras prefeituras, vistas como unidades de negócios. A primeira evidência pública de que esse realismo nocivo se instalara no cerne do partido é o embate havido, já em 1989, entre o governo honesto de Luiza Erundina na prefeitura do município de São Paulo e a primeira campanha de Lula à presidência da República, no famoso caso Lubeca, quando se pretendeu obter daquela empresa dinheiro para a campanha presidencial em troca de contrapartidas saídas de contratos na prefeitura, operação que a prefeita Erundina, uma vez informada, barrou. Tempos depois, no curso das chamadas “Caravanas” para a campanha presidencial de 1994, mais uma vez veio à luz o que havia de obscuro nas práticas do PT, dessa vez na prefeitura de São José dos Campos, quando o então secretário da fazenda municipal, Paulo de Tarso Vencesllau, não aceitou e trouxe a público manobras em torno do dinheiro público e o mercado das consultorias, o que lhe custou o cargo e, em seguida, a expulsão do PT. Mais adiante, às vésperas de alcançar a tão perseguida vitória presidencial, em 2002, esse realismo nocivo exibiu sua face macabra no episódio da morte do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, mesmo que se acredite, como é plausível, que os líderes do PT não tiveram vinculação com o assassinato, que se deu, não obstante, em circunstâncias de disputas de dinheiro e poder empresarial (o mercado do transporte urbano intra-municipal) de que maiorais do PT não podem se pretender isentos.

Tendo sucumbido à corrupção, o PT tornou-se parceiro dos muito ricos e, assim, não tinha como perseverar na luta contra a desigualdade, enveredando pelas práticas que desviam de seus objetivos iniciais quase todo agrupamento de ação coletiva que os de baixo logram reunir para enfrentar situações de desigualdade extrema, como tratei, por exemplo, aqui e aqui. Para esconder sua condição de cadáver, o lulopetismo apostou suas fichas na polarização com os tucanos e, para dar verossimilhança à farsa, diante de qualquer dificuldade mais séria voltava a empunhar bandeiras que, abandonadas há tempos, já não sabe sequer fazer tremular: essa incongruência recebeu forma de símbolo terminal nos fraudulentos discursos proferidos por Lula no âmago dessa crise – deu vergonha ouvi-lo.

Os tucanos, por sua vez, para esconder a ilegitimidade de sua pressa de voltar ao poder, apresentam-se como defensores de uma democracia supostamente consolidada contra um “esquerdismo” petista que sabem tão de araque quanto seu social-liberalismo, ao mesmo tempo em que ficam a oscilar entre o uso de ora um, ora outro dos dispositivos mais violentos legados pela ditadura paisano-militar ao Estado de Direito, indo de rasgar a Constituição (como nesse golpe paisano contra o mandato de Dilma) ao emprego violento das PMs sob seu comando (como faz Alckmin em SP, afeiçoado que é deste legado propriamente militar da ditadura).

Na verdade, o PT tomou do PSDB o protagonismo do pacto que os tucanos haviam posto de pé e, diante da ruína inexorável desse pacto (afinal, a desigualdade brasileira é insustentável) sob circunstâncias em que uma sociedade contraproducentemente conservadora ainda não engendrou uma alternativa para ir adiante, ambas as forças fazem uma da outra o espantalho a combater, enquanto acabam por abrir caminho para o p-MDB, que está sempre a andar para trás, embora tenha o cuidado esperto de deixar pegadas como se estivesse avançando: isso é que é a vanguarda da ruína.

A funcionalidade do lulopetismo como cadáver está em depois de ter se prestado a legitimar o Estado de Direito Autoritário que garante a desigualdade, acabar por servir de fantasma à desmoralização das bandeiras políticas voltadas a superá-lo, fragilizando-as ante a um anti-comunismo boçal: isso é que é a ruína da vanguarda.

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 2 DE 6

Impeachment: um golpe paisano para, mais uma vez, fugir à mudança

Carlos Novaes, 24 de abril de 2016

A transição “lenta, gradual e segura” permitiu que a ditadura paisano-militar transmitisse ao Estado de Direito que a sucedeu práticas e dispositivos que formam um acervo indispensável à manutenção do seu maior legado: a desigualdade. O principal dispositivo militar deste acervo é a Polícia Militar-PM, como já discuti aqui; o principal dispositivo paisano é o p-MDB, partido que se acomodou ao papel para o qual foi criado há 50 anos: manipular a política miúda para garantir a ordem desigual que permite negócios graúdos, como discuti detalhadamente em outra série, de quatro artigos, iniciada aqui. Se fizermos uma retrospectiva da prática desses dois dispositivos no curso dos últimos quarenta anos, isto é, entre 1976 (ano de início dos grandes levantes contra a carestia) e 2016 (ano das grandes mobilizações contra a corrupção), veremos que tanto o legado militar quanto o legado paisano da ditadura tem atuado, antes como depois do fim dela, de forma violenta e eficaz contra os interesses da maioria de uma sociedade que continua a almejar mudanças. Sob a democracia, o dispositivo militar é manejado pelos governadores, que fazem um notório uso repressivo da PM; o dispositivo paisano está encarnado nas práticas hegemônicas das nossas casas legislativas, apoiadas, claro, na expertise do p-MDB, tudo agravado pelo fato de que a PM passou tanto a ocupar cadeiras de representação legislativa, quanto a exercer atividades de gestão governamental. O conjunto vem de longe e anuncia um tempo medonho, se a sociedade continuar a não agir diante do que vê.

O legado da Ditadura paisano-militar

Nossa transição da ditadura para a democracia marcou a sociedade brasileira com um contraste que se impõe até hoje: a sociedade se mobiliza para obter o máximo, e o resultado alcançado é sempre o mínimo. Saímos à rua por uma Anistia ampla, geral e irrestrita e o Congresso aprovou uma anistia que serviu de biombo para torturadores; voltamos às ruas por Diretas-Já, mas o Congresso não aprovou a emenda Constitucional que restabeleceria de pronto a eleição direta para a presidência da República. Depois disso, o p-MDB preferiu Tancredo a Ulisses na disputa do Colégio Eleitoral, mais uma vez obrigando a sociedade que queria a mudança a se contentar com uma saída palatável à ditadura que se queria derrubar. As circunstâncias e o alarido midiático em torno da doença e morte de Tancredo levaram a sociedade que lutava por mudanças não apenas a viver como risco imenso a perda do arranjo ultra-conservador que se fizera em torno do notável político mineiro, mas, sobretudo, a agarrar com esperança a até então impensável investidura de Sarney na presidência da República, que, não obstante, logo adiante, reivindicou e obteve do Congresso, liderado pelo p-MDB, a mudança constitucional que lhe deu um quinto ano de mandato, postergando em mais um ano as eleições diretas para presidente que a sociedade tanto reclamava. Ora, o sistema político construído pela dinâmica eleitoral preservada pela ditadura, no qual se contrapunham a ARENA e o p-MDB, foi fundamental para que a história tivesse tido esse desenho, isto é, a facção de profissionais da política treinados no respeito às limitações impostas pela ditadura aprendeu a defender seus próprios interesses em meio à turbulência social e, claro, não queria que as mudanças que saíssem da redemocratização viessem a ameaçar suas conquistas.

Mesmo narrado de modo esquemático como acima, não é difícil perceber que esse período que vai de 1976 até 1989 pode ser analisado como uma longa domesticação, na qual a sociedade foi levada a absorver como uma vicária “vitória parcial” cada uma das derrotas fundamentais que lhe foram infligidas. E pior: como naquela altura se combatia a ditadura militar, isto é, como ainda não tínhamos clareza de que o inimigo era uma ditadura paisano-militar, as derrotas sofridas foram colocadas apenas na conta dos militares e, assim, ficou encoberto o fato de que em cada uma delas atuara firmemente contra nós o dispositivo paisano da ditadura.

Embora tenha sido uma eleição “solteira”, na qual as máquinas partidárias convencionais não foram ativadas para buscar mandatos legislativos, circunstância que facilitou as coisas para Collor e para Lula, não devemos subestimar o papel que aquelas traições jogaram na escolha desses dois finalistas na eleição presidencial de 1989: ainda que por razões bem diferentes, nem Collor nem Lula podiam ser associados àquelas derrotas que nos foram impingidas, não sendo à toa que nenhum dos dois era, então, próximo do p-MDB. Em outras palavras, quando chegou a hora de finalmente votar para presidente da República, o eleitorado fez escolhas em que contrapôs duas alternativas de mudança no segundo turno (e com Brizola em terceiro), evitando premiar os candidatos dos partidos campeões da transição “lenta, gradual e segura”: o p-MDB, o PSDB (saído do p-MDB), o PDS e o PFL (ambos saídos da ARENA).

Tomada em seu conjunto, a ordem de fatos exposta acima põe a seguinte questão: com o fim do arbítrio militar e a volta das eleições diretas para a presidência da República, ao exercício rotineiro da política eleitoral e da ação legislativas que nos foi legado pela ditadura (o seu dispositivo paisano que herdamos como representação) passou a se contrapor o vetor de novidades saído da eleição direta para o Executivo (a gestão, cujo acesso nos era negado e para a qual o p-MDB jamais tivera de se preparar com projeto próprio). Em outras palavras, contra um Congresso viciado em lucrativas rotinas acomodatícias se passou a eleger um presidente empurrado à mudança pelo voto direto. Olhada desse modo, a disputa entre o Legislativo e o Executivo nos leva a ver mais semelhanças do que diferenças nos processos de impeachment de Collor e Dilma: como quer que sejam diferentes as situações criminais de um e de outro, ambos foram vítimas de maiorias políticas facciosas, que viram no presidente o alvo ideal para onde desviar a fúria popular contra o sistema político que a todos infelicita.

Em outras palavras, em mais uma operação para evitar mudança que o atinja, o legado paisano da ditadura desvia a mobilização da sociedade para o Executivo, a gestão, (tal como fez com os militares – neste caso com êxito que beneficiou a todos nós), quando o problema, agora ainda mais do que antes, está na representação. Ainda dizendo o mesmo, mas de um outro modo: o impeachment de Dilma foi o golpe que um sistema político podre enjambrou para conter a Lava Jato ao mesmo tempo em que sacia a opinião pública com a unilateralidade da ação de um Judiciário faccioso. Ou seja, em mais um exercício exitoso do método velho de quarenta anos, mais uma vez o legado paisano da ditadura leva a sociedade a se contentar com o mínimo depois de ela ter ido às ruas reclamando o máximo, desfecho para o qual ela contribuiu ao se dividir de um modo contraproducente.

A reinstituição do voto para presidente esbarrou na muralha das práticas eleitorais e institucionais que se haviam azeitado no transcurso de toda a ditadura paisano-militar, isto é, o dispositivo paisano da ditadura seguiu inalterado e tornou-se o cerne autoritário do nosso Estado de Direito. A maneira como os políticos profissionais “resolvem” nossas “crises” e crises não oferece indício de consolidação democrática, mas a confirmação das práticas institucionais facciosas que impedem essa almejada consolidação e escancaram que nossa democracia eleitoral vem sendo exercida em conexão com um autêntico Estado de Direito Autoritário. Em outras palavras, é uma ilusão considerar democrático o nosso Estado de Direito. Vamos ao cadáver.

UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 1 DE 6

Desigualdade e Estado de Direito

Carlos Novaes, 24 de abril de 2016

Introdução

A democracia é um arranjo muito delicado, que dificilmente apresenta consolidação na forma de um Estado de Direito realmente democrático. São minoria os países que alcançaram essa forma (embora haja muito sufrágio universal pelo mundo) e, mesmo neles, as ameaças à democracia são crescentes em razão dos problemas postos pela desigualdade, cuja tendência tem sido crescer, e pela crise da representação profissional. Numa democracia como a do Brasil, país em que, como desde sempre, a ordem social e política está fundada na aberrante desigualdade sócio-econômica que hoje contrasta, acentuadamente, na renda e na riqueza, eleitores virtualmente iguais entre si, o arranjo democrático da disputa pelo poder através do sufrágio direto universal mostra todas as suas limitações, pois fica claro que se o livre e igual direito de voto é necessário, está longe de ser elemento suficiente para que um país alcance a consolidação da democracia.

É que em situações de desigualdade extrema, o livre exercício da opinião eleitoral do cidadão esbarra na muralha intransponível das rotinas eleitorais do Estado fundado na desigualdade. Em outras palavras, a todo fluxo à mudança vindo da sociedade através do voto se opõe a resistência à mudança própria das rotinas que se fizeram norma em Estados capturados pelas elites que são o pólo beneficiado pela desigualdade. Há uma oposição que contrapõe, de um lado, na sociedade, o exercício do voto livre direto individual (dínamo gerador do inesperado, da surpresa, da mudança) e, de outro, no Estado, a captura neutralizadora dos efeitos desse exercício livre pela forma institucional eleitoral (casamata de rotinas em que se defendem contra a mudança aqueles que sentem seus privilégios ameaçados).

Não é à toa que no Brasil, país de desigualdade extrema, mesmo que não se tenha generalizado a compreensão da contraposição acima, se tornou senso comum a ideia acertada, mas vaga, de que para consolidar a democracia precisamos enfrentar a desigualdade. Por ser vaga, a ideia se presta a toda sorte de mistificação e, por isso mesmo, a sociedade brasileira se deixou aturdir pelo embate improdutivo entre um fantasma e uma ilusão nessa hora turbulenta em que estamos a fazer escolhas políticas e institucionais definidoras do nosso futuro – o fantasma é um certo “socialismo”, a ilusão é um certo “Estado de Direito”, e as escolhas que nos desafiam dizem respeito, justamente, à consolidação da democracia na perspectiva do enfrentamento da desigualdade.

Assim como não há fantasma sem o defunto que o precedeu, também não há ilusão sem o arremedo de realidade que lhe deu origem: a divisão improdutiva que empurrou gente tolamente apaixonada às ruas se dá entre o cadáver do lulopetismo e um ilusório Estado de Direito que, revestido da democracia eleitoral, conserva um legado da ditadura paisano-militar. Não é à toa, portanto, que a essa divisão corresponda o embate eleitoral entre o PT e o PSDB, no qual ambos escondem, sob uma polarização fajuta, o fato de perseguirem os mesmos objetivos; com os tucanos se pavoneando defensores de um Estado de Direito supostamente democrático contra um não menos presumido pendor petista pelo socialismo. Como todo esse arranjo é uma falácia, o resultado mais recente dessa porfia vã foi mais um “triunfo” obsceno do p-MDB, precisamente o partido que se fez o braço paisano da nossa transição “lenta, gradual e segura” da ditadura paisano-militar para uma democracia eleitoral sob um Estado de Direito em que nos debatemos a defender (ou a simular) respeito pela ordem que nos faz cativos. A aberração do conjunto nos foi exibida no plenário da Câmara dos Deputados no último domingo, 17 de abril.

Nas linhas a seguir e nos demais posts desta série vou tentar esclarecer os parágrafos acima.

Desigualdade e Estado de Direito

Para quem enxerga  a desigualdade como o problema central a entravar a consolidação da democracia e o desenvolvimento do Brasil, o nosso chamado Estado de Direito não é democrático, uma vez que suas instituições se prestam menos à consolidação da democracia entre nós, e mais ao exercício faccioso dos poderes institucionais. Nossa democracia se apresenta como um ritual eleitoral que, praticado pela sociedade no exercício pleno, é verdade, do direito de voto livre e universal, não transpõe, porém, a barreira do manejo faccioso dos poderes institucionais do Estado, manejo este feito às nossas costa e do qual só vez ou outra sentimos diretamente os efeitos políticos mais nefastos (daí, também, o espanto com o espetáculo do domingo passado).

Como já foi dito aqui, enquanto a violência sempre emana do exercício da força, por mais tênue ou indireto que este arbítrio se mostre; a política sempre emana da busca da persuasão, por mais incisivo ou ríspido que este diálogo se dê. O Estado de Direito é a convivência tensa, disputada, sob rito eleitoral baseado no sufrágio universal, entre a violência e a política. Quando nessa tensão o predomínio é da política, com a violência, quando muito, se fazendo presente de modo esporádico e sem êxito, temos o Estado de Direito Democrático. Quando essa disputa se dá em desfavor da política e sob o predomínio da violência, temos o Estado de Direito Autoritário. Uma democracia em processo de consolidação é aquela que ainda não conseguiu alcançar a forma de Estado de Direito Democrático, vale dizer, é aquela que ainda luta para minimizar o emprego da violência, em favor do exercício da política. Em suma, uma democracia só pode ser dita consolidada quando elevou seu Estado de Direito de autoritário para democrático. Fora do Estado de Direito, nas ditaduras, não há propriamente tensão ou disputa, mesmo quando há alguma eleição, pois a política é apenas um sobrevivente mutilado sob a interdição intransponível da violência. Já quando a violência é absoluta, temos o totalitarismo, onde não há política. As maiores violências contra um Estado de Direito vigente são, no plano jurídico, o desrespeito à Constituição e, no plano político-administrativo, o exercício faccioso dos poderes institucionais. É o tamanho de cada uma dessas duas maiores violências que oferece meios para se classificar o Estado de Direito como democrático ou como autoritário.

Não obstante a vigência do sufrágio universal, a desigualdade brasileira persiste em razão do exercício faccioso dos poderes institucionais que ela permite e que a ela favorecem, pois a desigualdade fez, e conserva, a facção dos ricos distorcidamente poderosa no plano institucional, contra as camadas médias e os pobres, o que também leva ao predomínio do Estado sobre a sociedade, com desdobramentos político-administrativos conhecidos em desfavor dos de baixo: corrupção, violência policial, descaso social, milícias etc – e os obstáculos à consolidação da democracia crescem à medida que facções populares conseguem aliviar seus sofrimentos tirando algum proveito dessas mazelas, situação que as faz cúmplices das forças hostis aos seus interesses. Vigente desde sempre, esse exercício faccioso ganhou reforço com a transição “lenta, gradual e segura” da ditadura paisano-militar para o Estado de Direito, precisamente porque a ditadura logrou transferir para ele dispositivos que, sob o manto virtuoso da democracia eleitoral, permitem assegurar a manutenção da desigualdade.

A crise de representação que estamos vivendo é a evidência cabal da degeneração desse exercício faccioso dos poderes institucionais no plano propriamente político. Ao trazer à luz o conluio entre os políticos profissionais e os ricos (o chamado mercado), a Lava Jato (por unilaterais que sejam suas motivações, ou como quer que se tenham distorcido seus objetivos), escancarou uma das práticas institucionais facciosas mais nocivas, a corrupção, que quase todo mundo sempre soube existir e que está na raiz da não-consolidação da nossa democracia. Não por outra razão, a corrupção envolve os três maiores partidos (PT, PSDB e p-MDB) e um número nada pequeno de partidos satélites. Por isso mesmo, nenhum desses partidos está empenhado em aprofundar a Lava Jato, havendo apenas disputas em torno da unilateralidade dela, como já discuti aqui e aqui.

Diante desse desmoronamento do sistema político corrupto que estrutura nosso Estado de Direito, os políticos de carreira vem tentando inventar uma saída para si mesmos, começando por jogar a crise de representação do colo do Executivo, responsável pela gestão, situação desesperada que os arrastou a mais uma violência contra o Estado de Direito: o desrespeito à Constituição, na forma deste processo de impeachment da presidente da República – o vale-tudo resultante só torna mais claro o caráter não-consolidado da nossa democracia, a condição autoritária do nosso Estado de Direito. Um processo de impeachment não se torna legal apenas porque a Constituição o prevê, pois precisa obedecer às exigências que ela impôs à caracterização do crime, que, assim, justificaria a sua admissibilidade. Qualquer pessoa orientada pelo desejo de consolidar a nossa democracia, isto é, que pretenda contribuir para que o Brasil alcance um Estado de Direito Democrático, deve, num primeiro passo, saber separar o jurídico do político, para, num segundo passo, poder reunir os dois aspectos de um modo instrutivo, operação que permite enxergar toda a ilegitimidade desse processo de impeachment, como explorei recentemente aqui e aqui.

Não é, portanto, só uma ironia que o p-MDB colha a sua vitória fazendo do PT e de Lula símbolos da corrupção e da incompetência na gestão da coisa pública. Essa reviravolta virou do avesso o coração do nosso sistema político podre, que sacrificou o sócio mais recente de modo a conservar a desigualdade e todas as tradições a ela conexas, que vêm de longe, como veremos a seguir.

TEMER DERRAPOU NA LAMA DO CUNHA

Carlos Novaes, 08 de dezembro de 2015

Não, leitor, eu não combinei com Michel Temer o texto da carta em que ele escancarou para todo o país suas sempre mal disfarçadas e desleais ambições políticas, embora o texto do vice pareça voltado a chancelar o que elucidei aqui (especialmente no terceiro e quarto parágrafos). Digo que o vice derrapou na lama do Cunha porque Temer não entendeu que o gesto tresloucado de Eduardo Cunha foi exatamente isso: uma tresloucada ação isolada, sem lastro político real – e que, por isso mesmo, toma por um arremedo de lastro essa “crise” política fajuta que já havia se esgotado com a reforma ministerial em que Dilma entregou o governo ao p-MDB, como tratei aqui e aqui.

Digo que a ação de Cunha é isolada porque ela não atende a nenhum ator coletivo realmente importante na vida nacional. Ela não atende aos interesses do chamado mercado, não dá resposta real à opinião pública, ameaça o equilíbrio interno do próprio p-MDB (que depende de que nenhum cacique tenha poder incontrastável) e não atende sequer ao PSDB, que já havia recuado diante da desmoralização a que foi levado pelo seu golpismo e, agora, continua dividido diante de um encaminhamento de impeachment que já havia ficado para trás. Cunha agiu para gerar balbúrdia no fito de tentar se safar, simples assim. E Temer, num erro de cálculo monumental, deu uma de Jânio e embarcou na aventura por sua própria conta e risco!

Ao divulgar a carta desastrada que recebeu, Dilma não apenas mostra uma inusual sagacidade política diante das dificuldades do momento como também dá uma grande contribuição ao país, permitindo que todos vejam o material de que Temer é feito e obrigando o p-MDB que vem tomando posse dos cargos governamentais a se posicionar claramente em prol dos próprios interesses fisiológicos, que, parece, se chocam frontalmente com as ambições do vice.

“PROCESSO POLÍTICO PURO”

Carlos Novaes, 04 de dezembro de 2015

O título deste artigo foi extraído da descrição que um deputado federal do PT — membro da comissão de ética que discute a abertura do processo de cassação do mandato de Eduardo Cunha — deu para a sua própria situação, vendo suas inclinações pessoais (fossem elas quais fossem) imprensadas entre dois vetores: de um lado, o do governo (que preferia poupar Cunha para evitar a abertura de um processo de impeachment contra Dilma); de outro lado, o das demandas contraditórias de seu próprio partido (pois o PT, partido do governo, oscilava entre dois caminhos: punir Cunha, o que lhe permitiria salvar um arremedo de dignidade diante do crivo da opinião pública que lhe é majoritariamente desfavorável, ou poupar Cunha, o que lhe permitiria manter ainda afastada a possibilidade do impeachment, cerrando as próprias fileiras em torno dos cargos e/ou benefícios que detém com base na participação governamental).

Ao definir essa situação como “processo político puro” o deputado petista (e o petista aqui é importante) deu a mais cabal definição da crise de representação que decorre da política como profissão, crise na qual venho a insistir que estamos mergulhados: para ele a política é um jogo de forças apartado da sociedade, é um jogo que se decide de costas para nós, ao fim do qual eles improvisarão uma fantasia legitimadora, certos de que qualquer uma servirá. Submetido à lógica do palácio, o parlamentar se viu imprensado entre forças políticas organizadas com interesses opostos, sem fazer caso da condição de representante da sociedade, sem fazer caso da lógica da rua. É revelador que esse modo de ver a política mantenha seu efeito ordenador para o deputado mesmo diante do fato de a opinião pública estar unanimemente postada contra Eduardo Cunha, provavelmente a única figura pública da história política brasileira de reputação incontroversa, pois mesmo quem identifica nele um canal para seus próprios interesses ou desejos não deixa de enxergar quão nefasto ele é para a vida institucional do país.

