Carlos Novaes, 10 de julho de 2015
O que justifica a abertura de um processo de impeachment é a plausibilidade, no âmbito do rito legal, de que um crime tenha ocorrido, o que permite a quem julga decidir a sentença e a quem assiste entende-la, tendo todos ficado cientes dos passos que levaram a ela; no caso do linchamento o crime é sempre pré-suposto, e pré-suposto não porque necessariamente ele não exista, mas porque quem lincha age com base no furor que ritualiza a ira pessoal e não com base na evidência legal de fatos serenamente apurados.
No impeachment, independentemente das motivações de cada um há uma meta coletiva a ser atingida, que não se esgota no ato ele mesmo porque ela está além da pessoa julgada; no linchamento, cada um age segundo o que supõe ver e não visa outra coisa senão a pessoa martirizada. No impeachment, a ordem e a decência públicas ficam preservadas, mesmo para quem discorda do seu resultado; no linchamento impera a desordem que permite a cada um ser indecente à sua própria maneira para obter e regozijar-se com o resultado.
O ambiente social está sempre preenchido de energia. Essa energia dispersa tem fontes variadas, que podem ser benignas ou malignas. Um linchamento é sempre o resultado da vetorização perversa de uma energia dispersa que se fez maligna. Essa malignidade é sempre oportunista e se propaga na direção em que há menor resistência: sangue chama sangue. É o que está a se dar nos presídios do Brasil, superlotados de miseráveis.
De outra perspectiva, quem almeja uma transformação, ou uma mudança ou a realização de um interesse, por mais reles que seja, tem de lograr vetorizar a energia dispersa, ou parte dela, por menor que seja, no sentido do objetivo que quer alcançar. Arregimentações orientadas para o bem comum atraem energias benignas, mas, quando frustradas, podem liberar forças malignas, que não deixarão de linchar o alvo mais frágil. É o que está a se dar nas redes sociais do Brasil, superlotadas de pobres de espírito. Todo linchador chamado a se explicar tenta responsabilizar aquele contra quem objetivou a sua fúria, invocando para isso qualquer mazela que esteja ao alcance da mão.
Se o leitor me dá razão nos parágrafos acima, não pode deixar de estar tão repugnado quanto eu diante desse espetáculo em que vizinhos, colegas de trabalho, conhecidos, um ou outro amigo e até parentes, motivados pelos sentimentos mais primitivos e tão bem representados naqueles em quem votaram para presidente, para o Senado e para a Câmara Federal, transformaram uma sempre justificável discordância política nessa inaceitável danação contra Dilma, que vem sendo responsabilizada sobretudo pelo que não fez, não obstante os muitos e graves erros que cometeu (e nos quais não está sozinha).
O que está em curso no Brasil não é um processo de impedimento político segundo o rito legal, o impeachment, mas um martírio político segundo uma fieira de baixezas, um linchamento. A principal evidência da loucura em marcha é a repetição por onze de cada dez analistas do seguinte “diagnóstico”: a fragilidade do governo Dilma (criminosa ou não) é a causa do que se passa no planalto, no Congresso e no Judiciário. Quem propaga um diagnóstico desses tem as três características básicas de um linchador: não pensa, segue o enxame e se compraz na escolha do alvo mais frágil.
A imprudência de Lula ao indicar Dilma para a presidência da República esteve clara desde o início e exatamente nos termos em que se dá o malogro: ela não teve, como não teria sob quaisquer circunstâncias, condições de conter os apetites e mesmo arbitrar a luta por poder e dinheiro entre PT e p-MDB (coisa que não estou a dizer agora, depois de todas as evidências. Não. Eu o disse em 2008, como o leitor pode ver aqui). Também é verdade que a essa sua fragilidade política original Dilma somou uma incompetência surpreendente, pois se mostrou incapaz de entender até mesmo a natureza do pacto que preside. Nele, os ricos jamais perdem, os pobres só ganham quando for possível e a classe média é a fiadora dessa possibilidade: se faltam recursos para sustentar benefícios já dados aos pobres, a classe média cobre a fatura tendo sacrificada sua já sofrível qualidade de vida; afinal, numa sociedade desigual como a nossa não há como alguém ganhar sem ninguém perder, pois uma desigualdade dessa monta compromete a geração de riqueza nova na magnitude necessária a que todos ganhem enquanto se diminui para valer essa mesma desigualdade.
