O p-MDB, os Quatro Poderes e a Rua: encontro infausto

Carlos Novaes, 14 de agosto de 2015

 

Nos últimos dias, a “crise” política brasileira (para entender as aspas, leia o post imediatamente anterior) dá sinais de que vai encontrando sua saída em mais um arranjo propício à lógica de palácio, mas há incerteza quanto ao desenho final do favorecimento porque a lógica da rua ainda se faz ouvir (embora sem oferecer virtualidade emancipatória). A lógica de palácio se arranja porque o p-MDB (de Sarney, Renan e Temer) dá sinais de que vai permanecer na condição de quem dá rumo sem parecer que dá (ao contrário do que o voluntarismo desgarrado de Cunha pretendeu); a lógica da rua não apresenta virtualidade emancipatória precisamente porque favorece o arranjo de palácio, pois ao invés de ter como alvo a política profissional, escolheu como objetivo derrubar Dilma, uma meta coxinha, adequada a quem se dispõe a fazer papel de ativista café-com-leite, a ser sorvido, lentamente, pelos ocupantes do palácio. Mesmo que Dilma caísse, a lógica de palácio iria imperar, pois os partidários da presidente estão desmoralizados, embora não se deva descartar assim sem mais o quanto a desinformação possa levar o outro lado da rua a se perfilar em defesa dela… (a marcha das Margaridas, que homenageou Lula, teve, assim, o inconfundível perfume dos recados – e a foto em que aparecem o mesmo Lula, Renan, Sarney!, Temer e Jader Barbalho! apresentou, como contrapartida, a pose da alternativa de contemporização ao alcance da mão).

É justamente o temor do que pode vir do outro lado da rua que vai fazendo a luta interna no p-MDB pender para a tradição de só chutar bola parada. Como já vimos aqui, Cunha aflorou não por ter méritos inusitados de liderança, mas pela desmoralização do PT, que levou junto quase toda a legitimidade das bandeiras justas que fingia defender. Diante da desordem que essa desmoralização gerou no lado “adversário” (que, na prática dos profissionais, não era adversário coisa nenhuma, pois o PT era só mais um a disputar os mesmos poder e dinheiro), diante da desorientação, eu dizia, Cunha calculou que era a hora de dar um chutão na bola em movimento, e pôs na ordem do dia do Congresso dos profissionais um rol de temas conservadores recalcados pelo menos desde a Constituinte: a revanche do Centrão. Como o emparedamento crescente e sem trégua do petismo pela auspiciosa atuação do Judiciário na operação Lava Jato se somou à implosão do pacto do Real e às dificuldades do cenário internacional, o chutão de Cunha deu a impressão de que poderia atingir a meta, arregimentou a raia miúda da Câmara, ajudou a vetorizar o descontentamento geral em Dilma, e assustou os caciques tradicionais do p-MDB, que ficaram momentaneamente desorientados e levaram algum tempo para se reorganizar num campo atingido por todo tipo de inservíveis atirados pela platéia, revoltada, irada, decepcionada, mas sem direção emancipatória.

Desmanchando-se à luz do dia, o arranjo da nossa política profissional atada ao interesse empresarial grosso começou uma corrida contra o tempo para reencontrar um ponto de repouso. Para isso, a capacidade do establishment foi desafiada em três frentes, cada uma correspondendo aos três poderes da República: no Congresso, eles tiveram de avaliar se seus interesses estariam melhor representados na fuga para trás proposta por Cunha, ou num remendo no status quo, sem mexer em itens que não chegam a impactar diretamente seus negócios, sendo antes aspectos de ordem simbólica cujo peso material, embora não desprezível, não chega a ser imprescindível ao seu domínio neste momento; no Executivo, a escolha foi entre afastar Dilma ou permanecer com ela, sendo que em qualquer caso seus interesses estariam preservados: tratou-se de saber se os desconforto maior viria de desagradar a néscia rua que lhes é favorável ou de contrariar a não menos néscia rua que lhes é contrária; no Judiciário, tendo dado por perdida (em larga medida) a batalha da Lava Jato, eles se concentraram numa operação dupla: aprofundar a catarse, via quarto poder, da Lava Jato na direção de quem já está irremediavelmente queimado (a prisão do Dirceu já preso é o símbolo máximo) e abafar a operação Zelotes, muuuuiiiito mais grave do que o escândalo da Petrobrás, seja no volume do dinheiro desviado (os bilhões são, até aqui, realmente incontáveis), seja no espectro de envolvidos (pega o grosso do empresariado, inclusive grupos de mídia), seja na longevidade da retroação (pois não é de ontem que a coisa vem azeitada, e engraxando a todos).

O que estamos a assistir (e a ler!!) na mídia interessada é, assim, a concatenação domesticadora desses interesses nefastos, na qual estão zelosamente (de zelotes) empenhados “grandes” nomes da nossa política profissional (Lula, Sarney, Renan, Temer e FHC) e do empresariado nacional “sem os quais o Brasil não pode passar”… Ao que parece, as escolhas foram as seguintes: no Congresso, sacrificar a ambição de Cunha, embora dando a ele a oportunidade de se encaixar (se conhecemos o personagem, já sabemos o que ele fará), e rearranjar a lógica do palácio em torno de Renan e Sar-Tymer; no Executivo, ficar com Dilma, que depois de surrada (até e, talvez principalmente, por Lula e o seus) entendeu o papel destinado ao Dutra; e no Judiciário, como o juiz Sergio Moro não parece exatamente disposto a se enquadrar, se buscou garantir que o caso da corrupção no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), investigado na Zelotes, seguisse morno, sob obsequioso silêncio do quarto poder, a mídia, ainda que o juiz Ricardo Augusto Soares Leite tenha sido afastado sob a reclamação do MP de tomar várias medidas que prejudicaram o andamento do processo. Convenhamos, quando de uma situação como essa, a que eles vem chamando de crise, se alcança um resultado em que mesmo os anéis perdidos foram os do “adversário” mais conveniente, não dá para dizer que os caras não são profissionais!

Naturalmente, num arranjo tão manjado ficam a ver navios todos aqueles que sonharam voluntariosamente com algum protagonismo: Serra, contra quem o tempo age com especial  impiedade, fica a ver navios porque achou que estava de volta ao 1961 da sua juventude, só que dessa vez do lado “certo”… ; Aécio porque ainda não entendeu que protagonismo conservador não dá a ninguém o papel de liderança, ou, em outras palavras, Aécio não tinha entendido que se a “crise” é cachorra, a ele está destinado o papel de rabo; Cunha porque não percebeu que mesmo em palácios como os nossos, até avacalhação tem limite; a autointitulada “Frente de esquerda” porque pretende, a essa altura da história, ser porta-voz da morta e sepultada luta-de-classes, e a serviço do Lula… e, finalmente, ficará a ver navios a malta que vai à rua no domingo, pois o faz em vão — como trouxas, que são.

Fica o Registro:

– Quem parece ter sido o mais esperto dos reacionários nessa “crise” é o Alckmin: ganha no desgaste de Aécio e Serra, ganha porque desde o início viu as vantagens para si de Dilma ficar, e ganha porque sai afinado com os atores graúdos do establishment na perspectiva de 2018 — afinal, qual é o contingente dos que se importam, mesmo, com a mais recente chacina!!?. [acréscimo de texto de 15-08-2015].

– Por sugestão de mais de um amigo leitor, tornei o título do artigo mais fiel ao conteúdo.

6 pensou em “O p-MDB, os Quatro Poderes e a Rua: encontro infausto

  1. Carlos Novaes

    Eis o que escrevi e publiquei em 2009, quando Lula se fixava na candidatura de Dilma para sua sucessão:
    “Esse arranjo, a um só tempo autoritário e popular, tem levado alguns críticos a dizer que Lula repete Putin, o todo poderoso ex-presidente da Rússia. Embora a história política das duas sociedades se preste cada vez mais a comparações iluminadoras (escravidão até a segunda metade do século XIX, tentativa autocrática para sair do atraso, populismo presidencialista, oligarquização política corrupta, etc), Putin impôs Medvedev com duas diferenças fundamentais: primeiro, a condição explícita de que o próprio Putin continuaria em cena, e em primeiro plano, agora na figura de primeiro-ministro fortalecido com poderes subtraídos da presidência; segundo, uma maioria governista quase pétrea, sem contraste, no legislativo russo. Ou seja, como já não vai estar lá, Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja, Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o PMDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.”

