NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 4 – Deu na Folha de hoje – entrevista da segunda

Carlos Novaes, 17 de agosto de 2015

Dando continuidade à minha mania de responder ao que não fui perguntado, leia abaixo minhas respostas à entrevista que a Folha fez com o Sr. Carlos Pereira, cientista político, que vê razões para impeachment e diz que o país não deveria desperdiçar a “oportunidade de mudança”…

Folha – Qual é o seu balanço sobre os atos deste domingo?

Pereira – Vejo como um movimento. Algo que começou de forma difusa, sem foco, com uma insatisfação generalizada. A sociedade não conseguia identificar qual era a fonte desse mal-estar. Uma classe média que viu a situação melhorar na vida privada, renda, crédito, mas não viu melhoria no serviço público. Isso vem desde 2013. Agora, fica claro que a população identifica, como a fonte dessa insatisfação, a presidente Dilma, o PT e, o mais surpreendente, o ex-presidente Lula. A mobilização pelo impeachment tem de ser ininterrupta, é de longo prazo. Nessa perspectiva, acho que foi muito bem sucedida.

NOVAES – Não dá para querer, ao mesmo tempo, aumento do consumo privado, melhoria nos equipamentos e serviços públicos e manter a desigualdade, ou seja, o modelo que permite aos ricos concentrar riqueza. As camadas médias pagaram os custos do pacto do Real: aumento do consumo pessoal e familiar com o sacrifício dos serviços e equipamentos públicos, pois aquele aumento tinha de sair de algum lugar, já que o pacto prevê que os ricos não podem perder. Ao identificar Dilma e Lula como responsáveis pelo seu infortúnio a classe média, como sempre, faz o serviço pela metade, poupa o PSDB, o p-MDB e todo o establishment político e, por isso mesmo, vai na direção mais fácil, tirar Dilma, sem pensar nas consequências.

Em São Paulo, a manifestação reuniu 135 mil pessoas. Mais que abril, menos que março.

Pereira – O número é importante. Mas não só. Hoje, fruto do resultado do julgamento do mensalão e mesmo do petrolão, que vem se desenvolvendo muito rapidamente, há uma expectativa muito positiva em relação à Polícia Federal, o Ministério Público, o Judiciário. Então talvez a eficiência desses mecanismos de controle tenha arrefecido a manifestação. Uma delegação do eleitor aos órgãos de controle, é uma sofisticação.

NOVAES – O número foi expressivo, isso não pode ser negado. Atribuir uma suposta diminuição na participação a uma delegação às instituições exige pesquisa muito bem feita, de que não disponho.

Desde o apelo do vice Michel Temer por união percebe-se uma movimentação de setores empresariais pedindo moderação. Como avalia?

Pereira – Percebo uma tentativa de construção de um acordo para sair da crise com o argumento da necessidade para que as elites sejam responsáveis, evitem o aprofundamento da crise econômica. Há notícias de reuniões do presidente da Globo com líderes do governo e da oposição com apelos sobre esta suposta responsabilidade. A pergunta fundamental hoje é saber o que de fato significa ser responsável. A história oferece janelas de oportunidade para mudanças. Identifico que estamos vivendo uma dessas janelas. O Brasil sendo chamado a decidir se quer se transformar mesmo em um país desenvolvido. Todos os países que alcançaram padrão de desenvolvimento reforçaram seu estado de direito e suas instituições democráticas e de controle.

Essas escolhas não são destituídas de custo. Entretanto, quando sociedades optam pagar esse custo de curto prazo são beneficiadas no futuro. Portanto, ser responsável hoje é não compactuar com comportamentos oportunistas. Transigir sob o argumento de caos político e econômico acarretará maiores custos, pois estará se alimentando um cinismo cívico de que tudo vale.