Cunha não tem defensores, e o fato de ele, nessas condições, ainda presidir a Câmara dos Deputados é outra maneira de ilustrar a crise de representação e sua pantomima respectiva, a “crise” política. A condição petista do deputado aturdido é importante porque ela ilustra in nuc, de modo concentrado, a situação em que o PT se abismou: depois de ter sido a esperança (ilusória) de uma representação favorável aos interesses populares numa ordem política nova, o partido revelou-se uma burocracia ávida por poder e dinheiro sustentada numa mistificação de representação popular mantenedora da política velha. Os degraus da podridão por onde o PT desceu são os mesmos pelos quais se deu a ascensão de Cunha, e é por isso que o ápice do poder de Cunha é a admissão no Legislativo de um processo de impeachment que escorraçaria do poder o PT, mas sem que haja evidência de que a presidente cometeu crime no exercício do mandato em curso: o ato de Cunha é o último lance de uma “crise” política pela qual se procurou escamotear a crise de representação que estamos vivendo (da qual a farsa do PT é elemento chave), transferindo para o Executivo (gestão) uma crise de legitimidade do Legislativo (representação), manobra que foi muito facilitada pela reunião da incompetência governamental de Dilma com a desfaçatez inescrupulosa de Eduardo Cunha, ambas oriundas da certeza de que em política tudo é permitido porque se supõe que o êxito legitima: Lula não viu problemas para si nem para o país em impor Dilma como candidata; a Câmara não viu problema algum em nos impor Cunha como seu presidente.

A esse estado malsão da ordem política (Executivo e Legislativo) passaram a se opor braços do poder Judiciário. A Lava Jato é o braço mais vistosa dessa dinâmica nova que, agora, quando me parecia contida, ganha fôlego promissor e volta a suscitar as esperanças típicas de uma incerteza boa. Me explico: oriunda da primeira instância do Judiciário, a Lava Jato, por mais vigoroso que fosse seu ímpeto, não podia alcançar por si mesma os profissionais políticos dos crimes que investiga, limitação que, aliás, muito contribuiu para que os políticos profissionais se aproveitassem dela para fabricar a “crise” com que iludiram a opinião pública no curso de todo este ano. Não obstante, tenha sido empurrada por uma testemunha determinada a se safar, ou tenha  buscado por si mesma uma saída, o fato é que ao acolher a denúncia de Nestor Cerveró contra o senador Delcídio Amaral (PT-MS) a Lava Jato conseguiu alinhar aos seus propósitos, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal, fazendo uma solda inédita entre a primeira e a última instâncias do poder Judiciário contra o descalabro da política profissional. Depois de ter constrangido ministros do STF de recalcitrância conhecida quando se trata de enquadrar políticos, obrigando-os a acompanharem o ímpeto de juízes mais recentes naquela Côrte, o poder de arrasto do ineditismo dos fatos impediu que o Senado se fechasse em seu corporativismo e não deu tempo para o Executivo reagir.

Foi a esse conjunto de circunstâncias auspiciosas que enxerguei como a deflagração de uma verdadeira crise política, pois a decisão do Supremo, empurrado a acolher uma interpretação nova para a Constituição para poder enviar à prisão um Senador, no exercício do mandato e líder do Executivo na Câmara Alta, se reveste de caráter exemplar contra o estado de coisas inaceitável em que se encontra a política profissional brasileira, estado este em que estão envolvidos ou engalfinhados o Legislativo e o Executivo e, por certo, partes do Judiciário. O fato de um banqueiro ter sido levado de roldão também tem caráter simbólico animador, especialmente quando passamos a saber que André Esteves (celebrado como exemplo de arrojo no mundo dos negócios) tem Eduardo Cunha como principal apadrinhado do seu dinheiro na ordem política que combatemos… Como seria de esperar, não tem faltado formalistas [apegados à forma (memória)] para julgar impertinente e até antidemocrática a concatenação nova da dinâmica republicana que estamos a assistir, como se fosse possível construir o novo sem novidade, como se não fosse legítimo que, contra um Legislativo que não legisla senão para mercadejar contra nós, o Judiciário empurre à mudança (fluxo), ainda que no âmbito das estreitas margens de que dispõe para fazê-lo, como já discuti aqui.

Todo um modo de operar a política foi posto a nu, embora seja certo que entre mortos e feridos haverão de escapar quase todos os criminosos, uma vez que tudo se passa sem romper o alheamento da sociedade. Tanto é assim que o impeachment de Dilma, que desperta júbilo néscio em parte dessa sociedade inerte, nada tem que ver com a prisão de Delcídio, ele nada disse, ainda, que a comprometa — esse dínamo da verdadeira crise política está por ser ativado. Muito pelo contrário, o processo contra Dilma foi o último ato desvairado da “crise” política, “crise” essa que nada mais é do que a tentativa do Congresso de transferir para o Governo as consequências da crise de representação em que ele vê sua legitimidade perdida. Enfim, é mais do que hora de darmos outro sentido ao “processo político puro”: disseminemos o sentimento de tarefa de nas eleições de 2016 lutarmos todos por uma verdadeira representação política: tenha cada um os desejos ou os interesses que tiver, lutemos para que o voto para vereador se destine apenas a quem jamais esteve numa casa legislativa: chega dos mesmos!

Fica o Registro:

– Alckmin finalmente recuou da pretensão de reorganizar pela desativação as escolas públicas estaduais, mas apenas depois de mais um show de truculência autocrática, no qual não faltou o personagem de que o governador de SP mais gosta, a sua PM. Muita gente tem dado como acertado e defensável o projeto escolar de Alckmin, ainda que condenando seus métodos (uma antecipação do que seria uma presença sua na presidência da República). Entretanto, é de perguntar o porquê de espaço escolar ocioso ser desativado numa rede de ensino em que o número de alunos por sala de aula está acima do aceitável quando se pensa em uma educação de qualidade. Melhor seria distribuir o alunado por mais salas de aula, naturalmente contratando mais professores, etc.

LEGADOS DA “CRISE” — 2 DE 2

Representação profissional e revanche reacionária

Carlos Novaes, 03 de novembro de 2015

Acossados pela ação da Lava Jato contra o seu modo de operar, os políticos profissionais alimentaram a histeria do “fora Dilma!” (como se a Lava Jato fosse contra ela) enquanto não deixaram de agir metodica e diligentemente nos bastidores para tirar vantagem da confusão em que essa encenação do impeachment lançou a opinião pública. Observe leitor quão caprichosos podem se apresentar os enredos da política quando a gente se deixa submeter ao mando dos profissionais: o maior esquema de corrupção já desvendado, cujo dinheiro alimentou as rotinas de poder que permitem aos políticos profissionais nos darem as costas, acabou servindo como cortina de fumaça para que esses mesmos políticos profissionais aumentassem a base legal da sua atuação contra nós!

Por isso mesmo, coube ao medíocre Eduardo Cunha se revelar, a um só tempo, protagonista e símbolo do ímpeto reacionário de quem fez da “crise” uma oportunidade para inventar ou trazer de volta restrições à liberdade que a sociedade civil brasileira havia recalcado, mas não superado, nesse intervalo que vem desde as diretas-já. O deputado evangélico (não nos enganemos, o “evangélico” é, aqui, fundamental) está obstinado em permanecer num cargo e num mandato que já não tem como conservar legitimamente não por ser apenas um cínico e, muito menos, um psicopata, como quer o deputado Jarbas Vasconcelos em entrevista à Folha. Descrever Cunha nestes termos é um simplismo contraproducente para quem almeja alcançar, mais do que a sua danação, uma vitória contra os interesses que a truculência dele vocaliza. Mesmo liquidado, Cunha não se dá por achado não por ser um desvairado aferrado ao cargo, mas porque está seriamente engajado no propósito de fazer o país retroceder do pouco que, com muito custo, avançou na estrada democrática nos últimos trinta anos.

Aproveitando-se da desinformação e da confusão trazidos pela falsa polarização da disputa presidencial de 2014 — e de sua decorrência mais vistosa: o alarido da mídia em torno de um impeachment que não se sustentou porque não passa de uma ação golpista inconsequente que inverteu a sequência lógica entre crime e punição do crime (aberração jurídica para a qual não faltaram juristas) — aproveitando-se dessa situação anômala, eu dizia, Cunha elegeu-se presidente da Câmara Federal e desencadeou uma ação coordenada que no curso dos últimos dez meses trouxe à ordem do dia reações que não desagradariam aos mais destacados líderes direitistas do Centrão à época da Constituinte, reações estas que podem ser organizadas em dois vetores: em primeiro lugar, temos reações que proporcionam meios legais para que eles, os políticos profissionais, tenham ainda mais autonomia para representarem apenas a si mesmos, aos próprios interesses; em segundo lugar, temos as reações que visam diminuir a autonomia que a lei já consagra ao cidadão, impondo restrições a um padrão de liberdades que, é oportuno registrar, com muito pouco denodo vem sendo defendido por nós (aliás, é em defesa dessas liberdades ameaçadas que tenho militado para esclarecer o que está em jogo no impeachment de Dilma, embora tenha claro que a presidente já nada significa na luta contra a desigualdade).

Reações em favor da própria autonomia:

– diminuição do período de campanha eleitoral

– diminuição do tempo destinado à propaganda eleitoral na TV

Nessas duas “reformas eleitorais” os profissionais legislaram em causa própria, mas tendo o cuidado de cinicamente tirar proveito para si do descrédito em que estão, pois espertamente perceberam que a maioria insatisfeita enxergaria como vantagem ter de aturá-los por menos tempo, ou seja, apostaram na inércia e no desinteresse daqueles que, fazendo dano a si mesmos, dão a política como causa perdida. A essas duas medidas eles acrescentaram uma terceira, explicitando que também almejam embargar a ação das minorias que os contestam:

– restrição à participação das minorias políticas em debates televisivos de campanha eleitoral.

Mais recentemente, o rol de malandragens incluiu:

– triplicar as verbas do fundo partidário (enquanto querem cortar o bolsa-família)

– tornar legal a contribuição sem freios e indiscriminada das empresas às campanhas eleitorais*

– tornar impositivas as famigeradas emendas parlamentares no orçamento da União

– descriminalizar as contas bancárias não declaradas em países estrangeiros (enquanto posam de moralistas contra a descriminalização da maconha).

Ou seja, diminuem o tempo de interação com o eleitor, mas aumentam o dinheiro disponível para gastar na engambelação desse mesmo eleitor com quem querem cada vez menos contato. E tem mais: se aprovado, esse novo modelo de financiamento empresarial passará a impedir que se saiba a quem cada empresa deu dinheiro, impossibilitando a reconstrução da malha de interesses realmente representada no Legislativo. Por fim, ao tornar impositivas as emendas parlamentares eles ficam livres do trabalho de negociar com o executivo até mesmo os seus interesses de balcão; já a descriminalização das contas bancárias dispensa comentários.

Essa é a “reforma política” que o Congresso vai pondo de pé enquanto a rua coxinha se deixou enrolar no ridículo de fazer do impeachment uma “causa”, pela qual vale tudo, até mesmo apoiar Cunha. A feição antidemocrática dessas medidas fica mais nítida quando notamos que elas formam um conjunto coerente com providências destinadas a diminuir a autonomia do cidadão.

Reações contra a autonomia do cidadão:

– lei para penalizar a opinião crítica na Internet

– lei pela maioridade penal aos 16 anos

– lei para restringir o conceito de família à definição bíblica

– lei para aumentar a criminalização contra quem favorece a liberdade da mulher para escolher quando conceber

– lei “contra o terrorismo”, que atinge explicitamente os movimentos de contestação da sociedade civil.

Não nos enganemos: o protagonismo prático-operacional da reação no Brasil é acentuadamente evangélico e policial. São evangélicos e/ou policiais políticos profissionais que protagonizam essa frente do atraso, são evangélicos veículos de mídia e formadores de opinião que a propagam em seus programas policiais, sem deixar escapar que não menos evangélico é o silêncio em torno do quinhão da corrupção que favoreceu igrejas e seus próceres. Toda essa onda reacionária está animada por um cinismo sem precedentes, que engolfa a verdade como se ela fosse já nem mesmo uma inconveniência, mas uma bobagem de ingênuos. Mais uma vez, não nos enganemos: a obstinação de afirmar, contra toda evidência científica, que a Terra tem a idade ridícula que lhe atribui a Bíblia é uma besteira cuja face cínica serve de guarda-chuva legitimador para todo o cinismo político de que seus adeptos são capazes, qua capazes.

Muito se tem falado sobre o crescimento da intolerância no trato social cotidiano do Brasil (uma forma de violência), assim como muito se tem dito sobre o crescimento das correntes evangélicas e das pretensões de poder da polícia militar — é hora de começarmos a atentar para o potencial antidemocrático destes fatos, ainda que sem adotar explicações de ordem conspiratória para essa concatenação perniciosa contra a liberdade. A coisa toda está além da conspiração, mas o sentido geral parece claro: diante da desordem provocada pela desigualdade (sempre ela), os chefões intolerantes — manejando preceitos reificados supostamente plenos de verdade (Bíblia e Códigos ético-disciplinares nem sempre explícitos), e cavalgando hierarquias que organizam o mando e recolhem o dinheiro do rebanho — vão criando trincheiras de defesa que enquanto servem para burlar, pela ação de grupo ela mesma, as agruras mais sensíveis da desigualdade, enriquecendo alguns e aliviando o sofrimento dos mais vulneráveis; vão realimentando o mesmo rebanho com ideologias de recalque contra quem pensa, age e vive de maneira diferente, especialmente se conscientemente orientado por valores diferentes dos deles.

Prisioneira do mito primordial da “abundância sem esforço”, a sociedade brasileira sonha com mais liberdade e menos desigualdade, mas age de maneira tíbia e incompleta na busca dessas aspirações e, por isso mesmo, vive a emprestar apoio frívolo a “lideranças” sazonais que, quando muito, apaziguam consciências, sem, porém, nada liderarem, pois apegadas a bem disfarçadas ambições de poder, desprovidas de propósitos consistentes, mantém-se sempre em espera matreira, auscultando para “ver no que vai dar” — isso quando não apoiam veladamente as medidas reacionárias listadas acima. Sendo mais do mesmo, cada uma dessas “lideranças” sonha em ser pelo menos o plano B do establishment e, assim, fizeram-se todas irrelevantes para qualquer projeto de transformação.

* – Sou contra o chamado “financiamento público de campanhas eleitorais” porque entendo que devemos obrigar os políticos a correrem atrás do dinheiro e do voto. Mas também entendo que se deve coibir o abuso do poder econômico nas eleições. Por isso, defendo que haja um teto nominal único e exclusivo (cada doador doa para apenas um partido ou candidato) para contribuições de empresas e pessoas, isto é, que não se permita nem que as empresas possam contribuir segundo o seu faturamento, nem que as pessoas possam fazê-lo simplesmente segundo a própria renda, pois isso seria consagrar a influência dos mais fortes — daí um teto nominal igual para todos.

em 04/11/2015 — Fica o Registro:

– A revisão do Estatuto do Desarmamento de modo a liberar o uso de armas de fogo é mais uma evidência da onda reacionária, dessa vez com uma relação evidente com interesses empresariais deletérios da boa convivência social.

OUTRA COISA:

Mais abaixo o leitor encontrará link para a versão final de um texto meu sobre contos de Ivan Turguêniev (a saga de TchertopkhánovRelíquia viva e Pancadas!). Como não poderia deixar de ser, essa versão final, que integra a PARTE III, substitui todas as anteriores.

Ivan Turguêniev apura o ouvido.

LEGADOS DA “CRISE” — 1 DE 2

Demolição incompleta e alternativa reacionária

Carlos Novaes, 21 de outubro de 2015

[Com atualização no final, Fica o Registro, em 22 de outubro de 2015)

I. A “crise” engaiolou o governo

A inércia com que a sociedade brasileira se submeteu ao alarido da mídia deu aos políticos profissionais, na forma da “crise” política, o tempo necessário para que eles dissipassem as energias transformadoras geradas na primeira instância do poder Judiciário pela operação Lava Jato, que, atuando isolada, sem força política organizada em seu favor, acabou por ser contida — e eles o fizeram com os menores danos para o sistema de mando que infelicita essa mesma sociedade: será bastante que entreguem algumas cabeças, como acaba de ficar claro nessa historinha de que Fernando Baiano “se fazia passar” por operador do p-MDB, mas jamais o teria sido, tendo atuado como laranja de um diretor da Petrobras que roubava para si mesmo. Acredite quem quiser, especialmente quando essa revelação, tão novidadeira quanto tardia e conveniente, veio acompanhada de mais uma prisão decretada contra Marcelo Odebrecht, vaca premiada com tanta culpa no cartório que acabou útil como vistoso boi de piranha.

Ao lograrem nesse intervalo, sob a fumaça e o estardalhaço da “crise”, travestir de crise de governo uma crise de representação, isto é, ao transferirem para o poder Executivo (às voltas com uma crise econômica real) a crise de legitimação do poder Legislativo (nascida da indiferença para com o eleitor e da corrupção da coisa pública oriundas da reeleição infinita), os políticos profissionais deram sobrevida artificial a uma ordem que, embora condenada, só está de pé porque o executor da sentença ainda não se reconheceu no poder de aplicá-la: a sociedade brasileira ainda não entendeu que precisa negar o voto a todos os que lá estão ou lá já estiveram, pois é a rotina que os torna os operadores da corrupção: os elos políticos da corrupção são, sempre, deputados e senadores, dos quais depende a tramitação congressual da matéria governativa, engenhoca que já deveria ter posto por terra o mito, conveniente às traficâncias, de que nosso presidencialismo é imperial (mito este muito incensado pelos parlamentaristas doutrinários, e que se presta a que sempre se ponha a culpa na figura do presidente – simplismo que se encaixa na preguiça do eleitor, rotineiramente inclinado a culpar quem é mais visível). Ora, na verdade, é bem ao contrário, como essa “crise” mostrou à farta: Dilma só conseguiu se reequilibrar depois que cedeu tudo ao p-MDB e, através dele, para os seus satélites congressuais.

Esse estado de coisas esquisito se amarra a um outro mito: o de que para governar o presidente depende de uma maioria estável, quando não pétrea, no legislativo (exigência que, por si só, já desmente em parte o mito anterior, da presidência imperial que tudo pode…). Política é fluxo, negociação, conversa, gestão de incertezas; a exigência de maioria estável é fruto da abolição da política em troca da previsibilidade das rotinas reificadas nos esquemas de poder e dinheiro. Como as rotinas dos esquemas de corrupção engendrados no Legislativo são conduzidas por profissionais que estão de costas para o eleitor que eles deveriam representar, na prática deles já não há política, mas negócios. Como se aceita como “natural” o mito da necessidade da maioria estável, fica a parecer igualmente natural que a uma maioria estável deva corresponder com não menor naturalidade o caráter estável dos cargos de Ministro e seus nomeados de confiança respectivos. É essa pirueta que joga para dentro do poder Executivo os políticos eleitos para o poder Legislativo, com o resultado nefasto de que, ao se transfigurarem em gestores aqueles que foram eleitos como representantes, a sociedade se vê duplamente afrontada: não terá o representante comprometido com o que mentirosamente defendeu na campanha, e passa a ter um gestor das traficâncias que desde a campanha mentirosa eram urdidas, e por isso mesmo a financiaram. Para dar um basta, leitor, temos de parar de reelegê-los! Só então teremos representantes sempre novos, que, proibidos de se deslocarem para postos no Executivo, serão levados a apoiar, ou não, essa ou aquela política, medida, iniciativa do presidente, dinâmica da qual resultarão maiorias eventuais, com derrotas e vitórias do Executivo, como deveria, isso sim, ser natural. (Obama está em minoria há tempos, tanto na Câmara como no Senado americanos).

A exigência descabida dessa tal maioria estável facilitou o alarido em torno do impeachment de Dilma, contra quem ainda não há a mínima evidência na Lava Jato, alarido que foi a reunião artificial contra este governo de três circunstâncias: primeiro, o inconformismo dos tucanos de terem perdido por poucos votos uma eleição presidencial (mas basta um voto para definir o vencedor, oras!) — tanto que exigiram do TSE uma investigação sobre uma suposta fraude eleitoral, hipótese que foi desmentida categoricamente; segundo, a descoberta de um esquema de corrupção “nunca antes visto neste país” (ooohhh, que surpresa!), envolvendo empreiteiras cujos lucros irrigaram todas as campanhas eleitorais de 2014 (proporcionais e majoritárias, ainda que Aécio e seus tucanos insistam que o dinheiro recebido por eles tinha o carimbo de “não proveniente de lucros em contratos fraudulentos”);  e, terceiro, uma crise econômica que decorre, sobretudo, das inconsistências fundamentais do nosso velho “modelo” de “desenvolvimento”, no qual PSDB e PT são parceiros, as quais impedem a consolidação e o incremento entre nós do que é básico a qualquer sociedade de mercado bem assentada: uma classe média ampla, ainda que matizada em estratos, sem pobreza e, muito menos, fome.

Nossa pequena classe média não se espraia de forma sustentável de modo a engolir a pobreza porque no modelo partilhado pelo PT e pelo PSDB (e ao qual Marina Silva aderiu com suas propostas reacionárias e conservadoras na campanha de 2014) os ricos não podem perder e os pobres só ganham algum quando todo mundo estiver ganhando mais; quer dizer, em tempos de vacas magras, a classe média paga as migalhas que se destinam aos pobres, cujo sofrimento nunca tem fim. Na saga escalonada das agruras da nossa classe média tipo sanfona, nos tempos ruins, num primeiro momento, se deixa degradarem, onde ela mora, os serviços e a qualidade da vida urbana (desde sempre péssimos nas periferias que alojam os pobres), no passo seguinte da queda, estratos da classe média voltam à pobreza, e se as coisas vão realmente muito mal, que passem à pobreza estratos que nunca lá estiveram e cortem-se as migalhas aos pobres, desde que os ricos fiquem onde sempre estiveram. Nesse esquema perverso, se joga a classe média contra os pobres, pois, em razão da não menos perversa dinâmica das suas aspirações, ela almeja alcançar o consumo dos ricos e está sempre pronta a ver um vagabundo em quem recebe o bolsa-família, mas se recusa a ver um vagabundo no empreiteiro corrupto (ainda que preso), ou no banqueiro manipulador — esse conjunto recebe o nome legitimador de democracia de mercado, como se não fosse o Estado que estivesse a arbitrar quem sofre e quem é poupado nesse suposto jogo de mercado.

Foi justamente nessa arbitragem que as incompetências administrativa e política de Dilma tiveram papel decisivo na conjuntura complexa que estamos vivendo, pois não apenas ela não soube administrar os recursos públicos dentro das margens estreitas em que atua qualquer presidente docemente submetido ao pacto do Real em erosão, como também não foi capaz de exercer o mando e fazer política de modo a evitar a concatenação simbólica contra si daquelas três circunstâncias vistas no parágrafo mais acima. Em outras palavras, as responsabilidades de Dilma na “crise” política e na crise econômica decorrem mais do que falta a ela como quadro político, e menos do que ela tenha feito como gestor público, seja na política, na economia ou na administração dos bens e dinheiros públicos.

