MINISTÉRIO FACCIOSO PARA GERIR O ESTADO DAS FACÇÕES

Carlos Novaes, 05 de janeiro de 2023

Com + acréscimos na seção Fica o Registro, em 06/01

A corrupção com dinheiro público é um crime que pode ter consequências jurídicas e efeitos políticos. Com a vitória que o reconduziu à presidência da República, Lula obteve da maioria do eleitorado o direito a um esquecimento na esfera política: não é sequer razoável insistir sobre a corrupção havida em seus governos anteriores — a página jurídica já havia sido virada quando o STF reconheceu as arbitrariedades jurídico-estatais que Lula havia sofrido das tentativas fraudulentas de vinculá-lo pessoalmente à corrupção; a página política foi virada pelo voto: para a maioria, já não é legítimo insistir sobre a responsabilidade política de Lula pela roubalheira havida na Petrobrás, e em outras áreas dos governos que ele presidiu.

Logo, como figura central da política brasileira nesse período que se iniciou com as negociações para a vitória eleitoral de 2022, Lula terá de ser avaliado pelo que fez e vier a fazer daí em diante. Retomemos nossa conversa sobre o Estado de Direito Autoritário ajustando a pegada crítica para essa nova fase da sua crise de legitimação, que está a esconder-se atrás de uma aparente paz entre as facções, mas voltará a exibir-se com ímpeto, pois a luta entre as facções do Estado brasileiro tem fundamentos estruturais, a começar pela desigualdade.

No processo de montagem do seu ministério, Lula deu total consequência ao que já fizera no período eleitoral (como antecipei no último item deste texto aqui), deixando claro, na prática, que assim como não houve a construção de uma frente para derrotar Bolsonaro, tampouco haveria a montagem de um ministério frentista.

Chega a ser cômico acompanhar na mídia convencional as “análises” que deformam a realidade dos fatos para levar os incautos a crer que depois de ter vencido a eleição com uma suposta frente, Lula teria montado um governo supostamente frentista.

Relembremos que as adesões ao candidato Lula foram costuradas uma a uma, em acertos isolados que desenhavam, em termos discretos, a adesão a ele, não a uma suposta frente. A formação e o ingresso em uma frente teriam exigido reuniões abertas, nas quais as diferentes forças teriam de se apresentar como agrupamentos coletivos e dialogar em busca de pontos em comum — ora, na adesão a Lula o ponto comum foi Lula. Por isso mesmo, a suposta frente jamais contou com um programa que traduzisse seus fundamentos. Afinal, a elaboração de um programa teria exigido amplo debate de ideias, cara a cara, com aferição de interesses, numa depuração que acabaria no programa mínimo comum — para uma frente, teria de ter havido, por exemplo, um debate aberto entre os indígenas, os ambientalistas e o agronegócio que aderiram a Lula. Só que não. Escondidos atrás de uma inócua “defesa da democracia”, tirando proveito eleitoreiro daquilo que do macabro Bolsonaro podia ser exibido como espantalho, os frentistas chamaram de “frente democrática” um amontoado de adesões que, sabíamos, manteria sua forma apenas até a eleição.

Dando consequência a esse modelo, os ministros do governo Lula foram escolhidos um a um, em acertos desprovidos de solo comum que tenha relação com o que quer que possa ter motivado a maioria da sociedade brasileira a votar — na montagem de um governo desses, o solo comum é o interesse que as facções estatais têm no poder de Estado que puderem abocanhar.

Temos discutido neste blog as heranças paisanas e militares que a ditadura legou ao Estado de Direito Autoritário. A primeira evidência pública de facciosismo na formação paisana do ministério de Lula foi a novela em torno da indicação da conservadora Simone Tebet: como ela é figura menor tanto no facciosismo do agronegócio quanto no velho facciosismo do p-MDB, nem o agronegócio, nem o p-MDB chancelaram sua participação no ministério, exemplo da dinâmica que veio empurrando Lula a criar pastas para acomodar todo mundo. A novela de Tebet só foi superada como evidência facciosa pela nomeação da incontroversa Daniela do Waguinho para ministra do Turismo, acompanhada da ornamental capitulação de Marcelo Freixo, alegremente constrangido a se saciar com a presidência da Embratur e, coerentemente, a se filiar ao PT.