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  2. eder

    Nao quis dizer contentar em ser mosca.Mas ser mosca,daquelas bem chatas,ate conseguir força suficiente para uma empreitada maior.Foi o que o pt nao fez.Antes de conseguir uma musculatura capaz de remover 500 anos doentulho de privilegios e desigualdades, preferiu correr pro abraço ao que outrora combatia e chegar ao poder mais rapido.E hoje nao é nem sequer a mosca , é parte integrante e indispensavel? da propria fera

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  3. Carlos Novaes

    Eder, não há NADA de fatalismo. Leia o texto imediatamente anterior a este que você comentou, oras! Ou então se dê ao trabalho de ler os textos dos links desse mesmo texto: entendo que no conjunto fica claro que eu me dou ao trabalho de propor uma alternativa, ainda que de realização complexa. Pessimista é você, que está pronto a se contentar em ser uma mosca!

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  4. Carlos Novaes

    Flávio, depende do que se considera “dar certo”. Afinal, o arranjo foi feito por cima, esses manifestantes entraram só como massa de manobra para Lula e que tais — como penso ter deixado claro no texto que provocou esse seu comentário. Não acho que o que está sob ataque sejam exatamente “valores progressistas” — esse pessoal amarrado às estruturas burocrática em que a autointitulada esquerda se entrincheirou está defendendo seus interesses, não “valores”.
    O Real só foi possível porque, em algum momento, gerou ganhos para todos, ainda que tivesse e cláusula pétrea de que os ricos não podem perder. Foi a esse conjunto que o lulopetismo aderiu explicitamente em 2002 e, por isso, tiveram o êxito efêmero (do tamanho do Real) que tiveram. Que os ricos tem a perder com a saída da Dilma parece claro, pois eles estão manejando para mante-la, como também espero ter deixado claro no artigo, oras!
    Agora, como a minha luta não é só contra os ricos, mas sobretudo contra a desigualdade, não posso deixar de ver que a queda de Dilma abriria as portas para um rearranjo reacionário sem precedentes (os ricos temem as consequências turbulentas desse rearranjo, por isso, fogem dele — eu não temo, eu estou certo de que esse rearranjo nos jogaria numa escuridão ainda maior). Assim, entendo como menos ruim que ela fique.

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  5. Flavio Pezzi

    Então as manifestações de sindicatos e movimentos sociais a favor de Dilma deram certo.
    Aqueles que sempre ganharam com o arranjo em torno do Real não se identificam com o movimento dos coxinhas? Esses teriam algo a perder com o impedimento da presidente Dilma?
    Concordo plenamente que não se trata de uma disputa no campo da luta de classes, mas acredito que os movimentos sociais se sentiram ameaçados e se viram obrigados a defenderem valores progressistas que estão sofrendo inúmeros ataques de segmentos conservadores.

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  6. eder

    Muito bom esse pessimismo dainteligencia.Mas pra cair no fatalismo é um passo e um grave erro.Gostaria de ver no blog o otimismo da açao.Porque fica parecendoque nada vale a pena ja que o futuro ja esta pintado e que tentar colocar suas cores no mundo é uma burrice. Nada mais antipolitico que isso.O efeito pratico desse discurso é o imobilismo.Veja: quem observa a situaçao da mulher no brasil vê toda a violencia fisica e simbolica,a disparidade de renda com relaçao aos homens,toda a questao religiosa e moralista que recae sobre suas escolhas e que apontam para um futuro repetindo o passado e no entanto mulheres resolvem agora mesmo a criarem um partido.Sao elas burras?Ja que a realidade indica a continuidade e ate o fortalecimento, vide o fanatismo religioso crescente,do machismo.Ou seja o pessimismo é importante para vermos as coisas com nitidez e o otimismo da vontade, do desejoserve pra continuarmos vivos nem que seja como ato de resistencia.Se nao temos força pra matar a fera bem que podemos ser a mosca a zumbir no seu ouvido

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