Por isso mesmo, ao virar, com base na sua fibra, e quase que só nela, a página de um impeachment injusto, Dilma herda, com toda justiça, um governo engaiolado, pois, assim como numa demolição mal-sucedida, caiu merecidamente sobre ela, na forma de elementos de reconstrução e entulho, um governo agora protagonizado justamente por um entulho que, reaproveitado pelo PT e pelo PSDB, vem de longe: o p-MDB. Esse entulho autoritário reciclado, tão arenoso que até uma figura como Eduardo Cunha chega a protagonizar, irá mostrar toda a sua capacidade poluente nos próximos anos — e o que ainda está em aberto no curso do mandato não é, portanto, se Dilma fica ou não na presidência (sem fato novo na Lava Jato, ela vai ficar, pois a opção de melar a eleição pelo TSE é uma invencionice a essa altura implausível), o que está em aberto é a extensão dos danos que advirão para o país de um domínio tão vasto e tão direto do p-MDB sobre unidades ordenadoras de despesas, e o quanto Dilma amealhará de recursos para, mais adiante, remover da esplanada pelo menos parte desse entulho (o que, se viesse a acontecer, daria ocasião a nova “crise”).

Não há razões para esperanças nessa linha, entretanto, seja pelo histórico da presidente, seja, sobretudo, porque ela, como já em março foi dito aqui , está numa solidão comparável à de Vargas, solidão que agora vem ficando clara aos olhos de todos, mas não tem sido bem compreendida: ao contrário do que muitos pensam, a solidão não levou Dilma a entregar para o Lula a condução política das suas escolhas, faltando entregar apenas a rapadura da economia. Não. Ao desautorizar Rui Falcão, dizendo que Levy fica, e ao espinafrar Cunha no momento em que Lula e Aécio estão empenhados em poupá-lo, a presidente mostrou ter entendido que Lula age não para protegê-la e ao seu mandato, mas segundo seus próprios interesses, os quais contemplam, inclusive, até um sacrifício dela, como também foi dito no artigo de março mencionado linhas atrás. O empenho de Lula por Cunha, combinado com suas críticas demagógicas ao ajuste fiscal, tem a ver com a sucessão presidencial (agora ou em 2018), não com a sustentação da presidente. De modo que a movimentação política de Dilma nestes últimos dias está a indicar que ela leu bem a conjuntura em que se deu a virada de página da “crise”, viu que Cunha está liquidado e que sua preservação na estufa do Legislativo só interessa a quem tem o rabo preso ou a quem quer melar o jogo, e trata de aproveitar o fôlego ganho para se distanciar publica e corajosamente dos esquemas de auto-preservação dos políticos profissionais e concentrar-se em obter no Congresso os resultados da reforma ministerial para poder, enfim, enfrentar a crise econômica, que vai piorar antes de começar a melhorar.

Como o velho não morreu e o novo sequer se apresentou, armou-se um estado de coisas em que os reacionários se fortaleceram, e se transformaram em conservadores todos aqueles que, exatamente porque organizados para fugir da desigualdade (não para enfrentá-la, sendo essa a marca de nascença dos nossos movimentos organizados pedinchões), agora se debruçam a defender o quinhão obtido dentro da ordem, fazendo-se desorientados, não mais sabendo quem é amigo e quem é inimigo, tornando-se incapazes de levantar a cabeça da presa fugidia para olhar adiante, o que permitiria a busca de uma alternativa transformadora — é nessa balbúrdia que se arma a eleição presidencial de 2018, que será polarizada por reacionários e conservadores na disputa pelo apoio dos assim chamados movimentos da sociedade civil, agora numa defensiva conservadora sem projeto próprio — foi a isso que chegamos em decorrência das  escolhas da burocracia oligarquizada do lulopetismo, que enfraqueceram a própria ideia de justiça social.

II. A “crise” chocou um mutante

Embora a desmoralização do PT tenha ficado clara, ainda não sabemos a extensão dos danos em Lula, até porque ele ainda não pode ser visto como totalmente livre da Lava Jato contida, mas não detida. Se tudo se passar como parece mais plausível, porém, Lula, desprovido do “lulismo“, será candidato na próxima eleição presidencial, nem que seja para defender seu próprio lugar na história. Mesmo com a presença dele na disputa, existirão tantos órfãos do PT a consolar que não haverá candidatura presidencial sem penduricalhos “progressistas” em 2018, ao contrário do que pensa quem imagina ter emergido das ruas do Brasil uma direita de manual que sustentaria uma competitiva candidatura presidencial puro sangue, embalada por uma luta de classes rediviva.

Tanto serão tempos de maquiagem, não de autenticidade, que já estamos diante dessa criatura que tem rabo de jacaré, pele de jacaré, boca de jacaré… mas parece a Carmem Miranda — é o Alckmin, depois de descobrir que não dá para ser presidente do Brasil com essa imagem de quem traz um cassetete sob o paletó. Assim como a pequena notável foi aos EUA e voltou americanizada, o pequeno reacionário foi ao Pontal e voltou reformista, embora ainda exiba seu característico modo raivoso de falar entre dentes, como se estivesse rasgando celofane. O personagem mostra toda a sua esperteza ao começar por agarrar para si, na corrente dos movimentos organizados, o elo do MST: trata-se do elo mais fraco dela, seja porque é o de menor custo (afinal, a imensa maioria da população é urbana e, por isso mesmo, não vê como custo para si uma desejável repartição de terras que será feita alhures), seja porque é dos elos mais afeitos a negócios, característica decorrente da longevidade de seus oligarcas. Como já se disse aqui, o “fica Dilma” favorece Alckmin, cuja candidatura em 2018 independe do que se passar com o, e no, PSDB. Na verdade, faz tempo que a única candidatura presidencial competitiva que se pode dar como certa é a dele, que tem plano para tudo e está muito bem situado com as forças de mercado, que adorariam ter alguém como ele para garantir um Estado favorável aos bons negócios. O novo figurino reformista vai cair muito bem no PSB, especialmente se contarem, em adesão ou fusão, com o PPS, cujo presidente, Roberto Freire, como todo ex-comunista que se preze, tem resposta prá tudo, até para uma aliança com Alckmin.

Alckmin pode se dar ao luxo de cortejar setores da chamada esquerda porque já deu provas suficientes de fidelidade, alinhamento e reiteração do que há de autoritário no cotidiano da cultura política brasileira, especialmente pelo manejo do braço armado dela: sua disposição de acolher como “erros” os modos brutais de setores da Polícia Militar sob seu comando não deixa dúvidas sobre seu compromisso com o “erro” para o qual seus soldados são treinados, embora ele sempre diga o contrário, claro. Aliás, a junção dessa fidelidade com as crescentes ambições políticas da cúpula da PM por todo o Brasil fará do atual governador de São Paulo o candidato natural da corporação em 2018, alinhamento que só pode ser visto como uma ameaça à democracia, pois, queiram ou não, políticos oriundos da corporação promovem a soma nefasta de memórias reificadas, redobrando suas forças: assim como os evangélicos com suas Bíblias e hierarquias pastorais, esses soldados carregam as rotinas de mando dos códigos da conduta hierárquica reificada para dentro das não menos reificadas rotinas de poder e dinheiro dos esquemas do parlamento. Enfim, a prosperar essa aliança de Alckmin com o MST, haveremos de ver, sob as bênçãos de Francisco e para inveja de certos utopistas, a passear nas terras de Piratininga, protegidos pela PM, a Opus Dei de mãos dadas com a Teologia da Libertação, estando a faltar apenas a benção evangélica — nada que o amor ao próximo, negócio, não possa resolver.

III. As “utopias” da “crise”

Se ninguém disse ainda, vale dizer que o grau de desorientação de uma sociedade se pode medir pelas utopias que seus intérpretes geram. A situação da sociedade brasileira é tão lamentável que aqui as utopias tem aparecido não como desenho de um futuro imaginado a ser alcançado, mas como reação a um passado de que se abriu mão de conhecer para superar. Em outras palavras, temos chamado de utopia não as aspirações a perseguir depois de vencida a crise econômica que nos maltrata, mas os subterfúgios pelos quais se pretende evitar o enfrentamento das causas da “crise” política que nos infelicita. De fato, primeiro foi o ex-presidente Fernando Henrique, que nos apresentou, numa entrevista à Folha de S.Paulo, a “utopia” de uma renúncia programada de Dilma, pela qual a presidente deixaria o poder no exato momento em que tivesse conseguido vencer a crise…(quanta imaginação e argúcia!). Tempos depois, foi a vez do ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, que nos apresentou sua utopia Paraguaçu: a renúncia coletiva e simultânea de Dilma, Temer e Cunha… (uma solucionática digna das três irmãs Cajazeiras, que só fariam tal gesto em favor do seu bem-amado). Quando a gente podia pensar já ter visto tudo, eis que o economista André Lara Rezende, com a autoridade de quem já geriu a coisa pública “no limite da irresponsabilidade”, nos propõe a utopia de partir do zero em matéria de corrupção, ou seja, quem roubou, roubou, mas a partir de hoje fica, mesmo, proibido roubar (Ah! bom) — voltarei a este tema.

22/10/2015 — Fica o Registro:

– A Folha de S. Paulo (UOL) de hoje traz um artigo que vale o dissabor de ler, pois ele dá exemplo cabal (inclusive com gráfico mistificador) do simplismo arrogante que tem marcado muitas “análises” preguiçosas e inerciais da “crise”, tudo piorado pelo fato de o autor declarar que almeja um governo Temer com Serra de ministro da fazenda (quanta clarevidência…). Apoiando-se na desinformação que tornou Dilma um alvo fácil de atingir e, portanto, garante aplauso farto a qualquer um que a espinafre, o autor nos diz, com ares de quem anuncia o que deveria ser óbvio (que sumidade!), que a crise econômica está a piorar por culpa da “dupla” de vilões que só o simplismo oportunista torna plausível juntar: Dilma e Cunha!. É como se o Congresso não estivesse há meses empenhado em travar a ação governamental; é como se os tucanos não estivessem há meses negando a Dilma instrumentos de que eles próprios teriam de lançar mão para enfrentar a crise. O autor desconsidera até mesmo uma diferença que qualquer pessoa honesta teria de levar em conta: enquanto NADA se provou contra Dilma até agora, Cunha já tem contra si VÁRIAS evidências acachapantes apuradas por instituições internacionais confiáveis. Em suma, à sua compreensão simplória da “crise” o autor acoplou uma solução não menos simplória: basta remover Dilma e Cunha e o sol voltará a brilhar — sendo a Constituição só um detalhe inconveniente. Na verdade, o simplismo do autor expressou o cansaço do homem comum diante da “crise”, pois para ele, que quase nada compreende, ao fim e ao cabo, o melhor é tirar da sala os espantalhos convenientemente construídos pela mídia no curso da “crise” — o resto a gente vê depois… Tudo se passa como se a complexidade da situação fosse apenas um mal-entendido…

SÃO OS CARRAPATOS, LEITOR!

Carlos Novaes, 08 de outubro de 2015

Embora jamais tenha apoiado e, muito menos, defendido a governança Dilma, tendo mesmo feito, desde antes da sua investidura, a crítica da escolha e do lançamento do seu nome para a presidência — entre outras coisas porque sempre a vi desprovida de recursos, meios e talentos para enfrentar crises que me pareciam inevitáveis em razão do arranjo entre duas máquinas ávidas e de poucos escrúpulos como são o PT e o p-MDB –, mesmo tendo sempre estado, como estou, na oposição, eu dizia, não posso deixar de reconhecer que por grandes que tenham sido os erros da presidente (e o foram), eles formam uma pequena parte da explicação para essa junção adversa de “crise” política com crise econômica que estamos vivendo, afinal, enquanto a crise econômica resulta da erosão do pacto do Real e vai requerer mais do que um ajuste aecista ou dilmista para ser superada; a “crise” política é uma decorrência da reunião da Lava Jato com as exigências de rearranjo político que a erosão do Real impõe. De modo que boa parte das dificuldades que as pessoas de bem — isto é, aquelas que ainda preferem ajuizar antes de julgar — encontram para entender afinal o que se passa vêm da quase unanimidade da mídia em fazer de Dilma bode expiatório. (O que se está a dizer aqui tem larga tangência com o que diz, em lúcido e irônico artigo na Folha de S. Paulo de hoje, o professor Rogério Cezar De Cerqueira Leite).

Os exemplos são vários: os mesmos analistas que apontaram a proposta da volta da CPMF como um tiro de Dilma no próprio pé fazem agora o alarido triunfal em torno do que supõem ter sido mais um “erro político monumental” da presidente: o gesto de arguir a suspeição de Augusto Nardes, o mais do que suspeito relator do processo que “examinou” as contas do governo passado no TCU. No caso da CPMF, o que eles recomendariam que ela fizesse, se é certo que qualquer governo terá de recorrer a algum aumento da carga tributária para enfrentar a crise fiscal? Que o homem da rua esbraveje contra o “aumento dos impostos” é natural, mas que gente com espaço de mídia para formar opinião se limite a insuflar a ira desinformada dos passantes é simplesmente indecente. No caso de Nardes, por que o escândalo ao ver a presidente a enfrentá-lo no campo da luta política aberta, se escandalosa é a atuação do próprio Nardes que, atirando longe a “liturgia do cargo”, enfeitou-se com uma tão repentina quanto canhestra ira cívica e fez-se apregoador da má governança de Dilma,  depois de calado durante anos ante muitos outros truques contábeis e, talvez, coisa pior?

Se a presidente tenta governar e agir como presidente, acusam-na de voluntarismo, se ouve aliados e aceita conselhos, dizem-na incapaz de tomar as próprias decisões; se tenta manter os mais altos cargos da administração pública a salvo da cobiça dos políticos profissionais, apontam sua inabilidade no trato com o Congresso, mas se negocia com o Congresso nos termos baixos em que ele próprio exige, é ridicularizada como um fraca que cedeu à fisiologia; se busca se apartar e dar combate às ambições de figuras nocivas como Eduardo Cunha, sua tática é  apontada como inábil, se transpõe questões menores e chama o mesmo Cunha para entendimentos institucionais, grita-se um suposto oportunismo seu. Depois de martelarem que a “governabilidade” requer que Dilma alcance uma maioria pétrea (o que, além de bobagem, é anti-democrático – v. Madison, no capítulo X de O Federalista), censuram-na por buscar essa quimera. Qual Dilma querem, afinal!?! Na verdade, desde o começo da “crise” a situação de Dilma não muda: apanha porque está sem chapéu e, se põe o chapéu, apanha porque está com ele. No formato preguiçoso e fácil que esse pessoal deu ao comentário e à crítica da complexa situação política brasileira, tudo é culpa da presidente e, assim, nada do que ela faça poderá dar certo, o que, por sua vez, impõe a conclusão típica das manadas: Dilma tem de sair para que o sol volte a brilhar!

Ora, como venho dizendo aqui desde o primeiro artigo sobre essa conjuntura adversa, não é preciso ser um gênio para perceber que a saída de Dilma é uma falsa saída para a nossa situação. Por mais limitada que seja a nossa presidente, ruim com ela, pior sem ela, até porque não há sequer suspeita razoável que nos leve a supor que ela não mereça hoje a qualificação que sempre mereceu: Dilma é uma pessoa honrada. Se você, leitor, acha isso pouco, me aponte outro político relevante na linha de sucessão que possa sequer se aproximar da reputação de Dilma nesse quesito. Se você, leitor, acha que eu estou a me abandonar ao moralismo, me diga onde mais, em meio à insânia e às espertezas correntes, agarrar um fio de razão para defender essa ordem Constitucional que, não obstante defeituosa, nos ampara contra alternativas que só poderiam trazer mais sofrimento àqueles que não podem sequer sonhar com um naco de mando nesse país desigual.

É nesse ambiente repelente — em que a condição de mulher da presidente joga um papel que ainda terá de ser avaliado, pois o desrespeito escarnecedor de que ela é alvo de há muito deixou para trás a fronteira do mau gosto e está além da boçalidade pura e simples, o que mostra como o despreparo para avaliar uma situação complexa atiça à tona ressentimentos profundos — é nesse ambiente, eu dizia, em que a esperteza de alguns alimenta, e se vale, da insânia de muitos, que se perde aspectos essenciais da dinâmica em curso:

– Eduardo Cunha não é um aliado do impeachment de Dilma, como pensam 11 de cada 10 analistas da mídia convencional, junto com os tucanos e os coxinhas que o vinham celebrando como companheiro. Trouxas! A Cunha não interessa Temer na presidência, pois isso selaria o fim das suas ambições no p-MDB (e, até, fora dele), um partido que só se mantém se não houver alguém com poder interno incontrastável, o que já não seria o caso se Temer virasse presidente da República. É por isso que Cunha protela e arquiva pedidos de impedimento de Dilma, num jogo muito calculado, que a operação Lava Jato está a dificultar.

– Como Cunha joga afinado com Gilmar Mendes  — como deveria ter ficado claro a qualquer um que tenha prestado atenção na disputa em torno do financiamento empresarial de campanhas eleitorais, quando Cunha recorreu a Mendes e este deu início a uma campanha contra a própria decisão do Supremo — o mesmo Cunha aguarda, agora, os lances do mesmo Gilmar Mendes em torno de mais esse ineditismo institucional, dessa vez no TSE: reabrir as contas já aprovadas da campanha de Dilma-Temer em 2014. Sim, leitor, só a solução de um impedimento duplo interessa a Cunha, pois então ele assumiria a presidência da República (!!!), não para desfrutar do novo cargo, mas sim para exercer todo o poder presidencial sobre a eleição presidencial que presidiria. Ele não quer alguns meses na presidência, ele quer decidir os próximos anos de nossas vidas. Olhe-se para a agenda atual da Câmara, que, não obstante a “crise” (na qual eles vêem uma oportunidade, leitor), não pára de produzir iniciativas de retrocesso, e se terá uma ideia do que sairia da interinidade presidencial desse maléfico Pádua*.

– As esperanças de Aécio em conseguir melar as eleições de 2014 estão, portanto, depositadas na dupla Cunha-Mendes, fato que explica porque a bancada tucana não toma qualquer iniciativa contra Cunha, mesmo com as evidências suíças. Como a desmoralização do PSDB já é estratosférica, eles vem dando declarações cuidadosas nos últimos dias, muito embora não parem de insultar Dilma, contra quem nada conseguiram provar até agora.

São essas movimentações menores, mas cheias de potência numa situação delicada como a nossa (além de devidamente ampliadas pela cegueira da mídia ao que realmente importa), que explicam a desenvoltura de atores mais miúdos ainda, pois numa situação em que periquito se farta de milho, até os vermes se assanham: a miudeza pestilenta do Congresso está a ver na situação uma oportunidade para levar mais algum e, assim, descumpre os acordos feitos por seus “líderes”, pressionando por mais fisiologismo. Ou seja, depois de passarmos de um governo com fisiologismo para um fisiologismo que governa, estamos agora a chegar ao desgoverno do fisiologismo.

Resumo da opereta que se promete trágica: quando pareceu que depois de um tempo em que o rabo abanou o cachorro o estrato mais graúdo da ordem que nos infelicita tinha se acertado em torno de uma governança mínima com um governo do p-MDB, tendo o aniquilado PT como coadjuvante, a situação volta a ficar confusa porque os carrapatos profissionais resolveram ferroar o rabo do cachorro!

* – Personagem secundário, esperto e inofensivo, do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.

O PT ARRUINOU O PETISMO E O SISTEMA POLÍTICO

 Debate com amigos e leitores – 2

Carlos Novaes, 26 de maio de 2015

 

Todos estamos a ver a desenvoltura daninha de Eduardo Cunha, a orientação firme do governo Dilma para alcançar um ajuste nas contas públicas, e o fim do PT. Ganharemos muito em compreensão sobre, afinal, o que se passa, se concatenarmos os três eventos, ao invés de atribuir a Cunha um “vigor atípico” no comando do legislativo; de enxergar na ação de Dilma uma “traição”; e de proteger o PT com análises que buscam separar, nele, o joio do trigo, dizendo tolices como “o PT é um patrimônio do Brasil”.

Imersos no teatro da guerra, ainda em meio à poeira dos escombros de estruturas engaioladas, estamos diante das últimas operações da mais formidável vitória política dos que se beneficiam da desigualdade entre nós; maior do que a obtida por eles no golpe paisano-militar de 1964 contra o reformismo voluntarista de Jango-Brizola – e tão formidável quanto o foi a convergência de motivações individuais e organizadas que resultou no PT entre 1977 e 1989. E essa vitória foi possível porque os “líderes” atuais do PT (que há muito estão no posto) tiveram êxito em arrastar todo o partido, inteirinho, a uma capitulação que o fez passar de uma instituição de luta contra a desigualdade e a pobreza que infelicita muitos para uma ferramenta burocrática ajustada ao enriquecimento de poucos. À medida que fomos nos dando conta do que se passava no PT, fomos nos rebelando, nos afastando, nos ajustando, ou aderindo ao novo estado de coisas que se instalava na mesma velocidade em que o acesso aos cargos de poder ia permitindo aos que queriam se dar bem reunir poder na luta interna do partido. Tragédia conhecida, mas pouco compreendida, especialmente em suas consequências. Vou me restringir aqui aos temas que abriram esse artigo.

Cunha é a imagem política do PT em ruínas. Me explico: quando o PT ainda era empurrado por um petismo autônomo diante do lulismo (coisa que só existe na luta interna: quem conta com o apoio do Lula, e quem não conta – isto é, entendo essa história de lulismo em sentido amplo como besteira), ou seja, bem antes de se instalar o lulopetismo (mostrengo que só surgiu, quem diria, depois da derrota definitiva do Zé Dirceu, quando foi possível soldar carisma e burocracia de um modo que Weber jamais imaginou – mas com os mesmos propósitos nefastos), quando o petismo ainda era um fenômeno político relevante, eu dizia, a política de alianças eleitorais do PT balizava todo o sistema político e orientava o eleitor: quem estava com o PT era de “esquerda”, quem não estava era, no mínimo, a “não-esquerda”. Com o passar dos anos, nas maiores, mais concentradas e, por isso mesmo, mais informadas concentrações urbanas do país, notadamente na região metropolitana de SP, o eleitorado foi desenhando um mapa de preferências muito nítido*: periferias apoiavam o PT, áreas ricas eram anti-petistas, e áreas intermediárias apresentavam oscilações mais marcadamente conjunturais (constatei isso há 20 anos, como se pode ver um exemplo aqui).

Naquelas condições, as coligações proporcionais foram um mecanismo de reforço ao que havia de melhor em nosso sistema eleitoral: a força do voto individual para o legislativo passava a transmitir sua potência a toda a coligação em que o candidato estivesse inserido, com o que, em razão do quase rigoroso comportamento do PT (falar, agora, dos desvios tomaria muitas linhas), se foram construindo dois campos opostos, cada um deles diversificado, todavia, o que resultava em ganhos quando se pretende um engajamento plural e informado do eleitor: um pluripartidarismo orientado em dois campos, em suma**. Mas a sede de poder, a pressa de tirar a si e aos seus das agruras da desigualdade, em suma, a obstinação de fazer do PT instrumento de uma, e só uma, geração, falaram mais alto e o partido avacalhou um princípio balizador de preferências cuja fecundidade estava ainda em seu início. O PT passou a se aliar a qualquer um que permitisse chegar a algum orçamento. Eduardo Cunha é resultado disso, leitor, e sua presumida capacidade de iniciativa, seu vigor na busca de propósitos políticos, celebrados até em editoriais, nada mais são do que sinais do avanço que os interesses miúdos logram fazer sempre que os grandes temas são desmoralizados por aqueles que os defendiam.

Ou seja, Cunha não é mais desenvolto ou arrojado do que seus antecessores no cargo — é que já não há as travas que antes barravam a ação desse tipo de “liderança”. Não foi por acaso que alguém como Cunha se criou e desenvolveu dentro do p-MDB, essa ameba voraz que estaria destinada ao desaparecimento se a ordem eleitoral introduzida pelas escolhas do PT não tivesse sido desmanchada por ele mesmo (nada mais natural, portanto, que, ao fim e ao cabo, p-MDB e PT tenham acabado nesse abraço malsão que dá corpo burocrático ao lulopetismo***). Cunha e os seus aliados mais chegados no Congresso são o nosso EI e, o Corão deles, mas para inglês ver, é uma mistura do Regimento Interno da Câmara com o Código de Defesa do Consumidor (daí o shopping do Cunha!). Eles, que são o Retrato de Dorian Grey do PT, nos fazem reescrever Gramsci: “quando o velho não morre e o novo dinamita a si mesmo, é certo que surgirão situações monstruosas”.