Na área militar, o facciosismo foi, dessa vez, mais explícito do que entre paisanos. Conhecendo o jogo de facções e estando à vontade nele, Lula, ao invés de aproveitar a fraqueza dos militares para tomar um rumo diferente àquele dos acertos que, lá atrás, inauguraram o Estado de Direito Autoritário, pelo contrário, não hesitou em recorrer a um “querido” de Bolsonaro para o Ministério da Defesa e, ainda por cima, engoliu calado e sem gesto toda sorte de desobediências e descortesias por parte dos milicos que se aninharam ao facciosismo ao qual Bolsonaro aderiu, no que foi acompanhado por seu obediente (de Lula) ministro da Justiça, Flávio Dino, que, mais realista do que o rei (ah!, o que já não devemos ao acomodatício oportunismo burocrático em que o PCdoB educa seus quadros!), tentou nomear para funções centrais do novo ministério figuras saídas do pior das facções militares e, ainda por cima, não viu crime e foi leniente com o que se passava nas imediações do QG do Exército, no DF.

E chovem aplausos ao espírito de frente da formação do governo… Coitados de teóricos como Marcos Nobre, que não só defenderam a frente, mas fizeram a ressalva refinada de que a frente deveria ser apenas para vencer, não para governar, o que exigiria um espectro menor de forças… Enfim, mesmo que frente tivesse havido, o governo já estaria formado muito além da frente, pois dela não teriam feito parte nem o União Brasil (antigos ARENA, PFL, DEM), nem as milícias, nem os milicos que procuram obter força facciosa apoiando-se em movimentações antidemocráticas às quais não podem aderir, mas tampouco entendem conveniente repelir.

E tudo isso em nome da governabilidade de um governo que teria sido eleito por uma frente para defender a democracia depois de ter presumidamente superado a polarização outrora fajuta entre PT e PSDB. Quem quiser se iludir que acredite que daí possa vir alguma transformação.

Fica o Registro:

06/01

– Hoje foi divulgado que um general brasileiro foi nomeado pelas Nações Unidas para comandar a Missão da ONU para Estabilização na República Democrática do Congo. Faço esse registro porque uma distinção dessas, com tudo que traz de vantagens em remuneração, carreira e prestígio, seria impossível se os militares brasileiros tivessem embarcado em alguma aventura golpista. A recusa deles em perder esse tipo de inserção internacional é exemplo do que expliquei neste vídeo sobre o mito do golpe, que tão tolamente assombrou a sociedade brasileira.

– Diante da repercussão pública das informações sobre a ministra do Turismo Daniela do Waguinho, Lula, num alinhamento indireto nada surpreendente com o governador do Rio, Cláudio Castro, saiu-se com uma formulação sobre lealdade que é filha do mais puro facciosismo: “Estarei apoiando cada um de vocês nos momentos bons e nos momentos ruins. Não deixarei nenhum de vocês no meio da estrada, não deixarei nenhum de vocês”. A sintonia Lula-Castro é mais um spot a iluminar o fato de que a despeito das muitas diferenças, o facciosismo estatal é o solo comum de quem chega ao poder de Estado no Brasil.

– E no melhor estilo “bola prá frente”, Lula ainda deu a entender que, por grave que seja, não vai olhar para o passado dos ministros, acrescentando que “quem fizer errado será convidado a deixar o governo”, e emendou “e se cometer algo grave terá de se colocar diante da própria Justiça”.

– Vale notar que, no mesmo discurso, Lula voltou a confundir a Política com a política dos profissionais, afirmando montar um governo “sem criminalizar a política”, como se a ação política fosse uma reserva de mercado de quem se dedica profissionalmente a ela; como se quem faz a crítica da política facciosa dos profissionais estivesse contra a Política.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *