ESPERNEIO DE IMPOTENTE

Carlos Novaes, 22 de abril de 2022

Com acréscimo em 23/04, em Fica o Registro

De blefe em blefe, Bolsonaro cavou com os próprios pés o abismo que tenta transpor pagando para ver, mas à beira do qual, com o decreto em favor de Silveira, acabou por atar mais uma pedra ao próprio pescoço. Afinal, desde que analisamos, por antecipação, o fracasso do 7 de setembro, o jogo de forças em que Bolsonaro já estava acuado se alterou de modo favorável a ele? Evidentemente, não. Nesse período, além de não ter agregado força nova às suas fileiras, ele tornou-se ainda mais dependente do que consegue comprar do Centrão, esse conjunto faccioso ao qual não interessa um ditador — pelo contrário, os maiorais do Centrão pretendem manter Bolsonaro marionete sua.

O alarido na mídia sobre “agravamento da crise”, “preparação para o golpe” etc servirá apenas como coreografia para mais um esperneio do besta impotente (mas que faz estragos — como o sujeito que brocha e, então, espanca a parceira). Na verdade, estamos a assistir o desenrolar da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário-EDA, que se agrava porque a presidência da República está ocupada por um desqualificado cuja vitória eleitoral foi possível em razão da crise mesma e cujo pendor delirante é suprimir do Estado o “de Direito” para entronizar-se como ditador.

A única possibilidade de Bolsonaro se sair vitorioso seria o STF entender como constitucionalmente adequados todos os efeitos do decreto que perdoa Silveira. Até onde vai minha compreensão do que se passa, isso é impossível. Mesmo que a constitucionalidade do decreto fosse incontroversa, as facções estatais adversárias de Bolsonaro não desperdiçariam essa oportunidade de fazê-lo beijar a lona. Mas o decreto é claramente inconstitucional por dois vícios de origem: (i) foi exarado para perdoar réu que sequer havia esgotado suas possibilidades de recurso e (ii) tem por beneficiário pessoa determinada, aliada política do presidente e condenada por crimes contra o próprio STF, o que fere a dimensão formal da ordem entre os três poderes.

Mas, se, a despeito do que foi dito acima, o STF recuar para aceitar uma solução de compromisso, Bolsonaro poderá ficar a meio caminho, escapando da lona, mas engolindo a derrota. Nesse caso, o STF aceitaria o perdão para a pena de prisão, mas manteria tanto a inelegibilidade do condenado quanto a sujeição dele às penas em caso de reincidência. Quer dizer, Silveira ficaria livre da prisão e da multa, mas não poderia ser candidato nem voltar a fazer declarações como as que o levaram à condenação. Essa solução serviria aos propósitos mais gerais da condenação havida, pois se tratava de fazer Silveira de exemplo contra os arroubos autoritários de outros. Afinal, seria especialmente ridículo se Bolsonaro viesse a tornar rotina decretos para perdoar apaniguados.

De modo que, mais uma vez, Bolsonaro terá de entubar sob gritaria uma derrota que deveria ter aceito em silêncio. A cegueira dele para a realidade que impõe esse desdobramento inescapável fica particularmente bem ilustrada com o fato de que ele não levou em conta o voto de André Mendonça, indicado por ele ao STF por ser “terrivelmente evangélico”. Bolsonaro levou adiante o decreto mesmo depois de Mendonça ter votado pela condenação de Silveira com base na sua autointitulada condição de “cristão”. Quer dizer, Silveira foi condenado também pelos princípios terrivelmente evangélicos de Mendonça, o que enfraqueceu de antemão o decreto que Bolsonaro premeditara, mas nem isso dissuadiu o besta.

Fica o Registro:

Em nota, o Clube Militar, essa ágora de democratas, repudiou a decisão do STF contra Silveira dizendo-a eivada do “intuito de cercear o sagrado direito universal da Liberdade de Expressão, fundamento pétreo de uma Democracia”… declaração que só pode arrancar gargalhada de quem conhece um pouquinho do papelão histórico desses milicos de pijama — querem revestir o fascista Silveira da aura democrática do ex-deputado Márcio Moreira Alves, cujo discurso na Câmara contra a ditadura, em 1968, foi vivido como inaceitável por eles, que levaram a ditadura a extremos de repressão, tortura e matança. Como sempre, àquela tragédia seguiu-se a farsa de agora: Moreira Alves por Silveira, Jango por Bolsonaro.

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