Respondendo a amigos 1: portanto, quem hoje se enche de empáfia democrática pregando o fim das coligações proporcionais faz como o enólogo que condena vinho blend ruim saído de vinhedo envenenado propondo como solução proibir a mistura das uvas, mas mantendo as parreiras, como se a pureza operasse o milagre de fazer uvas ruins produzirem bom vinho. Pior ainda fica quando são petistas os que berram, dizendo que essas coligações enganam ao eleitor: falam de si mesmos, pois só eles acreditam que estão a se misturar com quem é muito diferente deles próprios – senhores, enganados estão vocês, pois o PT já não engana a não ser aos “petistas”. A esse respeito, por caridade, apresento a esse pessoal, cujo porta-voz é o cientista político André Singer, um poema do Drummond:

Cerâmica

Os cacos da vida, colados, formam um estranha xícara. / Sem uso, / Ela nos espia do aparador.

 

O ajuste de Dilma é a imagem econômica do PT em ruínas. Me explico: Dilma é a presidente da República de um partido que chegou ao poder em 2003 tendo aderido ao pacto do Real, posto em pé pelos tucanos, na era FHC. Lula fez um ajuste mais duro do que este que ela tenta por de pé, mas ninguém quer lembrar disso. Como quer que seja, a natureza desse pacto incrementalista em que os ricos não podem perder nem riqueza, nem instrumentos que geram essa riqueza tão desigualmente distribuída, é esta: quando é possível, incrementa-se a vida dos de baixo, via consumo; quando não dá, não se incrementa ou, até, se recua. Dilma se move dentro dessa lógica, e não há nenhuma traição – azar de quem, contra toda evidência disponível (como aqui, aqui, aqui…), acreditou que podia ser diferente. E digo mais, mesmo um governo com outra orientação não poderia escapar de algum ajuste nesse momento, em razão das escolhas anteriores que a adesão ao pacto impôs. Em outras palavras, mesmo um governo que estivesse disposto a romper o pacto não poderia fazer muito diferente neste momento – teria de tomar impulso antes. Logo, o problema não é o ajuste de Dilma (correto, até, no que propõe para essa farra em que se transformou o seguro desemprego, néctar do nosso sindicalismo burocrático único, aferrado ao imposto sindical), mas o fato de que ela faz uso dele para salvar o pacto e, com ele, a candidatura de Lula em 2018. Por isso mesmo, não cobro de Dilma um projeto inteiriço de ajuste, como fazem os liberais crentes nas receitas neoclássicas, que buscam desculpas para criticarem o que eles próprios estariam a fazer, como tonitroou, recentemente, o geógrafo Demétrio Magnoli, que escreve como se movesse placas tectônicas, mas o que sai da montanha é, sempre, um rato.

A evidência mais clara da empulhação que é a indignação com o ajuste de setores do PT é o fato de que esse pessoal passou todos esses anos sem dizer nada, seja contra os pilares do pacto, seja a favor de medidas tributárias acertadas que, agora, às pressas, desenterram do fundo de gavetas emperradas. Além disso, julgando-se mais democráticos (e até radicais!), passaram a trombetear contra o financiamento legal de campanhas por empresas, fingindo que não é com eles o financiamento ilegal de campanhas por empresas. Com esse tipo de proposta essas pessoas estão apenas aumentando o rol do que a lei declara ilegal, mas não dão um passo na direção de obter o cumprimento da lei que JÁ é desrespeitada. Em suma, querem resolver questões de polícia com uma medida política equivocada: afinal, o que precisamos impor, via polícia, é o fim do caixa-2; e adotar, via política, um teto nominal de contribuição exclusiva, para empresas e cidadãos. Algo como no máximo 100 mil reais por empresa e por cidadão, obrigando a pulverização das fontes de financiamento. Essa medida, por si só, baratearia as campanhas, pois não há nada mais difícil do que arrancar dinheiro pequeno, que não gera reciprocidade garantida. Aliás, não é o dinheiro das empresas para campanhas, mesmo se grande, que gera corrupção – o que gera corrupção é a vontade de enriquecer à sombra da impunidade para quem rouba dinheiro público, como já discuti aqui.

Respondendo a amigos 2: a ideia do financiamento público é errada porque quer garantir aos políticos um dinheiro certo para suas campanhas, dinheiro que vai fortalecer essas mesmas estruturas viciadas que julgam combater demonizando anacronicamente o privado. Parte das campanhas já é pública: tempo de TV, fundo partidário. Entendo que o tempo de TV deve continuar como está, salvo alguma outra distribuição do tempo disponível aos partidos. Quanto ao fundo partidário, sou pela sua extinção, pois esse é um uso do dinheiro público que contribui para a formação de máquinas burocráticas a um só tempo azeitadas e amorfas: azeitadas com o nosso dinheiro em benefício das cúpulas, mas amorfas em vida política porque as direções nacionais dos partidos mantém seus diretórios como “provisórios” de modo a mandar neles como querem.

Finalmente, o PT desperta hoje um ódio e uma repulsa que se propagam, e até motivam idas à rua, precisamente porque aqueles que sempre foram contra o PT encontraram em seus malfeitos uma motivação, por assim dizer retroativa, para expiar ressentimentos acumulados do tempo em que o “virtuoso”, “combativo” e “solidário” PT expunha o que havia de acomodado, injusto e imoral nas preferências desigualitárias dessas camadas conservadoras. Não é à toa que essa movimentação tenha resultado na transformação do impeachment da presidente numa causa, na base do “não custa tentar, se colar, colou”, comportamento institucionalmente deletério a que se somaram tucanos sem causa honesta para defender e, até, juristas, que inverteram a ordem legal: trata-se , agora, não de encontrar a lei para o crime, mas de minerar um “crime” que se ajuste à lei!.

* – Nas eleições do ano que vem esse desenho irá mostrar mudanças importantes. Como a conduta do eleitor é função do que os políticos propõem, o PT já não vai contar com a periferia de SP como antes, pois deixou de oferecer ao eleitor parâmetros claros para a organização da sua preferência. Veja bem, leitor: a causa do abandono do PT não são apenas os escândalos; antes deles, vem a razão que tornou possível as práticas que abriram caminho àquelas que geraram os escândalos.

** – O que explica a pulverização eleitoral mais recente é precisamente o fim daquele ordenamento que a prática do PT gerava: a combinação de coligações proporcionais com firmeza na demarcação dos campos foi gerando, eleição a eleição, uma aglutinação de forças que o fim do rigor petista interrompeu e, desde 2010, vem apresentando sinais claros de reversão. De novo, a conduta do eleitor é função do que lhe é proposto.

*** – Logo, não há o tal pemedebismo por contágio congressual, à partir dos anos 80, como quer Marcos Nobre. O que há é muito mais grave: o p-MDB está onde sempre esteve nos últimos 50 anos, e o PT capitulou desde baixo, em sua relação com o eleitor.

REPRESENTAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO

Debate com amigos e leitores – 1

Carlos Novaes, 23 de maio de 2015

O leitor me ajudaria a deixar mais claras as linhas que se seguem se lesse antes seis (pois é…) outros posts deste blog, a saber:

1. A política entre a memória e o fluxo

2. Uma mudança de alcance mundial

3. Só 4 – Já

4. Partidos e profissionais da representação

5. Nem abnegados, nem delegatários

6. Desigualdade, mudancismo e voto – é a política! – 4 de 4

Embora não esteja de acordo com Rousseau ali onde ele diz que “o homem nasce livre e por toda parte se encontra acorrentado”, tenho como certo que a reeleição para o legislativo mantém a ferros  eleitores e eleitos, o que contraria o sentido do jogo da representação, que se destina a mantê-los em liberdade organizada. Os eleitores estão presos à rotina que os embotou para a inércia: a grande maioria vota para o legislativo sem prestar atenção no que faz, confortavelmente convencida de que não há como mudar a situação. Os eleitos, mesmo os novatos, são peneirados desde há muito numa malha que reúne dois fios: o fio trançado por essa rotina embotada do eleitor e aquele tramado na rotina dos interesses organizados. De modo que eles chegam ao legislativo como boi de canga: com um ou outro vício particular, mas com os calos certos nos lugares certos para a utilidade a que se destinam, que é engendrada, claro, não pelas necessidades da maioria desavisada, mas pelos interesses das minorias organizadas. Um sistema assim só pode selecionar os piores e levar ao desinteresse dos melhores — o fim da reeleição, por si só, já tornaria o legislativo desinteressante para uma  legião de picaretas que é atraída pela peneira atual.

Ao propor o fim da reeleição para o legislativo almejo uma transformação desse estado de coisas malsão, que é menos do que uma revolução porque a camada de solo a ser revirada é a da política, apenas — a ordem estatal e a natureza da propriedade continuariam como estão, a menos que viessem a ser discutidas, e democraticamente alteradas, na nova dinâmica política que a transformação traria, mas essas alterações, embora desejáveis, não são condição para o fim da reeleição proposto. Ainda que tenha como certo que revoluções são eventos espontâneos, que, como tal, não podem ser provocados, não me furto a declarar que, na ausência de uma revolução, minha preferência por uma transformação resulta também do aprendizado de que revoluções são eventos que, ao revirarem toda a memória, acabam por exigir uma ordem ainda mais férrea do que a anterior para restaurar rotinas básicas à convivência política, concentração de poder que é, sempre, o oposto da democracia e, por isso mesmo, uma vez adotada, jamais confirmou o caráter transitório que de início se apregoou, por mais sinceros que tenham sido os que o prometeram — os quais, tão certo como dois mais dois são quatro, acabam sempre em um de dois grupos: o dos que mandam ou o dos que estão a ferros.

O impacto do fim da reeleição para o legislativo sobre a vida política seria enorme porque é nessa reeleição que, em todo o mundo, está ancorado todo o sistema político como o conhecemos: quando alguém se elege para um mandato parlamentar, mesmo que seja o primeiro, recebe de pronto uma rotina de memórias que se ajustam às memórias que ele próprio traz. Do lado da sociedade (família+eleitores+mercado), ele já vai amarrado a compromissos e expectativas que estão ancorados na ideia e, sobretudo, na perspectiva da reeleição, perspectiva que é dele próprio e de todos os que tem interesses gravitando em torno dele: trata-se de alguém que mudou de vida, que entrou numa carreira. Do lado do estado (poderes constituídos+burocracia), as memórias que o constrangem (em geral ele já chega treinado para ser docemente constrangido) são as das dinâmicas de poder já instaladas, dirigidas quase totalmente por políticos de carreira, e aquelas memórias que resultam da rotina legislativa enquanto tal, que não é necessariamente má, e estão preservadas nos acervos e, de certa forma, nas cabeças das assessorias parlamentares, por sua vez rotinizados para atender profissionais da política, mesmo que de primeiro mandato, repita-se.

Olhada dessa perspectiva mais ampla que acaba de ser esboçada, fica claro que os dois grandes conjuntos produtores de memórias que constituem e constrangem o sistema político, a sociedade e o estado, seriam fortemente afetados pela transformação proposta. Em outras palavras, não tem muito cabimento fazer objeções à proposta desconsiderando seu potencial de mudança, como se ela fosse mais uma reforma política das muitas que estão por aí, como se para absorve-la bastasse uma mera adaptação das rotinas existentes. Uma vez varridos de seus mandatos legislativos os atuais donos do poder, em poucos anos o sistema político estaria operando em uma dinâmica totalmente diferente, cujo desenho não podemos sequer esboçar, ainda que saibamos muito bem o que terá sido deixado para trás nessa aposta do engajamento do cidadão na escolha de seus representantes, que é menos do que a democracia direta sonhada por alguns (que será, sempre, de alguns, pois não há na sociedade a ânsia participacionista imaginada), e muito mais do que a inércia que temos hoje, pela qual se elegem delegatários, não representantes.

Tendo em mente a tensão entre memória e fluxo, entendo que representação (legislativo) é instância onde o pólo mais dinâmico é o fluxo (mudança), não a memória (conservação): é pela representação que a sociedade expressa no plano político a sua vontade de mudança, por menor que seja, e é para dar capilaridade a esses vetores que a representação tem de estar apta ao fluxo, e não colonizada por memórias de rotina que se cristalizaram via reeleição (ainda que na maior parte do tempo venha a prevalecer a conservação). Rotinizar em memórias reificadas (subsistemas de poder parental, corrupção, interesses corporativos de tipo religioso, militar, etc) o fluxo da representação é o principal resultado da reeleição para o legislativo, que desperdiça por inapetência, ou barra por interesse, fluxos de mudança: amarram-se pessoas, esquemas e mandatos numa grande engrenagem que a todos engata e a ninguém é dado travar.

A novidade que a proposta traz, portanto, não tem nada de inovadora, ela apenas restaura o sentido da representação, que foi avacalhado porque lá atrás não se antecipou o monstro que nasceria da profissionalização do legislativo, um poder que é fluxo para ter legitimidade na produção de memória para o judiciário, esse sim um poder em que o pólo dinâmico é a memória, não o fluxo. É por isso que, com acerto, se diz que o juiz não decide segundo o alarido da opinião pública: ele não vai no fluxo, pois para decidir ele resgata a memória, que está nas leis, na jurisprudência e nos costumes — naturalmente, há algo de fluxo na jurisprudência e na interpretação dos costumes, mas um juiz não pode, a um só tempo, contrariar a lei, a jurisprudência e os costumes ao tomar uma decisão e, ainda assim, fazer justiça. Mas um representante tem o dever de contrariar a tudo isso e, assim fazendo, uma vez tendo persuadido a maioria dos seus pares, mudar as leis que serão aplicadas pelo judiciário.

Essa atividade de legislador é a principal função do representante. Entretanto, a rotinização saída da reeleição para o legislativo criou barreiras à principal ação do parlamentar, pois legislar é mudar, e o que menos as rotinas querem é mudança. Daí a crise geral dos parlamentos, de um lado, amarrados às rotinas do poder executivo (gestão) e àquelas dos grupos de poder que financiam campanhas e moldam a opinião pública; e, de outro lado, constrangidos pelo judiciário que, nessa situação anômala de um legislativo que não dá vazão ao fluxo da sociedade, se viu chamado a introduzir algum fluxo à memória legal que a inoperância do legislativo vai deixando anacrônica — daí toda a nova doutrina jurídica que hipertrofiou o poder de interpretação dos juízes, um mal necessário em razão de uma anomalia de fundo, que é a perpetuação quase vitalícia e hereditária dessa aristocracia dos políticos de carreira, aferrados a interesses tidos como inalteráveis. O que faliu não foi a democracia representativa, mas o sistema eleitoral de profissionalização política.

Resgatar a função de legislar será a primeira conquista da transformação proposta, pois todos os candidatos terão de ser ajuizados pelo eleitor segundo o que propõem: nem o candidato vai poder se esconder sob a memória das rotinas políticas que o fizeram candidato; nem o eleitor vai poder se abandonar ao conforto da memória de reiterar o já conhecido. Uma dinâmica como essa, de renovação permanente dos legisladores, não implica necessariamente uma renovação permanente da ação legislativa, pois a ação de legislar depende de alcançar um mandato, que, por sua vez, depende da conquista de eleitores, que não mudam de opinião da noite para o dia. Além disso, a memória preservada nas assessorias parlamentares joga aqui o seu papel e ela será parte da “negociação” permanente entre a conservação e a mudança.

Temer uma hipertrofia do poder de influenciar, ou mesmo decidir, dessas assessorias é supor que o parlamentar sempre novato do novo modelo terá o mesmo perfil de um certo parlamentar novato que o modelo atual engendra: o bocó manipulável. Ora, o bocó manipulável é o filho caçula da memória reificada; ele chega ao parlamento submetido a toda ordem de interesses organizados, organização da qual não participou — um tipo assim não pode ser tomado como padrão para pensar aqueles que terão passado pelo escrutínio eleitoral do novo modelo, a menos que se suponha que a transformação que proponho terá como resultado fazer das eleições legislativas uma loteria eleitoral. Mas essa é uma hipótese que as melhores cabeças não poderiam endossar: os participacionistas teriam que desacreditar do povo que supõem estar pronto, e ávido, para tomar decisões de modo direto; os revolucionários teriam de fazer pouco caso do mesmo povo em que depositam suas esperanças termidorianas; e os democratas iluministas teriam de reconhecer como infundadas as suas esperanças de, pelo modelo atual, persuadir o eleitor à mudança.

ESSA REFORMA POLÍTICA É UM VÔMITO!

Carlos Novaes, 19 de maio de 2015

 

Empanturrada com a comida tóxica do cardápio midiático que buscou embota-la com a ideia de que o país precisa de uma reforma em seus sistemas eleitoral e partidário, a opinião pública brasileira é convidada a se reconhecer aliviada no vômito triplo em que seus profissionais da política mais uma vez transformaram no que lhes apraz os anseios difusos dela por uma representação autêntica. Primeiro, o “distritão” vai deixar sem representação alguma a maioria do eleitorado, uma vez que, por definição, 513 deputados federais não tem como traduzir, com seus votos exclusivos, mais de 200 milhões de eleitores; segundo, a coincidência de mandatos de cinco anos é o paraíso da malandragem, proposto por Marina Silva e adotado, claro, pelo p-MDB, que já critiquei pormenorizadamente aqui: mais mandato para os políticos profissionais e menos força de mudança nas mãos do eleitor; terceiro, o fim da reeleição para o executivo vai retirar do sistema de gestão da coisa pública (executivos) a possibilidade de reconduzir as boas experiências, que seriam ainda melhores se a “representação” (nos legislativos respectivos) não fosse composta pelos esquemas de rotina saídos do mal uso do nosso sistema eleitoral.

Tal como é hoje, nosso sistema eleitoral é muito bom: de um lado, para o legislativo vota-se em indivíduos ou em lista (o voto na legenda partidária), sendo que o voto individual do eleitor não esgota sua força no indivíduo que recebe o voto, pois ela se propaga mesmo se o candidato escolhido não ganha a eleição: os votos dados a ele são somados aos de outros perdedores e ganhadores do mesmo partido ou coligação, de modo que nada é desperdiçado no cômputo final e, assim, se o sistema produzisse representantes, todos estaríamos, sempre, representados; de outro lado, para o executivo, pode-se reconduzir o gestor que faz uso apropriado dos recursos do orçamento. O defeito, portanto, não está na distribuição da força dos votos, mas naqueles que os recebem, leitor. Temos que trocar de políticos, não de sistema político. A única maneira de trocar, mesmo, de políticos é impedi-los de voltar uma vez cumprido um, e único, período legislativo, ou seja, acabar com a possibilidade de reeleição para representantes (e não para os gestores!), como já tratei aprofundadamente aqui e em outros textos deste blog.

Políticos profissionais tem o mesmo defeito de todo ser humano: querem o paraíso, sem precisar morrer. A diferença é que eles imaginam, mesmo, que é possível chegar lá, e fazem dessa meta a principal ocupação de suas vidas tortas! O paraíso para eles é chegar ao poder depois de uma campanha em que não precisaram pedir nem dinheiro, nem voto. Pois bem, a proposta de coincidência de mandatos de cinco anos os deixa bem próximos dessa meta religiosamente perseguida, especialmente se caída do céu amarrada a uma outra providência, o tal financiamento público de campanhas eleitorais: o conforto de mandatos de cinco anos, sem nenhuma consulta intermediária para qualquer instância, consulta essa que permite ao eleitor ajuizar a situação política e punir ou premiar com seu voto, logo em seguida, este ou aquele partido, grupo ou esquema político. Hoje, bem ou mal, nosso calendário de eleições descasadas a cada dois anos permite, por exemplo,  ao eleitor insatisfeito com o governo de Dilma eleito em 2014 punir o PT nas eleições locais de 2016, o que, se não constitui uma ferramenta de transformação, configura, pelo menos, um serviço de crítica indireta que altera a rotina demoníaca do poder.

É difícil para uma pessoa de bem imaginar a alegria coruscante na alma de um político profissional, desses de carreira, diante da possibilidade de somar à reeleição infinita, regalia de que já goza, uma troca compulsória nas cobiçadas cadeiras de gestão orçamentária (prefeitos, governadores e presidentes) junto com o conforto de só ter de lembrar do eleitor a cada cinco longos anos e, ainda por cima, com o chantili do financiamento público de campanha, que não é senão a satisfação safada de poder bater impunemente a carteira do mesmo eleitor a quem não precisou dar conversa para arrancar mais um período de sossegada “representação”. Ou seja, o eleitor vai pagar, via canalização compulsória do seu dinheiro (assim como um “gato” numa rede de água já escassa), a propaganda enganosa de mandatos que não terá sequer como ajuizar, uma vez que o fervor dessa cozinha embaçada da eleição geral não vai aprontar senão uma gororoba de alhos, bugalhos, joio e, vá lá, algum trigo. Em suma, a institucionalização da rotina do vômito, quando o que precisamos é de um laxante!

É TANTA BESTEIRA QUE DÁ ATÉ DESÂNIMO… MAS PERSEVEREMOS

 Carlos Novaes, 15 de abril de 2015

(atualizado em 16 de abril de 2015)

BESTEIRA 1: O financiamento de campanhas eleitorais por empresas é causa da corrupção; por sua vez, o principal problema do país. Portanto, precisamos de uma reforma política que institua o financiamento público de campanhas eleitorais.

1.1. –   A) As empresas financiam campanhas eleitorais não apenas para obterem vantagens compensatórias via corrupção. Elas financiam políticos para garantirem o status quo e, sempre que possível, o alterarem de maneira controlada, segundo seus interesses. É um erro supor que os políticos que fazem o jogo dos grandes empresários são simplesmente venais (embora sejam também venais), e que o façam simplesmente por dinheiro. Não. Eles tem a mesma visão de mundo. Se fosse apenas uma questão de dinheiro, seria possível comprar políticos venais para aprovar políticas igualitárias. Mas isso é impossível porque eles estão lá selecionados pela peneira da ordem como ela é. A eleição deles é parte de uma imensa rotina, rotina essa ancorada na reeleição infinita para o legislativo.

B) Os montantes de dinheiro oriundo de corrupção revelados nos casos mais recentes deveriam ser suficientes para que se percebesse que uma corrupção dessa monta não se destina a campanhas eleitorais, por mais caras que sejam. Veja o dinheiro que as empreiteiras deram para campanhas: são quantias muito menores do que as envolvidas nos desmandos em que elas se enfiaram depois. O dinheiro da corrupção não é retribuição de financiamento de campanha, é dinheiro destinado a enriquecer os envolvidos, ou seja, dinheiro para políticos e lucros para as empresas  – de novo: dinheiros esses que vão muito além do que se gasta em campanhas. Nessa engrenagem, o financiamento de campanha é o de menos. Suponhamos que conseguíssemos acabar com o financiamento privado de campanha (com todo mundo respeitando a lei aprovada…e não houvesse caixa dois…), por que razão isso acabaria com a corrupção se a corrupção, nesse caso, resulta da vontade de ser rico às custas do dinheiro público? Eles continuariam a roubar, leitor! Na verdade, o financiamento público seria o povo pagando a campanha de políticos que, uma vez eleitos, vão continuar fazendo o jogo dos grandes empresários, casando poder (política, Estado) com dinheiro (empresas, mercado), como sempre.

1.2 – O principal problema do país é a desigualdade e é ela que articula a máquina política como ela é, tal como discuti em série de quatro artigos recentes, iniciada neste aqui.