Como o p-MDB já nasceu sob as interdições à mudança dos que se beneficiam da desigualdade, como o PSDB forjou o pacto do Real, que deu nova versão a elas, e o PT aderiu a elas depois de descobrir o caminho das pedras, a sociedade brasileira não dispõe de ferramenta partidária para arregimentar a energia social na direção do desenvolvimento sustentável orientado contra a desigualdade: infra-estrutura, formação educacional, atendimento médico-sanitário e políticas sociais compensatórias são demandas sem defensor crível na nossa representação política profissional.
Enquanto o p-MDB investe na crise pela crise, pois é na sua irresolução que ganha tempo para uma nova laçada, o PSDB atua contra o que dizia acreditar apenas para colher da crise o que julga poder beneficia-lo, e o PT dá voz a bandeiras que há muito abandonou só para poder se safar da crise em que vê afundar a possibilidade de continuar a lucrar com a traição a estas mesmas bandeiras — nenhum dos três se importa com o sofrimento alheio.
É verdade que em sociedades desiguais não se arregimenta energia social sem sofrimento, mesmo quando se está orientado para o bem comum, pois o arranque para um novo estado de coisas sempre exige sacrifícios. O problema no Brasil é que a energia social, nutrida por sofrimentos para os quais não se atina um propósito senão gerar as condições para mais sofrimento, está dispersa na forma de descontentamentos vários, suscetível à ação de oportunistas e a alarmes de linchamento. Como temos visto, não tem faltado nem uma coisa, nem outra.
O que permitiu o surgimento espalhafatoso no proscênio da política brasileira desses personagens e dessas performances que antes habitavam o mundo das sombras foi a ruína do pacto do Real, cujo vácuo não apenas acionou o gatilho da implosão do PT (da qual o rastilho fora estendido pelos próprios petistas lá atrás, muito antes daquela carta de adesão ao pacto do Real), como também arrancou a fantasia democrática que escondia os tucanos, pondo a nu toda a sua avidez de poder (que já havia ficado clara pelo menos desde que eles lavaram as mãos na eleição para a presidência da Câmara federal) e ainda deu ocasião a que o Judiciário pudesse pescar robalos nas águas turvas de uma nação revolta sem propósito lúcido. Portanto, a fraqueza do governo Dilma, fenômeno derivado desse desarranjo geral, não pode ser dele a causa.
É esse desarranjo — que engolfa a todos, desorienta muitos e silencia por conivência, comodidade ou medo quem deveria estar a falar — que está a permitir a construção de uma nova ordem, rebaixada, retrógrada, orientada a obter via regimento interno e desfaçatez o que mesmo a precária dinâmica democrática da Constituinte não permitiu. São no mínimo irresponsáveis aqueles que celebram esse nefasto dinamismo legiferante do Congresso, como se a ação política pudesse ser desejável em si mesma, ao arrepio dos interesses que essa camarilha de profissionais representa.
Quando sair do transe maligno em que se encontra, quando tiver deixado para trás, mais ou menos estropiadas, as vítimas dele, a sociedade brasileira haverá de descobrir, não sem horror e vergonha, toda a extensão do mal realizado, e terá pela frente a tarefa ainda mais penosa de ao menos mitigar o comprometimento do nosso futuro que toda essa insânia em curso está a produzir.
Concordo com os argumentos formulados pelo artigo. A crise não é da Dilma, mas do sistema em seu conjunto, das alianças de classe propostas desde o Real e, numa relevante particularidade, da representação política aristocrática (uma casta) que se formou neste país. Mas Dilma tem responsabilidade particular na crise, pois ocupa a presidência da república num país que tem um presidencialismo bastante forte (imperial?), com vasta tradição. O fato de ter feito um discurso à esquerda, sobretudo no segundo turno, e, depois de empossada, ter dado uma virada de 180 graus, deixou suas bases como cego em tiroteio e assanhou o Centro e as direitas. Vejo com preocupação o linchamento que v. bem denuncia. Vivemos dias sombrios e o futuro não é nada claro. Saudações amigáveis, Daniel