Carlos Novaes, 13 de setembro de 2021
Indicamos no artigo anterior como a segmentação dos apoiadores de Bolsonaro em agentes estatais (polícias, congressistas, militares) e agentes da sociedade civil permite observar na minoritária base bolsonarista o dilema do Brasil: de um lado, as minorias beneficiárias do Estado de Direito Autoritário; de outro, a insatisfação da maioria da sociedade com esse Estado. Esmiuçemos isso.
No caso dos bolsonaristas, as facções estatais pretendem, mesmo, é melhorar a situação privilegiada em que já vivem neste Estado, e, por isso, não irão se arriscar em aventuras golpistas; já a “sociedade civil” bolsonarista, que sofre como todos os demais as mazelas deste Estado, está movida pelo sentimento antissistema, e quer, mesmo, deixar este Estado para trás. O mesmo dilema brasileiro aparece na maioria que se opõe a Bolsonaro: há, de um lado, as facções estatais de oposição, empenhadas em preservar o Estado de Direito Autoritário, no âmbito do qual elas disputam entre si o privilégio para o exercício faccioso dos poderes institucionais; e, de outro lado, há a maioria insatisfeita da sociedade brasileira, cuja preferência pela democracia foi fraudada pelo Estado de Direito Autoritário.
Dizendo o mesmo de um outro modo: essa insatisfação generalizada contra o Estado de Direito Autoritário levou-o a uma crise de legitimação. A falta de lucidez da maioria da sociedade insatisfeita levou-a a se dividir na hora de buscar uma alternativa para essa crise, que ela vive sem ajuizar: uma parte, minoritária, quer a solução tosca e inviável de voltar ao Estado ditatorial; enquanto a parte majoritária prefere a democracia, mas não tem clareza de como avançar para um Estado de Direito Democrático. Contra ambas atuam todas as facções estatais, que querem, cada uma a seu modo, preservar o Estado de Direito Autoritário.
Como essa luta pela preservação se dá em meio a uma crise de legitimação, essas facções também se dividem: a minoria bolsonarista facciosa, que se nutre do sentimento antissistema para buscar melhorar posições dentro deste Estado (nas polícias e no Congresso, por exemplo), não pode deixar de tencionar incessantemente o sistema; já as facções não-bolsonaristas não só estão impedidas de reconhecer a crise de legitimação (afinal, este Estado é obra delas), como precisam fazer a maioria da sociedade acreditar que a preservação dele é do interesse dela — daí precisarem acreditar (ou fingir acreditar) que a ameaça golpista de Bolsonaro é real, o que leva ao engano/embuste da “defesa da democracia”, da preservação de um suposto Estado democrático de direito. Desse embuste/engano saiu o equívoco do “frentismo” e a confusão sobre as nossas instituições, que ora estão em pleno funcionamento, ora estão colapsadas e ora estão como que adormecidas. Quem bobear enlouquece lendo esse pessoal.
É nessa ordem de razões que Lula, em todo o seu contraste com Bolsonaro, é parte importante do problema, não da solução. Toda a movimentação do Lula tem se dado nos bastidores: ele acumula forças na arregimentação das facções estatais para só depois enfrentar a sociedade insatisfeita e sedenta por uma alternativa ao Estado de Direito Autoritário do qual Lula é, hoje, o mais notório defensor!
Lula realiza esse tour paparicado pelas facções (inclusive com vênias suas àquelas do golpe contra Dilma) porque elas o sabem detentor de 40% de preferência eleitoral, com potencial de 55% no segundo turno, situação que mostra fundamentalmente duas coisas: (i) que a maioria da sociedade continua desorientada em meio à barafunda das suas próprias insatisfações, e (ii) que os espertalhões da política profissional continuam a usar a franquia eleitoral-democrática, o voto das pessoas, para medirem-se entre si e definir quem vai comandar o exercício faccioso dos poderes institucionais a cada vez (um exemplo entre muitos: a distribuição facciosa do poder para auferir privilégios do exercício do mando na Petrobrás deu no que deu!). O máximo que Lula propõe é voltarmos a 2010, o que não seria desejável nem se fosse possível (por mais “saudável” que fosse a “nossa democracia” naquela época…).
Tudo isso quer dizer que nossos problemas estão fundamentalmente no Estado, não na sociedade. O problema está nas nossas instituições, não no nosso povo que, por mais desorientado que esteja, vem há décadas perseverando na luta pela democracia. Sendo de observar que essa desorientação se deve largamente ao tamanho da traição sofrida daqueles em quem depositou a sua confiança (leva tempo para achar um rumo novo). A perseverança pela democracia vem sendo solapada pela política profissional facciosa, que sequestrou a Política, tornou-a sua refém e se empenha para desautorizar a ação política independente, que rejeita a restauração e quer ir adiante.
Em chororô público, Guedes esta semana lamentou ter sido criada a Lei da Reeleição, alegando que o quadro que ela produz na política engessa, ano sim, ano não. as tomadas de decisão. Isto é, em ano de eleição nenhuma pauta substancial avança.
Já ouvi numa palestra sua, Novaes, que você defende o fim da reeleição. Se conseguíssemos derrubar esta lei, será que, elevando para 5 anos os mandatos do Executivo em todas as esferas, teríamos, ao menos em tese, melhor ambiente para tomada de decisões políticas? E se na metade do mandato houvesse um “recall” em que os eleitores pudessem ratificar ou substituir o governante, como ocorre no Estado da Califórnia, seria positivo para “a nossa democracia”?
Antes de mais nada, sei que o nosso problema político maior é de conteúdo, mas, será que mudando a forma, algo positivo poderia advir daí?
Defendo o fim da reeleição para o LEGISLATIVO. Não para o Executivo. Não vejo problema na reeleição para a gestão, vejo problema na reeleição para a representação. Leia meu posto SÓ 4-JÁ, ou um outro REPRESENTAÇÃO NÃO É PROFISSÃO.
Nosso problema político maior É DE FORMA, não de conteúdo. O centro do problema está na reeleição infinita para o LEGISLATIVO, sobrecarregando as expectativas de mudança no Executivo. As continuidades do primeiro vão de encontro ao mudancismo do segundo e o resultado é SEMPRE uma falsa crise. Há vários posts neste blog explicando esse modo de ver detalhadamente.
Quanto aos mandatos de 5 anos, por favor, leia minha análise por ocasião do lançamento da proposta de reforma política defendida por Marina Silva. Trata-se, a meu ver, de uma reforma REACIONÁRIA. Veja o artigo: Uma reforma política reacionária.
Quanto ao recall, acho uma incerteza contraproducente na gestão, embora possa ser interessante na representação. Por favor, leia meu artigo A POLÍTICA ENTRE A MEMÓRIA E O FLUXO.