1.3 – A única reforma política de que realmente precisamos é o fim da reeleição para o poder legislativo, como já argumentei aqui, aqui, aqui, aqui e, sobretudo, aqui. Se mudar modelo eleitoral fosse solução, não haveria problemas nos países que adotam o que querem introduzir aqui…Ou o leitor acredita que na França, nos EUA, na Alemanha, na Espanha ou na Itália as coisas são muito diferentes? Cada um deles tem seu próprio sistema eleitoral…

1.4. – A) O financiamento das campanhas tem de ser privado. Temos de obrigar os políticos a correrem atrás do dinheiro como correm atrás do voto. Quem não consegue reunir um mínimo de apoio financeiro vindo de forma autônoma e espontânea da parte de cidadãos engajados não tem legitimidade para querer ser representante. Financiamento público só vai facilitar para que as coisas não mudem, pois os políticos vão ter a garantia do dinheiro público (o nosso) para as despesas básicas, e vão continuar com o caixa dois. Afinal, porque o financiamento público levaria ao fim do caixa dois, se hoje, com a legislação proibindo, o caixa dois impera? Se for para mudar alguma coisa, seria para instituir um teto nominal fixo e exclusivo (apenas para um candidato/partido) de contribuição, para pessoas e empresas, mas sem ilusões de que isso acabaria com o caixa dois.

B) O fato de os políticos divergirem sobre o fim do financiamento por empresas não deve nos confundir. Políticos de partidos com burocracias consolidadas e hierarquizadas sob seu controle (o PT é, de longe, o melhor exemplo), defendem o financiamento público porque o dinheiro público entraria via partido e, assim, ficaria sob controle dos hierarcas da burocracia. Políticos de partidos com máquina, mas sem cultura burocrática centralizada (o PMDB é, de longe, o melhor exemplo), recusam o fim do financiamento de empresas e a troca pelo financiamento público justamente porque isso diminuiria muito o poder individual que cada um ainda tem dentro da imensa máquina partidária, dando mais poder aos chefes do momento, os quais, por sua vez, sabendo do arranjo precário em que seu mando repousa (veja-se o poder repentino que um Eduardo Cunha ganhou contra mandões antigos, tipo Renan e Temer), preferem manter as válvulas de escape que a relação individual com as empresas garante. Ou seja, os dois lados só se unem se for para adotar o financiamento público complementar: nós, os contribuintes, entramos como trouxas e eles mantém a traficância com as empresas na ordem legal (sem prejuízo de algum caixa dois, claro) e ainda recebem o nosso dinheiro para satisfazer a raia miúda que os importuna pedindo algum para a campanha.

RESUMO 1: A corrupção em grande escala não resulta de um arranjo contábil inspirado na reciprocidade (como no caso do suborno do guarda de trânsito), mas da disposição de ser rico a qualquer preço, e de isso ser possível. A ideia de que todo desvio é a mesma corrupção é falsa e é uma maneira de naturalizar a coisa. Com o financiamento público de campanhas eleitorais vão bater sua carteira, leitor.

 

BESTEIRA 2: A terceirização de mão-de-obra se destina a aumentar a competitividade dos produtos brasileiros, sendo um modelo novo em que todos ganham.

2.1. – A competitividade dos produtos brasileiros não é baixa porque a mão-de-obra é contratada diretamente pelas empresas. Ela é baixa porque nossos produtos são fabricados de modo atrasado, desnecessariamente oneroso, caráter oneroso esse que não deriva de os salários e/ou os custos de mão-de-obra serem muito altos, mas de os processos de produção serem pouco rentáveis em razão dos baixos investimentos de proprietários que preferem entesourar a investir. A terceirização se destina a compensar as perdas com produção obsoleta via diminuição de custos com mão-de-obra. Ou seja, jogar a carga do atraso do país nas costas dos mais fracos, e continuar atrasado.

2.2. – Duas coisas básicas: primeiro, toda desregulamentação torna mais forte quem já é forte e ainda mais fraco quem já é fraco; segundo, toda mercadoria fica mais cara a cada intermediário pelo qual passa. Assim, primeiro, se a mão-de-obra é o pólo fraco do mercado de trabalho, não há como ela aumentar seu poder de barganha num modelo em que ela não negocia com quem compra sua capacidade de fazer alguma coisa, mas com quem compra a mera possibilidade de alocar essa capacidade; segundo, para que o intermediário da mercadoria “mão-de-obra” ganhe algum será necessário que um dos outros dois (patrão e empregado) perca: ou o patrão paga mais pela mão-de-obra ou a mão-de-obra passa a ganhar menos…

2.3. – O avanço dessa proposta na Câmara dos Deturpados é a primeira demonstração na arena política federal de que o pacto instituído pelo Real acabou: os muito ricos enxergaram na confusão instalada pelos escândalos de corrupção uma oportunidade de darem um passo adiante, saindo do jogo contemporizador do pacto que FHC iniciou e Lula continuou, como tenho discutido em vários posts deste blog, como aqui, aqui e sobretudo aqui. É por isso, porque essa proposta escancara que o pacto acabou (afinal, terceirizar é beneficiar os muito ricos às custas diretamente dos pobres), que Lula veio a público pedir o veto de Dilma. É por isso também que o PSDB se mobiliza contra a terceirização: ambos tem claro que o naufrágio é comum e que Eduardo Cunha está a serviço dos muito ricos, CONTRA os pobres. Agora o leitor tem mais elementos para entender porque defendi aqui que PT e PSDB se unissem contra a pretensão de Cunha de presidir a Câmara dos Deturpados.

RESUMO 2: A proposta de terceirização prospera porque os políticos profissionais entenderam que sua sobrevivência política depende muito dos laços com os grandes empresários e quase nada dos vínculos com o eleitor, uma vez que a rotina da reeleição infinita mantém todos sob inércia: os políticos na inércia de beneficiar a si e aos ricos; os eleitores na inércia de votar por votar, na qual se dá bem quem já é conhecido, sem relação com o que faz ou deixa de fazer. Por isso, duas coisas: primeiro, e mais uma vez, a grande mudança é acabar com a reeleição para o legislativo; segundo, a proposta de coincidência de mandatos de cinco anos é a deformação mais nefasta que poderia acontecer, pois dá mais mandato aos políticos e menos possibilidades de troca ao eleitor, que passaria a votar só de cindo em cinco anos, não de dois em dois, como hoje [e pensar que essa proposta, agora abraçada pelo PMDB (claro), foi lançada por Marina Silva, que dizia defender uma nova política!!].

 

BESTEIRA 3: A diminuição da maioridade penal para 16 anos vai contribuir para a diminuição da criminalidade e vai punir bandidos que se beneficiam indevidamente do fato de serem jovens.

3.1. – Encarcerar jovens de 16 anos só vai diminuir a criminalidade se ocorrerem duas coisas: primeiro, se a mudança levar os jovens de 16 anos a mudarem de atitude; segundo, se os jovens de 16 não forem substituídos por jovens de 15 anos. Pois bem, acreditar que a mudança vai levar os jovens de 16 a reavaliarem sua conduta é ignorar que a entrada na vida do crime não é uma decisão racional, tomada num momento de cálculo da relação custo-benefício. Não. Entrar para o crime é uma prática gradual, que se constrói ao longo de anos na vida de crianças a quem faltou família, escola, saúde e trabalho (para os pais). Alguém socializado assim vai encarar a maioridade penal como um transtorno a mais a ser enfrentado. Ponto.

De toda maneira, se a nova maioridade levar a alguma diminuição na oferta de mão-de-obra para o crime, haverá uma valorização dos que tem 15 anos. Considerando que nesse meio juvenil de insegurança e baixa auto-estima a dimensão do “reconhecimento” joga papel fundamental, não será de surpreender se a nova maioridade levar a um aumento da criminalidade, pois aos de 16 que continuarão no crime se juntarão os de 15, de 14… que se verão “promovidos” de uma hora para outra (v. o romance de Paulo Lins, Cidade de Deus – outra coisa: observe o recrutamento do EI junto a adolescentes…).

3.2. – O encarceramento do criminoso não é uma punição. Encarar assim a sentença de prisão é reconhecer que o condenado, uma vez cumprida a pena, tem todo direito de delinquir novamente, pois já pagou pelo que fez. Não. Encarcerar se destina a proteger a sociedade do criminoso e, ao mesmo tempo, conquistá-lo pela oferta de meios para que ele não volte a delinquir. A rigor, a prisão deveria suprir com itens afins toda a lista de itens faltantes que levaram o individuo ao crime, descrita mais acima: família, escola, saúde e trabalho.

RESUMO 3: Se for aprovada, essa mudança na maioridade penal vai levar a um aumento da criminalidade que está ao alcance e/ou depende dos jovens.

BESTEIRA FRESQUINHA: ontem publiquei este Post. Em artigo de hoje na página dois da Folha de S.Paulo há uma barafunda fantástica sobre o tema da maioridade penal, que ilustra o besteirol como nada antes. Depois de mostrar-se adepto do “punir severamente” os criminosos, o autor, sem assumir que o que o levou a escrever o artigo é o fato de ser a favor dessa besteira de redução da maioridade para 16 anos, desdiz seu próprio “argumento” “científico”: depois de dizer arbitrária a definição de 18 anos (como se isso não fosse inevitável, uma vez que em algum parâmetro temos de parar a contagem), ele sugere um escalafobético exame clínico para… maiores de 16 anos!! –  dei uma gargalhada quando li isso, especialmente porque depois de grafar “16 anos” ele pôs um ponto de interrogação… Em suma, segundo ele, no melhor estilo Kiko (o do Chaves) “18 anos é arbitrário; que tal 16?”.

 

BESTEIRA 4: Com a chegada ao poder federal o PT se deixou desvirtuar, se afastando da sociedade, se perdendo em práticas erradas e entrando nessa crise em que se encontra, da qual só sairá se voltar às origens.

4.1. – a burocratização oligárquica do PT é muito anterior à chegada de Lula à presidência e foi consolidada no primeiro Congresso do partido, em 1991, como apontei há mais de 20 anos, aqui. O caso Lubeca, de 1989, foi apenas o primeiro que chegou à luz, embora logo abafado. Depois vieram, só para citar os mais notórios, o caso denunciado corajosamente por Paulo de Tarso Vencesllau (1993), o rompimento de César Benjamin com conhecimento de causa (1995) e a morte do Celso Daniel (2002). O partido que chegou ao poder federal em 2003 já estava organizado e preparado para aderir ao pacto do Real, para o mensalão, para proteger Delúbio, para esquecer a bandeira do fim do imposto sindical, para amparar Palocci, para defender Sarney como um brasileiro acima dos outros, para se vangloriar de que os bancos nunca ganharam tanto dinheiro como sob seu poder, para lotear a Petrobrás, para sustentar Vaccari. Basta?

4.2.  – O PT desenvolveu tal expertise em matéria de manipulação de valores morais que inventou essa história de que sua imersão no dinheiro da corrupção foi resultado de ter de entrar no jogo para poder sobreviver. É daí que vem a tese do financiamento público de campanhas. Querem nos fazer acreditar em duas patranhas numa jogada só: que o dinheiro da corrupção foi só para campanhas (o que de todo modo seria inaceitável) , e que o financiamento público se destina a moralizar a política, e não a aumentar o domínio dos hierarcas sobre a máquina, deixando ainda menos espaço aos inocentes úteis que ainda continuam a lutar por um outro PT.

4.3. – Crise comporta alternativa. O caso do PT não é de crise, é de esgotamento. O PT acabou; e acabou porque se mostrou igual aos outros, que tampouco alternativa são. Mesmo que o PT tivesse energia para voltar às origens, o que não tem, a sociedade já não disporia de trouxas em número suficiente para sustentar uma farsa dessas. O que não quer dizer que essa burocracia formidável não possa vegetar por mais algumas eleições.

 

BESTEIRA 5: O Brasil é uma nação maravilhosa e precisa de um projeto de país que dê ao seu povo uma vida menos infeliz e nos conduza ao lugar que merecemos no concerto das nações.

5.1. Uma nação que comporta essa desigualdade não pode ser maravilhosa. Não carecemos de projeto, já os temos, e tivemos, até demais. Temos até profissionais de projeto, que os fazem a quem pagar, um melhor do que o outro. Mas de que adiantam projetos se não há força política relevante que queira implementá-los?

5.2. O conserto das nações é uma desafinação só, pois cada uma é horrível à sua própria maneira. Não há exemplo a seguir, modelo a imitar, parâmetro a alcançar. Tampouco há saída para um só país num mundo em que está a faltar água.

RESUMO 5: Antes de buscar o conteúdo (projeto), temos de alterar profundamente a forma (instituições). O caminho da mudança está bloqueado pela couraça da rotina. Para sair dessa, é básico acabar com a política como profissão, tirar todo mundo da inércia e só então nos lançarmos a uma verdadeira controvérsia sobre o caminho a seguir, como defendi aquiaqui e aqui.

“FORA DILMA” É BOLA FORA

A morte de uma irmã minha, Elisa, em dezembro, levou-me a deixar este Blog de lado. A cobrança amena de amigos e leitores no frigir dessa crise que o país atravessa me empurrou a retomá-lo.

Carlos Novaes, 11 de março de 2015

 

Collor foi posto para fora da presidência da República porque não teve como impedir que o fizessem símbolo do que há de pior na política brasileira aos olhos do cidadão: a rotina da corrupção. Hoje, porém, todo cidadão medianamente informado tem clara toda a limitação do justo fora Collor, afinal, não só o próprio Collor é senador da República, como as duas principais casas legislativas da mesma República trazem na presidência dois colloridos de primeira hora naqueles dias: Renan no Senado e Cunha na Câmara devem sua arrancada para esses cargos ao profissionalismo com que prestaram serviços ao mesmo Collor. Para variar, fizemos o serviço pela metade: faltou o legislativo, essa casamata da corrupção em que as políticas anti-povo são a rotina.

Ninguém de boa fé compara Dilma a Collor, pois, para dizer o mínimo, ela não pode ser apontada como estando à testa de um esquema de corrupção: o cabeça dessa testa é outro. Assim, já devíamos ter percebido duas coisas: primeiro, que impeachment é medida paliativa que fortalece o legislativo, o poder cuja rotina corrupta infelicita o país, segundo, que nossos problemas não se resolverão afastando a presidente; na verdade, eles ficarão ainda maiores se ela sair, pois seus substitutos, a depender do desfecho, serão Temer ou Cunha, os dois homens fortes do p-MDB, partido cuja prática nefasta analisei em artigos recentes aqui.

Também já tratei aqui da fragilidade política de Dilma, assim como das limitações do projeto a que obedece, não sendo o caso repetir os argumentos só para não parecer dilmista; o que importa é apontar o erro monumental de aderir a essas manifestações, comandadas por gente que na campanha presidencial recente defendeu a abertura de um “saco de maldades” repleto de “medidas impopulares” cuja inspiração é a mesma das medidas adotadas pela presidente, que nada mais faz do que se conformar às exigências inescapáveis do pacto costurado pelos tucanos e ao qual o PT se rendeu faz tempo, como já discuti aqui, aqui e aqui (e em muitos outros artigos neste Blog). A essência desse pacto é: se as coisas vão bem e os ricos podem ganhar, dá-se alguma coisa aos de baixo; se as coisas vão mal, os pobres pagam o ajuste, sempre em respeito à cláusula pétrea de que os ricos não podem perder.

É exatamente porque o tal pacto comum a tudo preside — as duas principais forças não apresentam caminhos alternativos e toda eleição revela-se apenas a disputa pela troca de turno na guarda presidencial — que muitos dos que dizem não defender o impeachment não se saem melhor do que os colloridos em revolta: do muito de irresponsabilidade e besteira que tenho lido sobre a situação política, nada foi mais repelente do que a emblemática declaração de Aloísio Nunes, para quem o gozo está em “ver Dilma sangrar” até o fim do mandato — esse senhor, que defende o quanto pior melhor (certamente porque o pior fica para os pobres) é um irresponsável senador por São Paulo, leitor. A besteira mais nociva, não apenas porque encobre o essencial, mas porque fortalece a farsa dominante, é a confusão entre preconceito de classe e luta de classes (como se a palavra classe operasse milagres), como se a raiva contra os pobres por parte dos colloridos frustrados que comandam essas manifestações fosse suficiente para trazer de volta uma polarização que o tempo e as circunstâncias tornaram implausível: assim como Collor não foi escorraçado pela luta de classes, Dilma não está sendo vítima dela. Se o espectro de uma anacrônica luta de classes tivesse removido Collor, o desfecho não teria sido tão incompleto a ponto de mais do que preservar ervas daninhas como Cunha, ter fertilizado o solo para a prosperidade delas. Se Dilma estivesse no topo da pirâmide de uma luta de classes, não seria tão frágil e nem dependeria tanto de ser quem liga cadeira e caneta no âmbito do pacto conservador que partilha com seus principais “adversários”.

O essencial que essa pretensa luta de classes em torno do impeachment da presidente encobre é a falência do sistema político que submete, penaliza, coloniza e avacalha o país: na barafunda que fala de classes presumidamente em luta sem sequer nomeá-las, que dirá distingui-las, singularizá-las no cenário político, se acaba por legitimar como eixo articulador dessas classes (só em sonho insurgidas) precisamente a ordem política que abriga tudo o que não presta. É a luta de classes fajuta à serviço da manutenção do status quo! Que legitimidade tem o Congresso, ESSE Congresso, para afastar a presidente? Que crime cometeu a presidente que a distinga para pior dos presidentes, e das maiorias legislativas que os elegeram, das casas que comandariam o processo do seu impedimento? O país precisa é do impeachment do Congresso Nacional e a única maneira de fazê-lo é pelo fim da reeleição para o legislativo, como já demonstrei em vários textos aqui.

A ideia de que estaria a haver luta de classes fortalece a farsa dominante, o que também contribui para a manutenção do status quo: a farsa de que o PT representa os interesses dos pobres. O lulopetismo habituou-se a arregimentar os pobres em favor de um projeto político voltado à manutenção do poder que permite fazer dinheiro, não distribuí-lo e, por isso mesmo, também ele mantém Dilma sob pressão nefasta. A prática recente atesta para quem quiser enxergar que no xadrez jogado por Lula o sacrifício da rainha (por definição, da Inglaterra) não é carta fora do baralho manjado: Dilma será útil enquanto puder realizar o ajuste que o pacto conservador exige para o lulopetismo poder dar mais uma volta no parafuso sem rosca em que gira o país. Se essa volta for bem sucedida, Dilma terá sido maltratada no cargo para o retorno do aliado Lula em 2018; se der errado, Dilma terminará o mandato sacrificada por um Lula que sempre terá deixado claro seu desacordo com a “sucessora-traidora”, etc. Agora, se conseguirem a proeza de se enroscarem ali onde não há rosca, sempre haverá a saída de a rainha ser sacrificada com a perda do cargo, em favor de uma crise ainda maior, da qual suponham poder sair vencedores, distraídos de que o vórtice já engoliu a todos.

Em suma, ao teimar em não aceitar o papel de Dutra, para o qual fora escolhida por Lula para manter quente a cadeira, Dilma se reelegeu presidente para conhecer uma solidão política só comparável com a de Vargas. Entretanto, “Dutra” que é, ela não dispõe de nenhum dos recursos políticos que permitiram ao ex-ditador fazer de seu auto-sacrifício uma rosca nova no parafuso de então. Por isso mesmo, a menos que se comprove relação direta da presidente com os desmandos na Petrobrás ou em outra parte, quem é responsável defende a continuação de Dilma, não para vê-la sangrar, mas para que faça o melhor que puder para aliviar a carga inescapável que está a cair sobre os ombros dos mais fracos.

O PALÁCIO E A RUA — 4 de 4

Carlos Novaes, 08 de novembro de 2014

 

A lógica da rua só ganhará um vetor transformador se superar a falsa dicotomia PT-PSDB e der um passo à frente, ou seja, se deixar para trás essas duas forças do pacto incrementalista que se arrasta há 20 anos como arranjo saído de lutas abertas outros 20 anos antes — ainda que sem desconsiderar que parte do nosso devir terá muito a ganhar se a raiva não nos impedir de reconhecer os grandes serviços que tucanos e petistas ainda podem prestar no plano palaciano, mormente se fizerem um recolhimento concatenado dos cacos do seu projeto comum, como apontei no post imediatamente anterior.

Sentindo o perigo da obsolescência, o PSDB vai se aguentando como pode, mas a ausência de uma liderança inconteste deixa espaço para que parte de suas energias seja gasta na luta interna pelo cabeça, ao mesmo tempo em que ao que lhes sobra em apoio entre a minoria mais beneficiada pelo projeto comum (“que nunca ganhou tanto dinheiro”, disse o outro…), lhes falta em reconhecimento por parte daqueles a quem a derrubada da inflação abriu uma abertura por onde tentar organizar a vida. Enquanto isso, o PT, a mais estruturada das duas forças, que ao contar com liderança de carisma popular afinal domesticado não deixa de contar também com a empatia do contingente mais numeroso dos beneficiados pelo pacto, volta a encenar a autocrítica típica dos espertalhões: “ajudem-me a ser maravilhoso como eu era antes”. Esse truque de simular humildade enquanto se diz o maioral ao mesmo tempo que se dirige com gravidade afetada ao cabide dos inservíveis para resgatar do abandono a surrada batina do “socialismo”, esse truque é velho e já em 1994 Rui Falcão tirou proveito dele para, assim como hoje, ocupar a presidência do partido. A diferença é que naquela altura nosso canastrão se dirigia ao público interno como militante, enquanto agora busca o aplauso das grandes plateias como protetor.

Olho neles — a artimanha pode dar certo porque é a cara da nossa cultura cristã autocomplacente. O lulopetismo já não sobrevive sem os recursos do poder de Estado, e tudo fará para não perde-lo, o que inclui a continuação do uso abusado que vem fazendo dele. A pseudo radicalidade da bandeira do “controle da mídia” serve como cortina de fumaça para o abandono das bandeiras realmente radicais, como o combate à desigualdade com uma reforma tributária correspondente e o enfrentamento dos interesses do agronegócio predador dos recursos naturais.

Mas não se deve cometer o erro de permitir que a rejeição a esses dois partidos conduza à celebração indevida da ação espontânea e/ou à recusa da forma partido enquanto tal, pois ainda não há substituto organizacional para a ação política coletiva eficaz, uma vez que ela depende da reunião duradoura de quem entende pensar o bem comum de forma semelhante  — sobre isso, remeto o leitor a posts anteriores, que podem ser encontrados aqui e aqui. De toda maneira, tão certo como não se poderá descartar a ação partidária é que a lógica da rua não poderá ser abarcada nem só pela forma partido, nem muito menos por um único partido — a unidade terá de vir da própria ação, unidade esta que dependerá não do desenho retilíneo da proposta, mas, bem ao contrário, do tanto de abertura à invenção que ela favorecer.

A lógica de palácio aferrada à desigualdade que nos infelicita mobiliza uma memória incrustada em bens e procedimentos, uma memória nefasta que informa e é retroalimenta por rotinas de poder legislativo descoladas do fluxo do mundo da vida, onde estamos todos nós. O dispositivo que garante esse estado de coisas é a reeleição para o legislativo, na qual se assenta a profissionalização da representação na forma de uma carreira. Se o mundo legislativo já tem suas próprias rotinas, inescapáveis em qualquer instituição, essas rotinas se tornam ainda mais hostis à mudança quando se submetem aos interesses dos mesmos de sempre, quando muito com substituições que nada renovam. Nada mais parecido com um vereador do que um deputado, a ponto de não haver espelho de parlamentar que possa responder à pergunta “espelho, espelho meu, existe alguém mais cretino do que eu?”. Embora tenha feito o diagnóstico certo, Lênin concebeu o remédio errado, pois supôs que o fim do cretinismo parlamentar exigia o fim da representação parlamentar. Não. O que faz o cretino é a profissionalização, não a representação. A tarefa da rua é acabar com a reeleição para o legislativo.

A primazia dessa tarefa sobre qualquer outra deriva de quatro razões principais: ela pode ser efetivada na ação de cada um mesmo antes de se tornar uma norma nova (basta não votar mais em quem já teve mandato); é simples de entender; permite adesões com motivação e intensidade diferenciadas; e tem grande poder transformador: qualquer um pode entender e se alegrar com a ideia, aderir a ela pelas razões mais idiossincráticas, com engajamento prático não menos próprio e obtendo da sua adoção o desmonte de toda a engrenagem em que estão assentados os hierarcas de Estado e os oligarcas de partido. Se a lógica da rua impuser o fim da reeleição para o legislativo, a lógica de palácio, seja a congressual, seja a partidária, seja a do Executivo, vai ser profundamente alterada para melhor, a começar pelo fato de que a certeza de que vai ter de voltar à vida anterior depois do mandato tornará todo representante um zeloso mantenedor de vínculos.

Dada a enorme visibilidade que o manejo do orçamento dá aos titulares do poder Executivo, fomos levados ao engano de achar que o poder advém principalmente do manejo desses recursos. Mas não é assim. O poder mais efetivo está na mão dos que logram alcançar e permanecer na condição de representantes profissionais (legislativos). As práticas de um Sarney, um Renan ou um Temer só são viáveis pelo instituto da reeleição, pois ela seleciona e premia os piores. Não por acaso as vantagens dessa rotina foram descobertas pelos praticantes de outras rotinas, filhas de suas respectivas memórias reificadas, que se opõem ao fluxo da mudança que atravessa a sociedade: os religiosos com pretensões hegemonistas, a parentela com aspirações dinásticas e os milicos saídos da rigidez dos códigos, afeitos ao uso da força contra a “indisciplina” do nosso povo. Não foi à toa que Ulisses Guimarães, macaco velho, contemplando o plenário de uma sessão do Congresso desde a cadeira da presidência, advertiu com travo amargo em resposta a um interlocutor que menoscabava o chamado “baixo clero” parlamentar: “bobo é quem ficou lá fora”.

Mas o melhor resultado dessa proposta não é a alteração profunda da lógica de palácio, o que já não seria pouco. O melhor é o que vai ser construído na lógica da rua, pois o atrativo que há numa proposta de ativa desobediência civil como essa é também a qualidade que marca toda verdadeira transformação: ela não tem dono, e o único desdobramento que pode ser antecipado é o de que se alcançará o fluxo entre a rua e o palácio. Ou seja, com o fim da reeleição dos nossos representantes nós vamos ter todos os problemas que já temos, mas não teremos o de não ter perspectiva e será bem mais difícil ao homem da rua — seja ele passante, ambulante, pedinte, laborante, residente ou manifestante — dizer “não é comigo”.

O PALÁCIO E A RUA — 3 de 4

Carlos Novaes, 08 de novembro de 2014

 

Como já pude dizer aqui cerca de dois anos antes das manifestações de 2013, para neutralizar o potencial transformador da lógica da rua, os oligarcas da lógica de palácio passaram a propagar com ênfase crescente os poderes milagrosos de uma Reforma Política, contando com o apoio entusiasmado dos inocentes úteis de plantão para lograr acomodar o desejo de mudança das ruas na bitola estreita de um novo arranjo palaciano destinado a dar sobrevida à ordem da desigualdade. Em contrapartida, parte da autointitulada esquerda marxista (pobre Marx), adversária sincera da ordem desigualitária, pretende submeter a diversidade de forças que inerva a lógica da rua ao ritmo cansado do anacrônico motor da “luta de classes”, cuja manivela de partida, perdida entre os escombros dos morticínios industriais do início do século XX, nossos empenhados amigos jamais desistem de tentar reencontrar. Os primeiros, acertada e infelizmente, entendem que é possível neutralizar as ruas a ponto de que nada aconteça; os segundos, fantasiosa e danosamente, supõem poder dirigir as ruas segundo sujeitos pré-figurados inconsistentes na direção da derrubada da ordem enquanto tal.

E meio à barafunda reinante, pode-se dizer que aquilo que se entende pela tal Reforma tem três eixos principais: o modelo eleitoral, o sistema partidário e o financiamento de campanhas eleitorais. Essa relojoaria institucional genuinamente $ui$$a, destinada a concatenar num conjunto final as variadas propostas para cada um desses três eixos, teria como alegados objetivos principais: aproximar representantes de representados; fortalecer, quando não criar, uma ordem política baseada em (poucos) partidos programáticos; e diminuir, quando não acabar, a corrupção. Tudo naturalmente culminando na grande apoteose cívica de um plebiscito ou de um referendo, pois nada se decidirá sem o povo.

Considerando que em todo o mundo das chamadas democracias ocidentais, em que se podem encontrar os mais diferentes e criativos arranjos institucionais dos três eixos da nossa alardeada Reforma, a crise de representação só faz crescer, a existência de partidos programáticos é só uma quimera e a corrupção é uma prática política onipresente, considerando essas verdades inconvenientes, parece que não há nenhuma base factual para imaginar que a solução para qualquer um de nossos problemas sairá de um rearranjo na lógica de palácio que, quando muito, traria aos mesmos políticos profissionais o “desafio” de se acostumarem a novas rotinas de superfície. Para quem se interessa por argumentos detidos contra cada uma dessas mudanças, na categoria REFORMA POLÍTICA deste blog há textos tratando pormenorizadamente dos vários aspectos desse assunto: voto distrital ou em lista; cláusulas de barreira e exigências programáticas; financiamento público de campanhas eleitorais; fim do voto obrigatório (sou contra, pois seria a porteira para introduzir desestímulo crescente à participação dos mais fracos, que é tudo o que querem os que já são fortes).

Tudo somado, declaro que: 1 – considero nosso sistema eleitoral proporcional individual com a opção da lista (o voto na legenda) excelente, pois entendo que cada cidadão deve ter ao seu dispor um sistema que traduza da maneira mais direta possível a sua vontade de escolha — a única correção seria exigir que as coligações proporcionais estivessem atadas a uma coligação majoritária (hoje entendo que a objeção à coligação proporcional não procede, até porque ela está atada à lógica da lista e o eleitor está informado dela quando vai votar); 2.a. – entendo que restrições à criação de partidos são uma tutela indevida sobre a lógica da rua com o único propósito de facilitar a vida dos oligarcas na hora das negociações no âmbito da lógica de palácio — a única correção seria o fundo partidário, que deveria ser extinto, ainda que preservando o acesso às plataformas de mídia, que deveria favorecer menos aos que já são grandes; 2.b. – suponho descabida a exigência legal de partidos com prática orientada  programaticamente, pois não há como alcançar tutela eficaz sobre o que só pode resultar da vontade livre dos agentes; 3 – vejo o financiamento exclusivamente privado das campanhas eleitorais como benéfico às relações representante-representado, pois se já não tiverem que correr atrás nem do dinheiro para os gastos básicos de campanha os políticos ficarão ainda mais longe do povo — a única correção seria estabelecer um teto nominal fixo para contribuições individuais e empresariais, fazendo valer as leis que já existem para punir o caixa2.

Entendo que ao invés de desperdiçar tempo e energia na disputa em torno de uma Reforma Política desnecessária, PT e PSDB deveriam tomar medidas para defender o projeto comum, ameaçado pela reação organizada no Congresso. Nessa ordem de prioridades palacianas, menos implausível do que alcançarem uma Reforma Política redentora seria um acerto pragmático para uma atuação já não digo conjunta, mas pelo menos esporadicamente convergente no âmbito congressual da lógica de palácio.  Bem sei que eles já fazem isso quando se trata da proteção mútua nos malfeitos recíprocos, como dão exemplo as pizzas do tipo CPI do Carlinhos Cachoeira e, ainda ontem, a ironia dos acertos em torno da marmelada em que vão transformando a CPI da Petrobrás — a ironia está em que a ação palaciana foi simultânea ao farisaico discurso de Aécio propugnando a apuração dos mesmos crimes. Ou seja, o que estou sugerindo é que eles, vez ou outra, deem novo sentido a essa prática de ação conjunta em que já estão treinados.

A grande ameaça às conquistas da Constituinte e do Real é que a atuação, hoje isolada, dos bloquinhos partidários conservadores e das chamadas bancadas transversais pode ganhar concatenação estrutural. Grupos como o ruralista, o evangélico e o da bala, mais as bancadas nanicas, são hoje um segmento conservador instável de representantes profissionais, mas podem ganhar forma menos errática e se tornarem a infantaria de defesa da desigualdade e da injustiça social no Congresso. Elas cresceram em número e, não por acaso, pela primeira vez enxergam dentro de uma grande bancada, a do PMDB (claro!), um nome confiável e com capacidade de comando, Eduardo Cunha, parlamentar de reputação incontroversa eleito pelo Rio que esteve à frente, ou na articulação miúda, de todas as iniciativas conservadoras ou reacionárias da legislatura atual.

Não é segredo para ninguém medianamente informado que se Eduardo Cunha chegar à presidência da Câmara dos Deputados toda pessoa de bem logo sentirá as mais sinceras e pungentes saudades de Inocêncio de Oliveira e Severino Cavalcanti. No âmbito congressual da lógica de palácio e em nome do projeto gradualista comum, Dilma deveria chamar Aécio a um entendimento para que as duas forças, ainda que mantendo suas hostilidades institucionais, somassem esforços para que o Senado fosse presidido pelo PSDB e a Câmara pelo PT (ou vice versa), cabendo ao PMDB de Temer as devidas compensações em ministérios — um típico toma-lá-dá-cá. Um arranjo assim permitiria conter o ímpeto das forças mais nocivas à democracia pactada em que vivemos (ruim com ela, pior sem ela), daria parâmetros mais seguros para algum desenvolvimento, sem desmanchar a polarização fajuta de que os dois partidos julgam se beneficiar, e abriria perspectivas para que nosso povo pudesse se informar em prol de uma alternativa melhor no curso dos próximos anos, o que poderia incluir uma segmentação mais clara na lógica da rua.

Quanto à luta de classes, se Marx tivesse se ocupado dela com a atenção que deu ao monumental O Capital, o mais provável é que já a tivéssemos abandonado pelo menos logo depois da Primeira Guerra Mundial e da consolidação do poder totalitário na Rússia, eventos correlatos que compuseram o féretro da viabilidade do que quer que se tenha entendido como luta de classes. Tendo sido uma auspiciosa proposta de ação política plausível no curso do século que vai dos primeiros levantes ludistas de massa (1811) até a votação dos créditos de guerra pela social-democracia alemã (1914) — ação nacionalista que liberou sem contraste o chauvinismo alemão que resultou em Hitler e selou antecipadamente o malogro do empuxo internacional da revolução russa — , a luta de classes jamais foi um dado de realidade independente da vontade consciente dos atores políticos, por mais que equivocadamente se tenha buscado ver nela um motor autônomo da história, como que numa contraposição simétrica à não menos mítica mão invisível do mercado, ambas afilhadas daquela célebre toupeira espírita de Shakespeare, que levou Hamlet a dizer do muito que há em céu e terra além do que pode supor a filosofia. A manivela da luta de classes depende de escolhas subjetivas lastreadas em modos de vida historicamente dados e, assim, nem mesmo uma impressora 3D dará conta de trazê-la de volta. Deixemos a diversidade da lógica da rua em paz — faremos muito se conseguirmos construir um objetivo comum que não seja encarado como uma substituição arbitrária e contraproducente de objetivos singulares.

Mas se a solução do nosso problema não está contemplada no inventário de temas da Reforma Política, nem pode ser encontrada pela via da luta de classes, o que propor para orientar a lógica da rua no sentido de uma transformação contra a desigualdade?

 

NOTAS CURTAS

– Dilma não tem escolha: ou derrota Eduardo Cunha ou será derrotada por ele. Por isso, se vierem a apresenta-lo na presidência da Câmara como resultado de qualquer coisa que se assemelhe a um acerto, podemos dar tudo por perdido – mesmo.

– A força de Cunha no PMDB abre a oportunidade de rachar esse partido em favor do que há de melhor no pacto incrementalista do Plano Real: PT, PSDB e uma boa parte do PMDB no comando de um jogo que não precisa anular as disputas entre eles, mas livra o país de retrocessos cada dia mais plausíveis, abrindo espaço para uma regulamentação cada vez menos reacionária da Constituição de 1988.

O PALÁCIO E A RUA — 2 de 4

Carlos Novaes, 08 de novembro de 2014

 

Desde sempre entre nós, exceto pelas exceções que deixo ao leitor conceder, a lógica de palácio aferrada à desigualdade rege não apenas o grosso da ação estatal institucional organizada (legislativo, executivo e judiciário), mas também a ação de entes da sociedade que se organizam especularmente ao estado, tais como partidos e sindicatos. Em outras palavras, a memória da desigualdade é tão renitente — reificada e reiterada em bens e procedimentos — que mesmo a maioria daqueles que se juntam para combatê-la logo é arrastada à conclusão de que bom mesmo é conviver com ela enquanto livra a si mesmo das suas consequências mais duras, sendo a domesticação pelo enriquecimento dos hierarcas da burocracia petista (partidária e sindical) o exemplo mais cabal (e também por isso tão odiado) dessa força centrífuga da concentração da riqueza no país. A bem da clareza, diga-se que aquilo que os adversários do PT chamam de “aparelhamento do estado” pelo petismo nada mais é do que a ocupação legítima de cargos que seus antecessores e eles próprios criaram e vinham ocupando até a troca da guarda ocorrida nas eleições de 2002 — o defeito do petismo não foi ocupar esses cargos, mas ter se acomodado à ordem que os criou e garante. Tampouco tem cabimento pretender que o lulopetismo seja um bolivarismo, como Samy Adghirni deixou claro.

Uma vez que se entenda o lugar central de nossa desigualdade secular como conceito e prática que tanto informa a lógica da rua como articula a lógica de palácio, fica claro o equívoco de quem supõe ter encontrado o início desta lógica em 1979(!), bem como de reduzi-la à deformação estendida da prática fisiológica intra muros de um partido, como faz Marcos Nobre com seu pemedebismo, o qual, como resultado direto da sua limitação heurística, só pôde originalmente resultar na aspiração por uma Reforma Política — ou seja, a uma deformação por assim dizer parlamentar correspondeu uma solução restrita ao cretinismo parlamentar. O melhor exemplo da inocuidade das soluções saídas de abordagens desse tipo é provavelmente a proposta de financiamento público de campanhas eleitorais. Tudo se passa como se o problema da corrupção fosse o financiamento eleitoral pelas empresas, isto é, como se os vínculos fossem entre o dinheiro dos empresários para as campanhas dos políticos e os contratos de obras e serviços dos políticos vencedores para empresários. Em outras palavras, como se a questão fosse a retribuição do político pela ajuda recebida. Se fosse isso seria errado, mas ficaria barato. Não. O problema da corrupção está em que não se trata de mera retribuição contábil, mas de sustentar um modelo garantidor de enriquecimento desigual permanente combinado ao enriquecimento conjunto através do uso do poder político para desvio privado de recursos públicos que deveriam servir à coletividade.

É por isso que todos eles querem o (e nada de bom para nós há no) tal financiamento público de campanhas eleitorais: distraem insatisfeitos incautos com uma mudança em que não acreditam, enquanto asseguram um dinheiro extra, do tesouro (o nosso, claro!), para as despesas de varejo que sempre atormentam os caciques acossados por áulicos ávidos, e poderão continuar não apenas com as práticas do caixa2 (que já são proibidas — por que mudaria?!?), mas também com os atos de corrupção pós-eleitoral, que nada tem de eleitorais, e pelos quais se faz o grosso do dinheiro. Essa rotina é conhecida por quem quer que, mesmo em um pequeno município do interior, já tenha passado por uma Câmara de Vereadores e espetado um caminhão alugado na prefeitura em nome de um laranja para, em troca, não perturbar a vida do prefeito nem da empreiteira que ganhou a licitação dirigida para essa ou aquela obra — tudo na cara do ministério público local. Mas voltemos ao leito central.

Numa situação como a brasileira — em que a desigualdade se mantém precisamente porque seu combate é negado por um pacto perene regido por uma lógica de palácio cada vez mais cara, sendo o arranjo da vez o Plano Real, segundo o qual se deixa contentes tanto aos muito pobres quanto aos muito ricos, e administra-se como der o blocão intermediário –, numa ordem assim propícia a gerar sofrimento e contradição, a lógica da rua envolve e (des)orienta a todos os segmentos sociais, sejam os muito pobres, os neopobres, as classes médias, os ricos ou os muito ricos. Cada qual está insatisfeito a seu modo, pois, como disse Tolstoi, todas as famílias felizes se parecem, as infelizes o são cada uma à sua maneira: os muito pobres, embora se mostrem felizes porque o pouco que receberam com o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida é mais do que tudo o que jamais haviam recebido, e quase abarca o que a desgraça em que viviam lhes permitia sonhar (a relatividade ilusória da felicidade joga aqui o seu papel), esses pobres, ainda assim, não podem deixar de estar insatisfeitos com a vida que levam e, sobretudo, deploram a vida que hão de continuar a levar. Os neopobres foram parcialmente contentados porque graças ao incremento do salário mínimo e à redução do desemprego julgam ter firmado o pé na lama (antes escorregavam), mas prudentemente temem recuos e querem muito mais, claro. As classes médias mostram toda a sua diversidade ora com os reconhecimentos que a solidariedade impõe, ora com a fúria de quem se vê espremido numa situação urbana cada dia mais hostil ao gozo do que pode haver de bom na vida, ora ainda com o regozijo de quem alcançou esse ou aquele bem de consumo durável. Os ricos sofrem com a desigualdade porque também vivem na área urbana degradada, e mais: estão tendo de conviver cada vez mais com quem é pobre — sofrem porque estão a ver semelhantes por toda parte. Parte dos muito ricos (os menos muito ricos dentre eles) sofre pelas mesmas razões dos ricos e, ainda, porque começa a temer que a movimentação da tigrada venha a avançar sobre sua riqueza e o modo de acumula-la, enquanto protesta contra o preço que paga pela segurança precária.

O resultado é que, mesmo sem o saber, e por razões até opostas, quase todo mundo está farto do divórcio entre a lógica do palácio e a lógica da rua. Há uma anseio nem sempre consciente por um fluxo concatenador entre palácio e rua, e é a frustração desse anseio, ou a busca dele, que se reflete nas manifestações públicas centradas na reivindicação de serviços públicos, no protesto contra a corrupção, na exigência por infraestrutura e na demanda por mais segurança. Mas essa rua não é de mão única: a maioria demanda do palácio serviços públicos para si, enquanto uma minoria vê esses serviços como dispositivos atenuadores de conflitos; a maioria protesta contra a corrupção palaciana porque vê nela o desvio do dinheiro que deveria atende-la, enquanto uma minoria protesta contra renúncias ou desembolsos exorbitantes que vem tendo de fazer a um palácio que lhe parece insaciável (não vê que os custos correspondem ao tamanho da encrenca); a maioria exige infraestrutura ciente de que vai partilhá-la, ao passo que uma minoria vê na infraestrutura a via para evitar a convivência; a maioria faz a demanda por segurança na condição de vítima tanto dos bandidos quanto da ordem policial truculenta; já uma minoria entende por segurança uma polícia ainda mais truculenta na defesa da ordem que infelicita a maioria.

Foram as energias dessas contradições que a eleição de 2014 dissipou na forma de desorientações várias: PT e PSDB geraram a vacuidade de acerbas paixões contrárias impertinentes; um governador de polícia truculenta, e imprevidente a ponto de deixar faltar água, foi reeleito em primeiro turno no estado mais rico e “informado” do país; uma ambientalista outrora igualitarista faz sucesso (declinante, é verdade) apresentando projetos reacionários ao gosto de rentistas e oligarcas em dimensões centrais da vida em comum: desigualdade, economia e política, pedras rombudas que se receberem pelo voto a argamassa de uma moral comportamental conservadora poderão assumir a forma de um muro sólido contra a mudança; um stalinista de carteirinha recebeu apoio popular contra dinastia putrefata apregoando choque de capitalismo (acho que assisti a pré-montagem desse filme); conurbações que um ano antes viveram protestos de rua aplaudidos por toda a gente acabaram por escolher para representá-las políticos profissionais ainda mais sintonizados com o que pareciam querer combater, incongruência que mostra os limites efetivos da dispersão da rua quando confrontada com a ação organizada de agentes eleitorais pré-políticos que manjaram a lógica de palácio  — situação que alarga o abismo entre o palácio e a rua. Em suma, sem a orientação de um vetor político voltado à transformação plausível, a insatisfação é generalizada mas não é partilhada, pois as pessoas estão indo às ruas para acabar descobrindo que a raiva não é a mesma. O resultado é mudancismo, estado gelatinoso propício à embromação, como veremos.

O PALÁCIO E A RUA — 1 de 4

Carlos Novaes, 07 de novembro de 2014

 

Em toda parte a ordem política democrática é marcada por algum contraste entre a lógica do palácio e a lógica da rua. A primeira rege o mundo dos hierarcas de estado e dos políticos profissionais de carreira; a segunda se manifesta na sociedade. O que determina a intensidade do contraste entre elas é o quanto e a quais dos anseios da rua o palácio corresponde. Se o contraste entre as duas lógicas existe em toda parte, no Brasil ele assume contornos dramáticos porque nossa ordem política está marcada pela exigência de garantir a manutenção de uma desigualdade cujo sofrimento não tem semelhança com o de nenhuma outra democracia de massas. Veja leitor que nossa democracia está assentada não na missão de gerar algum equilíbrio, por precário que fosse, mas na exigência inédita de garantir pela via eleitoral um desequilíbrio visto como inaceitável pela maioria dos observadores informados, e vivido como intolerável pela imensa maioria dos que estão submetidos a ele. Nossa desigualdade é intocável. Essa exigência vem sendo cumprida, com custos crescentes, desde a escravidão, e nossas grandes crises políticas se deram em contextos em que os beneficiários desse arranjo reagiram contra alterações que sugeriam uma ordem política que se desobrigasse dela, sendo o golpe paisano-militar de 1964 o exemplo mais recente de reação frontal à possibilidade de uma concatenação entre o palácio e a rua que ao invés de propiciar, enfrentasse a desigualdade.

A nossa desigualdade, até por esse ineditismo implausível, é desde sempre a realidade mais desafiadora e o conceito mais central para articular diagnóstico e alternativa para o Brasil. Sua vigência secular anacrônica na oitava economia do mundo e num país com mais de 200 milhões de habitantes acabou, porém, por intrigar quem se ocupa com algo mais do que idiossincrasias locais. Observadores estrangeiros da crescente desigualdade mundial estão sendo levados a ver que o mundo mais e mais vai se parecendo com o Brasil, o que não deixa de ser uma maneira de realizar a profecia de que sempre fomos o país do futuro… Ao reunir à imagem de alternativa ambiental ambígua o exemplo da sua mazela social, nossa experiência nacional vem ganhando importância internacional enquanto laboratório a céu aberto sobre até onde se pode chegar com a combinação interdependente entre, de um lado, devastação pródiga de recursos ambientais abundantes (mas finitos) e desigualdade extrema e, de outro lado, sistema eleitoral honesto e com voto obrigatório aberto de todos os cidadãos.

Essa disjuntiva pode ser encontrada no atual debate político interno não de qualquer país periférico, mas nos Estados Unidos, centro ordenador da desigualdade mundial, que vai sendo empurrado a enxergar que a desigualdade não é algo que se possa apenas impor aos outros, pois sua lógica cobra uma contrapartida local. Talvez a melhor maneira de ilustrar a situação americana de um modo que ajude a entender o que está em jogo no Brasil (e vice versa) seja reunir os custos ambientais tremendos da autosuficiência americana em petróleo, que logo poderá ser obtida com a extração de óleo e gás de xisto, tanto com a recente manifestação de ninguém menos que a presidente do FED, o Banco Central americano, Janet Yellen, sobre a crescente desigualdade no país, quanto com as não menos recentes medidas para atrapalhar e desestimular a participação eleitoral dos pobres e das minorias nos estados em que a experiência da escravidão foi mais renitente  — benefícios estabilizadores do voto facultativo…

Segundo Yellen, “as desigualdades voltaram a se aprofundar durante a reativação econômica, enquanto que o mercado financeiro se recuperou”, resultado que não é de admirar quando se sabe que por mais acarinhado que seja, ao invés de orientá-los a reforçar a capacidade produtiva, o “espírito animal” dos capitalistas americanos tem se voltado para investimentos especulativos, inclusive em países emergentes, onde os juros são convidativos. Se as projeções quanto ao rendimento da extração de petróleo e gás de xisto de confirmarem, porém, é provável que a diminuição acentuada dos custos de energia leve a uma retomada nos investimentos produtivos, o que poderá diminuir as perdas no mundo do trabalho, mas pressionará negativamente o meio ambiente, pois embora menos poluente do que o carvão, esse incremento da atividade se somará ao fato de que o gás só pode ser extraído com enormes custos para a quantidade e, sobretudo, qualidade da água disponível. Enquanto isso, estados controlados pelos republicanos — a quem nenhum dado de realidade faz abandonar a quimera de que o enriquecimento tão desonerado quanto possível de uma minoria estimularia o crescimento, favorecendo a queda do desemprego e a melhora de vida dos pobres — desativaram postos de votação em que seria de antecipar um engajamento dos mais pobres em desfavor de seus candidatos — é que lá as autoridades locais tem a prerrogativa de ditar boa parte das regras eleitorais de cada pleito, incluindo número de urnas e locais de votação. Ou seja, no limite, a solução é não deixar os pobres votarem, tal como recentemente declarou o dirigente chinês em Hong Kong, CY Leung. Mas falemos do Brasil, onde não à toa vem ganhando corpo a ideia de acabar com a obrigatoriedade do voto.

Como aqui a tarefa do palácio é garantir a desigualdade, na maior parte do tempo nossos políticos estão de costas para a sociedade, e os dois circuitos só se encontram nas eleições, ocasião em que se dá o simulacro democrático, laço cuja frouxidão vem disfarçada no engajamento cívico do cidadão, engajamento no qual, à medida que o divórcio entre as duas lógicas aumenta, a credulidade cada vez mais cede a vez à raiva epidérmica, raiva essa que, por sua vez, também desvia o eleitor da crítica à ordem enquanto tal e o atola em porfias vãs que nutrem o conjunto malsão. O melhor exemplo dessa desorientação tensa é a pseudo radicalidade do embate entre PT e PSDB, que não passam de vetores de um mesmo projeto, como acabam de dar prova as semelhanças entre os primeiros movimentos da Dilma rediviva e as promessas “impopulares” do Aécio semimorto, estado de coisas que só surpreende analistas soterrados em reflexões autojustificadoras de suas próprias ilusões (sejam elas lulistas ou tucanocráticas) e transforma em trouxas todos esses esbravejadores que fazem das redes sociais plataforma virtual para troca de insultos (peço desculpas antecipadas pelo trouxas).

Na desigualdade, como se sabe, ao sofrimento de maiorias corresponde, na outra ponta, a entrega do luxo à minoria. Não é de surpreender, pois, que uma desigualdade como a brasileira exiba na vitrine radicais de butique, enquanto PT e PSDB — que pelo menos desde 2002 estão de acordo em promover a diminuição gradualíssima da pobreza sem ferir a riqueza privada acumulada, nem alterar os mecanismos que permitem essa acumulação — se dão ao luxo da divisão, ao invés de somarem esforços para levar logo até o fim a lógica encrencada dessa alternativa inatual que representam e, assim, dar ao país a oportunidade de finalmente encarar os seus problemas estruturais, que não derivam nem da pobreza, como querem nos fazer crer esses espertalhões que a usam como zumbi de piranha, nem do excesso de estado, como propagam os acariciadores do “espírito animal” do mercado. A desigualdade é a base para a lógica do palácio e para a lógica da rua. A do palácio é “financiada” pela, tem por base a, riqueza extrema dos de cima, a quem o modelo de acumulação nutre; e a da rua reflete tanto os sofrimentos da imensa maioria que ficou por baixo, a quem a desigualdade desampara, quanto, em situações de crise, os temores da minoria dos de cima, desassossegada quando a ação dos de baixo toma ares de desafio ao status quo — é esse encontro na crise que está a brotar nas ruas feito capim, a servir de pasto ao alarido de certa mídia em torno da suposta “insatisfação generalizada contra o PT”, como se o PSDB não tivesse parte no imbróglio.

A POLÍTICA ENTRE A MEMÓRIA E O FLUXO

(tentativa de resposta à pergunta de um amigo sobre o valor da troca pela troca, quando o eleitor não se reconhece em nenhuma das candidaturas disponíveis)

Carlos Novaes, 25 de setembro de 2014

 

Permitam-me começar com uma pequena história que, não por coincidência, dá colorido cotidiano à pergunta mencionada acima. Há poucos dias, ouvi do sempre combativo e comunicativo jornaleiro da banca que frequento (todos nós conhecemos um, o que em si já daria uma crônica…), a observação enfática de que “moço, a única coisa que a gente pode fazer é trocar; trocar um pelo outro, tirá um, e buta o outro; é só!”. Note, leitor, que nosso inconformado personagem está dizendo mais do que pretende a teoria democrática refinada, segundo a qual a democracia vale não porque ela nos possibilite fazer a escolha do que nos parece melhor, mas antes porque ela nos permite remover o que nos parece ruim — não, dizia eu, o nosso semelhante da esquina vai além: com seu musical sotaque baiano ele nos diz que, como os políticos, um pelo outro, são todos igualmente ruins, só o que nos resta é trocar, jogando assim alguma areia na rotina deles, para, num misto de aspiração e vingança, quem sabe, obter casualmente alguma conquista do fato de as engrenagens deles terem lá as suas encrencas.

Depois de assistir a essa acabrunhante campanha eleitoral, imagino que só os muito implicados no processo, seja por interesse, seja por ideologia, ainda possam reunir forças para contestar o nosso amigo. Mas, se não há convicção para corrigi-lo, há por certo motivação para discutir a questão, a ver se chegamos a um patamar menos macegoso, de onde, talvez, possamos divisar alternativa. Seguindo a pista dada por nosso teórico (e não há ironia aqui), comecemos por observar que a base da democracia é mesmo a ideia de troca: assim como o mercado valoriza o fluxo da troca das mercadorias, das quais o jornal diário é uma das formas manufaturadas mais fugazes, o regime político que corresponde ao mercado se funda, e afunda, no fluxo que troca gestores e representantes, ainda que, em tese, o gestor seja menos volátil do que o representante. Digo menos volátil porque, entendendo a ação política institucional como uma tensão entre memória e fluxo (uma tensão entre o que se conserva e o que se muda), sou levado a ver que quem está no exercício de um mandato executivo está mais comprometido com a memória do que um representante legislativo, uma vez que este, mais que aquele, deve responder mais prontamente ao fluxo da dinâmica social, às mudanças de preferências, humores, valores e interesses que toda sociedade aberta exibe. Em outras palavras, enquanto, em tese, repito, o executivo lida com as rotinas do fazer, e sempre herde algo que estava a ser feito, o legislador se dedica a um ouvir e a um dizer, estando sempre mais colado à possibilidade da mudança. Sendo didático ao nível da deselegância, o que quero dizer é que uma ponte em construção carrega uma memória que não pode ser ignorada pelo gestor sucessor no executivo, enquanto que a aspiração pela criminalização da homofobia deriva de um fluxo de mudança que tem de poder encontrar representante no plano legislativo.

Nessa ordem de idéias, há algo de muito errado num sistema político que empurre à mudança no plano executivo e crie dificuldades à mudança no plano legislativo. Não obstante, é exatamente dessa forma perversa que funcionam esses poderes, aqui no Brasil e na maior parte do chamado mundo democrático ocidental. E eles funcionam assim porque, embora danosa ao bem estar das sociedades, essa ordem é ideal para a rentável vida em estufa que a chamada classe política criou para si mesma: a possibilidade de reeleição infinita nos legislativos (fonte da profissionalização danosa, que degrada todo o sistema político), mantendo as cobiçadas cadeiras do executivo (cobiçadas por serem ordenadoras de despesas, além de bem menos numerosas) sempre submetidas à ciranda entre eles (fonte do fôlego curto do planejamento, da ausência de visão de longo prazo). Aliás, é à preservação dessa ordem malsã, nessa ou naquela versão, que se prestam as propostas de voto em lista, coincidência de calendário eleitoral com mandatos de cinco anos(!), sistema distrital, financiamento público de campanhas eleitorais, fim da reeleição para o executivo, adoção do parlamentarismo, cláusulas de barreira, sendo comum a todas o silêncio sobre a aberração que é o sujeito poder se perpetuar mandato após mandato nos legislativos.

Retomemos a tensão memória-fluxo. Ao permitir a reeleição dos representantes legislativos, a legislação eleitoral dá ênfase na memória ali onde o eleitor deveria ser estimulado a escolher diante do fluxo e, em contrapartida, ao empurrar o executivo à mudança ela impõe o fluxo ali onde o eleitor poderia valorizar a memória. No primeiro arranjo, o eleitor é desobrigado de pensar em mudança justamente ao escolher o seu representante, que, em tese, está se propondo a ficar no lugar dele, e mais, exatamente ali onde é mais difícil fiscalizar a ação do político. Ou seja, protegido pela pouca visibilidade dos cargos legislativos e favorecido pela inércia que caracteriza a espécie humana, o mal representante que tenha aprendido as manhas da condição de político profissional pode se perpetuar no poder sem jamais representar coisa alguma senão os próprios interesses. É nesse apego aos próprios interesses que repousa a memória indevida, ali onde deveria predominar o fluxo: o político profissional cria rotinas (ou seja, memórias hostis à mudança) para, a um só tempo, se perpetuar no poder e beneficiar aqueles que o financiam. Multiplicada em larga escala, essa prática política arrasta as instâncias de representação (Congresso, Assembléias estaduais e Câmaras municipais) ao conservadorismo, a se constituírem em verdadeiras casamatas contra a mudança, quando elas deveriam ser o estuário do que de mudança há na sociedade — ao contrário do que dizem os incautos, nossos legislativos não são “um retrato” da nossa sociedade precisamente porque eles são mais conservadores do que ela, empenhados que estão em conservar memórias que ela já ultrapassou em seu fluxo permanente, ainda que, às vezes, o fluxo se dê na forma de marés, quando a sociedade entende que precisa recuperar memória indevidamente deixada para trás, movimento no qual o recuperado não deixa de trazer elementos do que foi vivido depois — quem volta para buscar refaz o caminho e altera o buscado, pois a memória é plástica.

Por outro lado, no segundo arranjo, quando proíbe qualquer reeleição no executivo, a legislação impede o eleitor de poder escolher entre a memória e o fluxo exatamente ali onde poderia fazer sentido conservar (em razão da própria dinâmica do fazer), e logo numa atividade em que ele tem mais elementos para avaliar o desempenho do gestor, cuja ação está, por definição, referida a todos e não a uma parte dos eleitores, como é o caso de um representante. Bem mais visível do que a ação de representar, o fazer do gestor se presta ao escrutínio do eleitor em geral e, assim, trata-se de contradição flagrante que, na escolha para a recondução ou não de um gestor (executivo), se sonegue ao eleitor a confiança que se deposita nele para a escolha do representante (legislativo), função esta para a qual é muito menos provável que ele tenha informação para (e queira) exercer uma judicação detida. Em outras palavras, para acabar com a reeleição para o executivo se diz que nela o eleitor é manipulado; mas não se diz de manipulação do mesmíssimo eleitor quando se trata da reeleição infinita para o legislativo, cargo para o qual é muito mais fácil iludir o eleitor, escondendo malfeitos.

Na realidade, e como não poderia deixar de ser, é bem o contrário do que se diz: as realizações ou erros de um prefeito, por exemplo, deixam uma memória (acabada ou em andamento), que oferece elementos ao eleitor para decidir entre a conservação e a mudança, sendo de coibir apenas a reeleição salteada que, aliás, tem permitido fazer do governo de São Paulo um poleiro de tucanos, precisamente porque essa reeleição infinita disfarçada permite a cristalização de rotinas (memórias) profissionais para a obtenção de blocos seguidos de mandatos de gestão. Em contrapartida, ao acabar com a reeleição para o legislativo, estaríamos levando o eleitor a escolher desatado das rotinas e da inércia, tornando as instituições de representação muito mais ligadas no fluxo, muito mais abertas a representar a mudança havida na sociedade, livrando-as da memória nefasta cristalizada no jogo de interesses e vantagens que, pela sua própria natureza corrupta, não se dá sob os olhos do eleitor, por mais vigilante que ele seja. Se é certo que sociedades mudam devagar, e é, mais uma razão para que nem se possa desperdiçar de recolher, nas instâncias de representação, toda mudança havida nelas; nem negligenciar o fato de que elas parecem mudar ainda mais devagar do que realmente mudam porque suas instâncias de representação se apresentam indevidamente agarradas ao que ficou para trás.

Naturalmente, é certo que mesmo assim haverá negociatas, mas não creio que se possa dizer que um modelo sem reeleição legislativa é mais propício à bandalheira do que o atual. Quanto aos “bons” representantes que serão perdidos, duas palavras: primeiro, a ideia de que eles são bons em si mesmos já é, em si, conservadora, pois bom é o representante atado ao fluxo, isto é, a virtude não está nele, mas na própria “coisa” representada; segundo, e por isso mesmo, se aquilo que ele, o bom, representa, conserva sua força na sociedade, ela se encarregará de encontrar um sucessor capaz de dizer de novo, e com eficácia, o que precisa ser dito nas instâncias que foram libertas da memória dos interesses aquadrilhados. Nesse último caso, isto é, quando a sociedade por assim dizer reconduz a “coisa” representada, o que haverá de se dar na maior parte do tempo, mas com outro representante, tem-se a memória virtuosa, que garante a continuidade do que é bom segundo o que é visto como propício ao fluxo social: vozes novas dizem a “mesma coisa” de modo diferente, o que, em si, significa alcançar o ideal de ter o fluxo dentro da memória, e vice-versa — até porque, memória sem fluxo seria imobilismo e fluxo sem memória seria delírio, situações nas quais a política é impossível.

Essa valorização invertida da memória e do fluxo na ação política institucional encontra desenho próprio em cada país, sendo mais nociva ali onde a desigualdade é grande, simplesmente porque quanto maior a desigualdade, mais embrutecida se encontra a maioria, uma vez que está prisioneira da luta brava pela sobrevivência, situação duplamente propícia à autonomia da ação política que a dinâmica das reeleições legislativas já favorece (autonomia entendida como desligamento da realidade material em que labuta o povo): de um lado, a penúria material não deixa tempo para o auto-aperfeiçoamento, consumindo na luta frequentemente inglória por uma vida melhor toda a energia disponível, nada restando para a ilustração, que é o vestíbulo da contestação; segundo, escapar individualmente das consequências da desigualdade torna-se um aprendizado de primeira hora a todo aquele que, apesar de tudo, levanta a cabeça, situação que desvirtua todo esforço de ação coletiva bem sucedida dos de baixo, pois eles logo descobrem as vantagens que podem auferir para si mesmos do fato de terem se juntado para lutarem pelo bem comum — eis o terreno propício à cooptação, que é um mecanismo muito eficaz para mudar fluxo (movimento) virtuoso em memória (burocracia) viciosa (foi aí que o PT naufragou) .

Se o resultado da soma das reeleições infinitas com a desigualdade configura um quadro especialmente propício a arranjos de estufa, dentro da qual os profissionais da política abandonam diferenças programáticas a que, de resto, jamais foram apegados, em favor dos negócios que a proximidade parlamentar proporciona (partilham o butim da memória, em lugar de responderem às demandas do fluxo), se é assim, dizia eu, então não há dificuldade para entender porque num país continental e populoso como o Brasil se encontra, a um só tempo, uma das ordens políticas mais corruptas e uma das sociedades mais desiguais do mundo. Ao invés de ser um retrato da nossa sociedade, nossa ordem política corrupta é um retrato da nossa desigualdade, mais exatamente daquela face dela que é capaz de se fazer traduzir em força política, vale dizer, a nossa ordem política corrupta é um retrato da nossa elite, não do nosso povo, que infelizmente ainda não encontrou um caminho para tirar forças da desigualdade a que está submetido sem ter de assistir logo adiante a degradação de seus próprios líderes. Naturalmente, não chega a ser um caminho incluir os mártires populares da luta contra a desigualdade entre os membros da elite contra a qual essa mesma luta tem sido feita, como fez Marina no Jornal Nacional, onde invocou a memória do incontrastável Chico Mendes (cujo compromisso com os de baixo lhe custou a própria vida) para defender alguém cuja disposição de ajudar os pobres acaba ali onde se constata que os pobres só serão menos pobres se os muito ricos forem desapetrechados dos instrumentos que lhes permitem amealhar tanta riqueza.

Feito esse apanhado geral, vejamos a troca pela troca no Brasil das eleições de 2014, para o legislativo e para o executivo. Como já defendi em outro lugar, e em razão mesmo da argumentação exposta acima, entendo que o melhor seria o povo brasileiro promover uma troca geral nos legislativos, votando apenas em quem jamais desfrutou (esse é o termo) de qualquer mandato parlamentar. Não vejo como uma aposta no fluxo virtuoso, que escangalharia mecanismos de reprodução de poder há muito estabelecidos e, por si mesma, geraria aprendizados novos a serem aplicados em uma próxima eleição, aprendizados esses que acabariam por levar a trocas cada vez mais informadas no futuro, não vejo como essa opção poderia trazer mais dano à nossa vida em comum do que o apego aos portadores de uma memória cujas rotinas só podem nos trazer mais do que sempre tivemos.

No caso dos executivos, se o eleitor não se reconhece em nenhuma das candidaturas existentes, a troca pela troca deve ser encarada como uma opção de ordem prática de caráter circunstancial, e não geral. Ou seja, há que se examinar caso e caso, escrutinar as memórias em questão e, então, definir com base no princípio de que se deve escolher o menos pior. Um critério para definir o menos pior pode ser antecipar a magnitude da pressão que a sociedade teria de fazer para lograr que o gestor atuasse na direção que parece mais adequada ao observador. Se ainda assim a dúvida persistir, e se houver certeza de que uma troca não vai nos colocar ainda mais longe do que almejamos, talvez o melhor seja fazer como recomendou nosso amigo jornaleiro, ainda que sem nenhum sentimento de vingança: trocar só para obrigá-los a se mexerem e, quem sabe, colher algum resultado positivo inesperado — nas palavras do amigo que me fez a pergunta “quebrar alguns vícios [memória] e criar a necessidade de reinventar [fluxo] os equilíbrios e acordos políticos”.

Evidentemente, as coisas se complicam se o observador incluir no cálculo a expectativa de provocar uma revolta, quando então talvez fizesse sentido escolher o pior. Como sou de opinião que revoluções são o colapso da política, eventos de fluxo desataviado que devem ser apoiados justamente porque são um sofrimento adicional ali onde o sofrimento se tornou insuportável e, por isso mesmo, entenda que uma revolução é uma desorganização da memória de tal envergadura e profundidade que não pode ser provocada (do contrário não seria revolução, mas mera troca de uma memória falida por uma outra, pré-fabricada — quem o tentou gerou monstros), esta opção de escolher o pior para arriscar alcançar o melhor está descartada para mim, até porque ninguém pode garantir que a pior memória vá desabrochar num fluxo alvissareiro.

Uma REFORMA POLÍTICA r e a c i o n á r i a

Carlos Novaes, 09 de setembro de 2014

Não é segredo que a sociedade brasileira quer mudança. Quando se pensa exclusivamente na política ali onde ela está sujeita ao voto do cidadão, a insatisfação é generalizada, embora o poder executivo se saia melhor do que o legislativo. Se olharmos para os números das pesquisas que avaliam presidente, governadores e prefeitos ao longo dos últimos anos veremos que a gestão da coisa pública é sopesada com critério pelo eleitor, pois o quadro varia muito, havendo tanto repúdio quanto exemplos positivos, em todas as instâncias executivas do sistema federativo. Do lado dos legislativos não há variação porque a repelência pela nossa representação é justificadamente absoluta: eles construíram um mundo à parte, baseado em suas próprias afinidades com as rotinas do poder e do dinheiro, afinidades que intensificam relações corporativas recíprocas ali onde seria de esperar divergência programática, situação que lhes permite receberem os votos para ficarem de costas para nós, paradoxo que tem sido apropriadamente descrito como uma crise de representação.

Os remédios para essa crise de representação são quase tão numerosos quanto os médicos que se apresentam à urgência, e já fiz em outros textos o escrutínio de algumas das propostas de reforma política que nos tem sido oferecidas, como pode ser lido aqui. Mas uma coisa é certa: uma crise de representação não pode ser enfrentada com remédios que aumentem a distância entre eleitor e eleito, pois medidas assim tornariam ainda mais confortável a vida dos nossos representantes infiéis, que são infiéis não só porque querem, mas também porque encontram mecanismos propícios para sê-lo.

Aparentemente afinado com esse cenário de crise e busca de alternativas, o Programa de Governo de Marina dá precedência ao tema da reforma política sobre todos os outros quando defende logo em seu primeiro capítulo que

“não basta substituir a representação pela participação simplesmente; trata-se de procurar uma articulação nova e profunda entre as duas coisas. Uma das causas profundas da crise de valores é a reprodução da velha política.[…] O primeiro passo de uma reforma implica exigir comportamento republicano de todos os agentes políticos e dos demais ocupantes de cargos públicos. […].Para deflagrar o processo de reforma política, vamos sugerir medidas iniciais que levarão à reconfiguração integral do sistema político e eleitoral do país. […]. A política precisa absorver a mensagem de reconectar eleitos e eleitores. […].Os canais existentes devem ser fortalecidos, mas novos instrumentos precisam ser desenvolvidos, mediante o uso de tecnologias da informação e comunicação, para que o cidadão participe mais ativamente das decisões.”

No que diz respeito à representação, parece claro que a candidata pretende “articulá-la” com a “participação” e “reconectar eleitos e eleitores”. Entretanto, quando conseguimos transpor o palavrório enfadonho do programa, encontramos propostas que renegam o que os autores alegavam pretender e, pior, são em tudo contrárias ao que queremos:

Coincidência geral das eleições  e mandatos de cinco anos: além de prorrogar mandatos de uns e outros, atropelando escolhas anteriores do eleitor, essa proposta é o oposto de mais participação e responsabilização: ela mais que dobra, estende de dois para cinco anos(!),  o tempo em que o voto do eleitor não pode interferir no andamento da representação (legislativo) e da gestão (executivo), ou seja, protege o sistema político dos juízos da sociedade, quando parecia pretender o contrário. A adoção de mandatos de cinco anos é mais do que nossos políticos corruptos poderiam sonhar, e desafio qualquer um a demonstrar como essa medida aproxima eleitor e eleito. Para glória dos marketeiros e mistificadores de plantão, a coincidência geral de mandatos engessa numa mesma campanha eleitoral o diversificado temário de todos os níveis e instâncias do sistema político cujos cargos são providos pelo voto popular, pondo dificuldades adicionais ao escrutínio do eleitor acerca da realidade, mas facilitando enormemente o trabalho de quem se dedica à fantasia.

Trata-se da proposta mais reacionária que poderia ser concebida, porque é uma reforma contra a mudança: dá a uma representação política repudiada a oportunidade confortável de aumentar sua autonomia em relação aos eleitores numa circunstância em que a base da crise é a autonomia já demasiado confortável de que desfrutam “nossos” representantes.

Fim da reeleição para os executivos: ao invés de propor o fim da reeleição salteada, que tem levado grupos políticos a se eternizarem no poder, como no governo de São Paulo colonizado pelos tucanos, Marina propõe dar cabo da reeleição como tal, duvidando do juízo do mesmo eleitor a quem diz querer dar mais participação… Não há nenhuma evidência de que mandatos de quatro anos com uma, e apenas uma, reeleição sejam um dano à boa gestão da coisa pública. Pelo contrário: em instâncias de gestão, em que não há propriamente representação, não há mal no eleitor poder reconduzir uma vez um governante bem avaliado, desde que ele seja impedido de disputar o mesmo cargo mais adiante. A reeleição no executivo pode ser benéfica porque na gestão da coisa pública os elementos de continuidade se sobrepõem aos elementos de mudança: diferentemente do representar o cidadão, em que as mudanças na sociedade devem ser mais prontamente traduzidas, o gerir a coisa pública é tarefa que arrasta memórias mais duráveis, pois são escolas em construção, rotinas de atendimento médico em implantação, investimentos em infraestrutura em andamento, etc.

Ou seja, pela natureza da atividade, na gestão há menos necessidade de supor ou decalcar a mudança no humor das ruas, como é mister na representação. Ademais, como o titular do executivo tem visibilidade sempre maior do que a do legislativo, seguir e avaliar o desempenho de um prefeito, por exemplo, é sempre menos trabalhoso do que vigiar um vereador, circunstância que torna menos inercial a recondução na gestão do que na representação. Um parlamentar nocivo é muito mais facilmente reeleito do que um gestor incompetente – até porque, além de menos visível, o parlamentar sempre pode ir pedir votos em outra freguesia. A reeleição que tem que acabar é a do legislativo, mas sobre essa transformação necessária o programa de Marina nada diz. Enfim, o fim da reeleição para gestores é uma proposta reacionária, pois não só não propõe mudar a representação (embora simule reconhecer sua crise), como reforça o modelo político defendido pelos políticos profissionais dessa mesma representação legislativa em crise, que almejam mais rotatividade nos cargos de gestão porque aspiram ver esses cargos mais livres para a ciranda das cadeiras que ambicionam.

Em outras palavras, quando juntamos coincidência geral de mandatos de cinco anos com o fim da reeleição para o executivo vemos o desenho de uma alteração especialmente reacionária, pois ela reage ao pouco que conquistamos nos últimos anos e consagra os interesses dos profissionais da representação nefasta: dá a eles mais tempo, mais cargos e mais recursos para o toma-lá-dá-cá que fundamenta sua existência.

Se Marina vier a ser eleita, não haverá nenhuma surpresa quando ela conseguir maioria legislativa absoluta para aprovar essas barbaridades, que configurarão não a mãe de todas as reformas, mas a pá de cal em qualquer transformação e a pedra fundamental para uma base parlamentar voltada a outros retrocessos, como a autonomia legal do Banco Central. Naturalmente, se a oportunidade nefasta se apresentar, as velhas raposas irão facilitar o caminho para o que lhes interessa enfeitando a prorrogação/extensão dos seus mandatos e o fim da benéfica possibilidade de reeleição com a embromação conhecida sobre mecanismos complementares de “participação tecnológica”, tudo com o beneplácito dos bancos.

Um sistema eleitoral em que os candidatos mais votados são os eleitos –  ou seja, o projeto de Marina quer acabar com o voto de legenda, regra eleitoral valiosa que nosso sistema eleitoral acertadamente adotou para fazer a combinação entre o voto em indivíduos e o voto nos partidos. É justamente essa combinação que torna impertinente e supérfluo qualquer outro modelo chamado de lista, como quer o PT, pois pelo nosso excelente modelo eleitoral o eleitor pode escolher entre o candidato individual e o programa partidário. Se nossos partidos não são programáticos, o remédio não está em retirar do eleitor a liberdade de votar neles (voto que ele tem dado com comedimento acertado).

Prudente registrar que a redação da proposta é tão econômica em detalhes que não dá para saber se não estaria embutida aí, além do fim do voto de legenda, uma porta secreta para a adoção de algum dos modelos do chamado voto distrital, no qual uma eleição majoritária permite ao mais votado levar tudo, sacrificando a representação das minorias e/ou do voto de opinião, que geralmente não são delimitáveis em distritos territoriais. Se for isso, teremos o pior dos mundos: eleições majoritárias gerais a cada cinco longos anos, com o massacre das minorias.

Permitir a inscrição de candidaturas avulsas – havendo exigências prévias de alguma representatividade, como o programa de Marina já ressalta, as candidaturas avulsas são um ganho para a riqueza da representação, e até para ajudarem a forçar os partidos à mudança. Mas salta aos olhos que essa proposta adequada de diversificação contraria as outras quatro, discutidas acima.

Propor mecanismos de transparência nas doações para campanhas eleitorais – bem, uma proposta vaga assim não permite avaliação. Mas vale à pena ressaltar a covardia do programa nesse ponto, pois esse é um dos temas centrais da nossa crise de representação. Certamente a vaguidão decorre de que não há unidade dentro da coligação sobre o tema, o que torna alarmante a clareza das primeiras propostas, pois é sinal de que a coligação está unida na reação.

Para além das propostas desastrosas, a reforma política do programa de Marina apresenta equívocos que o palavrório não esconde.

Primeiro equívoco: ao constatar o óbvio, que a maioria da sociedade quer mudar nossa dinâmica política, o programa faz a correspondência errada entre querer mudar e querer participar. Não há evidência dessa suposta demanda reprimida por participação. Pelo contrário, as manifestações do ano passado mostraram quão poucos somos os que nos dispomos a participar e quão efêmero é esse nosso impulso. A demanda é por uma representação que responda aos representados, e essa correspondência não será alcançada nem pelas propostas de Marina, como vimos, nem pelo rogo aos políticos para que tenham vergonha na cara, ou pelo apelo para que venham fazer política cotidiana, sem remuneração, cidadãos cuja luta pela vida não deixa tempo sequer para ajudar o filho com as tarefas da escola.

Segundo equívoco: a essas ideias aduladoras de participação, o programa junta a proposta “muderna” (claro) de consultas diretas com base em recursos tecnológicos, como se consulta fosse o mesmo que a participação propalada (outra falácia). Mesmo que fossem a mesma coisa, consultas são eventos esporádicos não porque falte tecnologia para realizá-las, mas sobretudo porque uma consulta política numa democracia requer duas preliminares: que os perguntados conheçam o tema em questão e  que os perguntadores tenham legitimidade para fazer a pergunta, situação ótima rara de alcançar, cheia de meandros cabeludos. Em outras palavras, não cabe tratar a tecnologia como a solução para a “participação”, pois as complicações da consulta popular são muito anteriores ao ritual da consulta propriamente dito – não foi por outra razão que surgiu a representação, que significa “estar no lugar de”.

Um sistema de consulta direta empregado amiúde trará mais mistificação do que exibe a pior das representações: os perguntadores de plantão irão dirigir a “participação” via consulta, com todas as implicações da sociedade do espetáculo, que será chamada a votar em meio ao lufa-lufa diário, em verdadeiras gincanas de opinião. E se, pelo contrário, as consultas não forem amiúde (como é mais provável que ocorra), os profissionais da política continuarão a tomar a maioria das decisões, agora protegidos por mandatos de cinco anos.

Assim como os ruralistas aproveitaram a demanda efetiva por aperfeiçoamento do Código Florestal para acertar e aprovar intra muros uma reação à proteção ambiental no Brasil, a reforma de Marina permite aos profissionais da traficância política instrumentalizar a demanda por mudança numa proposta de reforma política que é o oposto da mudança.

MARINA E DILMA EMPATADAS EM PRIMEIRO LUGAR

Carlos Novaes, 29 de agosto de 2014

(Aqui um video sobre a terceira via)

Acaba de ser divulgada mais uma pesquisa DataFolha. Marina aparece empatada com Dilma na primeira posição, ambas com 34%; Aécio tem 15%. Além de ter se distanciado ainda mais do terceiro colocado, Marina já aparece dez pontos à frente de Dilma na simulação de segundo turno: 50% a 40%.

Esses números novos tornam mais provável o que já se dizia em post anterior sobre pesquisa do IBOPE: a segunda vaga no segundo turno tende a ser disputada por Dilma e Aécio que, por isso, deverão intensificar o tiroteio recíproco nas próximas semanas, pois a consistência eleitoral e a velocidade em que se dá o crescimento de Marina, já isolada em primeiro lugar em São Paulo, deveria levar à conclusão de que ela já não pode ser alcançada pela artilharia de primeiro turno.

Esperemos por mais detalhes dos números da pesquisa.

PARTIDOS E PROFISSIONAIS DA REPRESENTAÇÃO

Carlos Novaes, setembro de 2013

Não é tão difícil constatar que o prestígio dos partidos não está em expansão em parte alguma no mundo, havendo situações de manutenção e muitos exemplos de declínio propriamente dito. Menos trivial é uma explicação razoável para o fenômeno. Uns dizem que as pessoas já não querem partidos porque eles não têm nitidez ideológica ou programática, diagnóstico que põe o problema lógico de que se há tanta gente querendo partidos ideológicos ou programáticos, eles deveriam existir fortes às pencas…Outros entendem que os partidos são por demais hierarquizados, embora quase todo partido que surge, por mais que trombeteie novidades, já venha com sua pirâmide de poder pronta, provida de altar e sarcófago.

Numa outra linha explicativa, há quem arrisque um palpite aparentemente mais radical: a crise seria da forma partido, que já não responderia às exigências políticas de nosso tempo, devendo ser substituída por outra coisa(¿). Mas, para que essa abordagem tenha alguma chance de parar de pé, é necessário que se defina a forma partido como sendo necessariamente aquela dos partidos que conhecemos e, assim, se condene à condição de velharia sem remissão toda e qualquer associação para organizar a ação coletiva na esfera pública política eleitoral. Encarcerada no dogma de que não se pode imaginar partidos diferentes dos que temos, a ação política eleitoral organizada já não seria possível, sendo necessário imaginar um outro mundo. Como essa opção vai ser muito demorada, talvez seja melhor fazermos um esforço para reconhecer que a forma partido não pode ser descartada, pois algum partido é, necessariamente, pelo menos nesse mundo, a única forma de organizar a ação política eleitoral daqueles que pensam de maneira semelhante o diagnóstico e as soluções para os problemas que nos atribulam na esfera pública.

Como no Brasil a legislação permite total liberdade de organização partidária, estamos com sorte: ninguém precisa se desculpar por querer um partido, pois ele pode ter a forma que quisermos e, assim, pode ser bem diferente de tudo o que conhecemos. Aflições com o tema são desnecessárias, salvo a ginástica exigida de todo aquele ou aquela que, apegada ao mando, e sem querer deixar o fluxo da moda, não assume o risco de desconstrui-la, preferindo por um pé em cada canoa: afirma a crise irremediável da forma partido; mas trata de hierarquizar e mandar no seu, que ninguém é de ferro.

Como quer que se apresentem partidos velhos e novos, o fato é que nove de cada dez críticos dos partidos no Brasil dizem, impertinentemente, que eles são fracos. E entendem essa suposta fraqueza como sendo, vejam só, ou o resultado da, ou a própria, falta de nitidez ideológica ou programática; ou a consequência de os eleitores darem o voto a indivíduos, não a partidos (esses mesmos que não são programaticamente atraentes…) . Feito o “diagnóstico” equivocado, os engenheiros institucionais passam a matutar uma engenhoca legal que nos dê, a um só tempo, partidos fortes, ideológicos e programáticos, como se qualquer uma dessas características pudesse brotar da vigência de alguma lei urdida para tanger o eleitor e não fosse necessariamente o resultado contingente de uma complexa dinâmica social em que as pessoas se interessem pela esfera pública política e, uma vez nela, venham a se reconhecer, talvez, em partidos assim.

O embaraço principal em que se metem nossos engenheiros resulta de que não há exemplo mundial a apontar. O mundo, em sua infinita diversidade, conhece todo tipo de arranjo entre sistemas eleitorais e partidários e, não obstante, padece dos mesmos males: baixa representação e responsabilização (accountability), com desprestígio dos partidos. Assim, por mais difícil que seja abandonar a atmosfera da invencionice institucional, o melhor é descer da jabuticabeira e buscar a causa do problema fora dos sistemas eleitoral e partidário. E, uma vez escolhida outra abordagem, a solução está na cara: o que há de comum a todos os países ditos democráticos, com os mais diferentes sistemas combinados, é a existência malsã de uma representação profissional, cujo lastro central é a prerrogativa da reeleição, quase sempre infinita, para os legislativos.

Além do que já foi dito sobre o tema dos profissionais da representação política em outros posts deste Blog, parece oportuno chamar a atenção — nesse momento em que mais uma busca por partidos “fortes” é empreendida entre nós, com a tentativa, dessa vez equivocada, de lei de iniciativa popular para o sistema eleitoral do pessoal da “ficha limpa” — para o fato de que uma das consequências da representação ter se tornado uma rotina de profissionais é a paulatina descaracterização das diferenças entre partidos. Ninguém mais parecido com um político de carreira do que outro político de carreira. Eles criam laços corporativos contra nós, eleitores, que somos mais e mais vistos como o problema. Além dos cacoetes comuns do próprio exercício modorrento da representação como carreira (ora vereador, ora deputado estadual, mais adiante deputado federal, etc), que corrompem diferenças “ideológicas” que fossem de esperar (e que só aparecem como artifícios de campanha ou ferramentas fajutas da luta interna), obter a reeleição contínua requer uma nova ciência, com suas respectivas técnicas, tecnologias e profissionais especializados, estabelecendo-se uma padronização em tudo ao avesso do que seria uma relação de representação por si mesma dinâmica, atenta aos ajustes ou às mudanças requeridas pela sociedade. Em outras palavras, o sistema político, enquanto sistema, se diferencia e se opõe ao mundo da vida, enquanto vida.

Se queremos que os partidos mudem, ainda que venham a continuar tendo as preferências que tem, precisamos entender que não devemos dar força a quem neles já tem poder de mando, como iria acontecer se déssemos a eles o conforto do voto em lista ou o dinheiro certo do financiamento público. Acabemos com a reeleição para os legislativos, obrigando os partidos a se abrirem para a sociedade de modo permanente, ininterrupto. Com isso, quem se interessa por política, e até contingentes porventura existentes de uma demanda reprimida por participação, ou irão buscar suas afinidades nos partidos estabelecidos, complicando a vida dos caciques que serão obrigados a se submeterem a uma dinâmica permanente de renovação; ou irão propor a criação de partidos novos. Num caso ou no outro, como resultado da renovação compulsória,  os partidos acabarão por apresentar diferenças significativamente mais nítidas entre si e haverá poucas chances de que se aboletem no poder interno os mesmos de sempre.

NEM DELEGATÁRIOS, NEM ABNEGADOS

Carlos Novaes, janeiro de 2012

 

Seja no parlamento francês, no Congresso americano, na Câmara da Patagônia, nas assembleias municipais inglesas, na Assembléia do Rio de Janeiro, ou nas Vilarias espanholas, o cenário é um só: os políticos estão de costas para os cidadãos.

Contra esse estado de coisas posicionam-se dois vetores de opinião mais salientes: de um lado, os que valorizam a representação, mas para quem todo o mal se resume à má conduta da maioria dos políticos; de outro lado, os que enxergam na prática abjeta deles evidências suficientes para defender a substituição do instituto da representação pela democracia participativa. Os primeiros vão buscar no paiol dos participacionistas instrumentos complementares à representação, como a convocação esporádica da consulta direta ao eleitor (plebiscitos, referendos, etc), pensando com eles se contrapor ao exclusivismo dos profissionais, mas sem livrar-se deles, até porque querem conservar os tido como bons profissionais; os segundos, partindo de que há uma abrangente energia potencial mobilizável, a seu ver indevidamente contida pelos mecanismos da representação, apregoam a ação direta contínua, em que as maiorias se ocupem permanentemente da coisa pública. Uns são reformistas demais; outros, revolucionários de menos e ambos não se dão conta de que estão a combater uma quimera com soluções ilusórias.

Quando os reformistas buscam preservar os políticos tidos como bons e se esforçam para oferecer estacas participacionistas aos mecanismos da representação existente, deixam escapar o essencial: o problema não está na prática dos políticos, a ser melhorada pela consulta direta esporádica ao eleitor, mas sim no arranjo representacional tal como o conhecemos e, pior, tomamos como sendo a representação.

Ora, o modelo político de que dispomos nas democracias atuais, baseado em políticos profissionais, que se esmeram em fazer carreira,  não é representação. Antes é a negação dela. Esse corpo de delegatários aos quais descuidadamente se deixou a possibilidade de eternização nos cargos eleitorais é hoje o principal obstáculo à representação dos interesses e preferências dos cidadãos no firmamento político. Dispondo do tempo, das conexões e dos recursos que permitem a qualquer um a busca e a defesa dos próprios interesses, esses delegatários voltaram as costas para os eleitores e há muito deixaram de representá-los, ocupados que estão com a própria reeleição e a consequente conservação dos benefícios que a condição desfrutada traz.

Contrapor a esse modelo, porém, a chamada democracia direta, como o fazem os participacionistas, é contraproducente. Ao fazê-lo, os bem intencionados reforçam os argumentos “realistas” contrários, pois é mesmo muito difícil convencer o eleitor médio de que a solução para uma política melhor é ele se incumbir das tarefas políticas no mundo contemporâneo — simplesmente não há essa imaginada demanda reprimida por participação, uma vez que, entre outras coisas, a vida de grande parte das pessoas adultas está repleta de obrigações e preferências, ambiente em que dedicadas atividades políticas cotidianas não têm lugar. Levá-las ao engajamento político equivaleria a exigir que trocassem sua vida por outra — o gasto e infértil projeto do homem novo.

Esse pré-requisito do homem novo é infértil e contraproducente. Infértil porque desloca as energias da busca do que as pessoas podem realmente fazer na esfera pública para aquilo que elas deveriam se tornar na vida privada. Contraproducente porque abre caminho para a entronização dos militantes abnegados da causa, já agora sacrificial  (“deixamos tudo para trás”, “somos soldados da causa”, etc), nos lugares de representação que as exigências de mediação jamais deixarão de impor aos movimentos de mudança, por mais calor que eles tenham produzido em seu momento de ápice. A todo pináculo de participação segue-se a acomodação, acomodação que requer alguma representação. Sem ter sido pensada e valorizada, a representação adquire dinâmica inercial, que é a pior, porque escoada do cansaço das maiorias abnegadas e sequiosa de hierarquia nova, saída das ruínas da hierarquia antiga e que acabará por ser ocupada pelos abnegados militantes sacrificiais…

A impossibilidade de reconduzir os poucos que são bons é o preço a pagar pela não recondução dos muitos que são ruins. Não é caro, especialmente se considerarmos que mesmo fora dos cargos de representação os bons sempre encontrarão meios de continuar na luta pelo bem comum.

Sejamos radicais, peçamos o que o homem médio pode pedir conosco: o fim da política como profissão! Com isso, teremos uma verdadeira representação, pois a troca permanente dos representantes, aliada às consultas diretas, permitirá uma dinâmica participativa que não procurará repudiar, mas antes se alimentará, das assimetrias nos graus de engajamento na esfera pública.

UMA MUDANÇA DE ALCANCE MUNDIAL

Carlos Novaes, dezembro de 2011

A insatisfação está em toda parte e o desafio é encontrar uma bandeira de mudança que possa trazer três reconhecimentos simultâneos pelos indivíduos interessados e a interessar: a mudança proposta não é uma quimera inalcançável, ela tem alcance mundial e, o mais importante, ela tem potência para alterar profundamente a ordem política que gera decisões no país em que cada um de nós vive.

Para não ser uma quimera a proposta de mudança não pode nem pretender mudar tudo de uma só vez, nem exigir de quem se engaja uma transformação completa de si mesmo. Querer mudar tudo de uma só vez é uma forma de criar as condições para uma mudança tão paulatina que ao final nem se sabe o que mudou; dar valor a quem se engaja segundo o que deixe para trás em favor da causa permite forjar vanguardas militares sacrificiais, mas afasta a maioria, para quem a vida é cansada, mas é boa.

Uma proposta de mudança para o mundo complexo e infeliz em que vivemos deve buscar aumentar o controle da maioria sobre o poder de alterar os códigos de direitos e deveres que nos regem e abandonar qualquer inspiração militar para lograr esse objetivo, reconhecendo como equivalentes todos os níveis de engajamento, sem que o empenho dos mais ativos gere direitos hierárquicos para eles. Engajar-se pela mudança não pode levar aos profissionais da mudança, do contrário só se reproduziria o circuito infeliz da política convencional, onde o engajamento na vida política leva aos profissionais da política.

O grande inimigo do poder da maioria para alterar aqueles códigos é o sistema político convencional, em vigor em todo o mundo intitulado de democrático e que contraproducentemente aparece como desejável nas sociedades que sequer desse arranjo malsão dispõem: não podemos olhar senão com reservas para quem almeja que a primavera árabe venha a se afunilar num sistema político que reproduza os das sociedades ditas democráticas: está mais do que na hora de abandonar a idéia de que as sociedades mais avançadas são a imagem especular do futuro das mais atrasadas. Os dias de hoje estão a mostrar como nunca antes que há a possibilidade de o impulso de mudança entre os relativamente mais atrasados se tornar o dispositivo para levar à mudança os relativamente mais avançados, desde que não se pretenda uma solução militarista que prefigura o “nós” e o “eles”.

O pilar de sustentação do sistema político convencional em todo o mundo dito democrático é a reeleição infinita para as instâncias legislativas, que permitiu aos mais dedicados rotinizarem o sequestro de poder inerente a toda representação, tornando sem efeito a representação em si mesma, uma vez que a maioria dos indivíduos não se reconhece nela. A função de representante não é uma profissão, mas a possibilidade de reeleição infinita empurrou todo o sistema para uma profissionalização que mineralisou a relação representante-representado e permitiu que o mundo político se autonomizasse como instância à parte.

Ao colonizar a representação, a reeleição infinita por muito tempo blindou a si mesma contra toda crítica eficaz, pois numa dinâmica política baseada no binarismo “amigo-inimigo” logrou dirigir os críticos para o lugar errado. A quimera da democracia direta faz a crítica errada da representação porque traz em si o germe militar do prêmio aos mais ativos, estando condenada a uma prática contraditória: como é impossível manter a maioria mobilizada permanentemente para o exercício da ação política direta, termina-se por instituir mecanismos de representação que por não terem sido valorizados em si mesmos, acabam inercialmente se apoiando na valorização do desprendimento militante enérgico de quem a tudo (ou quase tudo) abandonou pela causa: não há déspota nacional, liderzinho aboletado ou politiqueiro de província que não tenha brotado desse circuito rotinizador, o qual  repele precisamente os mais desprendidos, que se engajaram atraídos pela oportunidade de ação direta havida no início, mas que não tinham nenhum projeto de abandonar sua inserção no mundo da vida em troca de uma profissionalização no mundo dos políticos. Não é por outra razão que se diz que as revoluções devoram os melhores revolucionários.

Resgatar a representação do sequestro indevido permitirá que o mundo da vida flua  continuamente para o mundo político, pois os representantes de apenas um mandato levarão para ele o frescor da suas vivências, partilhadas com todo nós, e não terão instrumentos para se deformarem na busca pela eternização da condição de representante.

Um movimento pela transformação política do mundo só encontra razão de ser naquilo de particular que precisa ser transformado em cada sociedade específica. Em nossos dias, uma transformação política deve começar não pela economia, ou pelo meio-ambiente, mas pela política mesma. Obtendo-se aí uma mudança importante, os esforços de arregimentação para alcançá-la criarão motivações novas, dirigidas para outras mudanças. A bandeira pelo fim da reeleição infinita para os legislativos pode ser entendida, valorizada e defendida por qualquer cidadão que viva sob um sistema político convencional e veja a razão de seu sofrimento ou insatisfação no modo como hoje se dá a representação. Ao mesmo tempo, é uma bandeira que confere dimensão mundial às lutas nacionais por uma ordem política que dê alguma chance para mais liberdade e justiça. Por difícil que seja, a conquista dessa mudança é factível por meios pacíficos, com base em uma desobediência civil que ganhe as maiorias para uma inércia promissora: simplesmente deixar de dar o voto a quem já tiver sido eleito anteriormente. O passo seguinte é conquistar a proibição legal definitiva da reeleição para as instâncias legislativas de representação política.