NOVAES – Tratei no post imediatamente anterior desse acordo para sair da “crise”. Esse acordo está propondo o certo (a manutenção de Dilma) pelas razões erradas (salvar o sistema político tal como é). Não há janela de oportunidade de mudança nenhuma porque a “crise” não traz alternativa virtuosa, auspiciosa, e  muito menos, claro, emancipatória. Não há alternativa virtuosa porque os que podem substituir Dilma são piores do que ela; não há alternativa auspiciosa porque a queda de Dilma não dá espaço a nenhum avanço institucional transformador; não há alternativa emancipatória porque a queda de Dilma se daria num momento de agudo recuo e desorientação das forças transformadoras que ainda terão de se realinhar no país – o momento é de e uma ofensiva conservadora e reacionária, que a queda de Dilma premia.

O moralismo do Sr. Pereira é primário. Nem vale à pena discutir. O que interessa numa hora dessas é identificar a que, e a quem, as forças da “mudança” estão a favorecer… é aí que se tem de engastar a discussão “moral”.

Na sua opinião, há razão para abertura de um processo de impeachment contra Dilma?

Pereira – Acredito que sim. Há vários elementos que suscitam a formação de maioria no parlamento pelo impeachment. Lembrando que é um processo político. Há vários indicativos de crimes eleitorais e de responsabilidade. O Tribunal de Contas da União está em vias de analisar as contas. Pareceres preliminares foram muito críticos. O relator apresenta consistência em suas declarações. Vários economistas mostram que esse comportamento de maquiar contas foi recorrente. E as evidências de delações. Ainda não se sabe o conteúdo de tudo. Mas o que eu depreendi da decisão do procurador-geral para não abrir inquérito contra Dilma é que não foi por falta de evidências, mas porque isso foi estranho ao mandato atual. E a interpretação que ele faz é que só é suscetível ao impeachment quando o delito é cometido no mandato em vigor.

NOVAES – (ver adiante meu sintético apanhado geral dessas tergiversações)

Mas isso está expresso na Constituição, não é bem uma interpretação.

Pereira – É, exatamente. Mas há juristas de muito calibre que têm interpretações distintas, como Ives Gandra, Miguel Reali. É aberto para o debate.

NOVAES – (ver adiante meu sintético apanhado geral dessas tergiversações)

Então qual é, exatamente, o crime de responsabilidade cometido pela presidente?

Pereira- Pois é. É muito difícil dizer. É uma interpretação política. Collor sofreu impeachment sobre crime de responsabilidade, mas foi absolvido da acusação de crime comum no STF. Então mesmo havendo divergência de interpretação entre instâncias de deliberação sobre um processo de impeachment, o impeachment ocorreu. E para que a decisão alcance um grau de legitimidade, quanto mais aderente a acusação alcançar densidade empírica, mais substancial será o processo.

NOVAES – Pois é… O pobre Sr. Pereira, sendo só um pouquinho apertado pelo jornalista, já não tem como esconder que o que o orienta é uma mera preferência política pelo afastamento de Dilma… Onde está, agora, seu aparente apego às “instituições da nossa democracia”? Precisa dizer mais?

No caso, o impeachment teria que ser aberto pelo presidente da Câmara. Mas Eduardo Cunha é acusado de receber US$ 5 milhões oriundos da corrupção. Há legitimidade nisso?

Pereira – É uma contradição incrível isso, né? É interessante isso. Como o presidente da Câmara e o do Senado [Renan Calheiros] são investigados, o jogo adquiriu um grau de sobrevivência individual desses atores. Assim, a estratégia dominante tem sido tentar vulnerabilizar ao máximo a presidente. É para sinalizar a ela não tem saída a não ser que esses atores também sobrevivam. Mas eu acho que o Executivo não entendeu isso e adotou uma estratégia de isolamento do Eduardo. Aí a crise se aprofundou.

O surpreendente é isso que você diagnosticou: quem tem a capacidade de abrir a investigação é um outro acusado, com evidências fortíssimas. Nesse cenário, acredito que aumentam as chances do impeachment. Meu diagnóstico é que ou esses atores sobrevivem juntos ou morrem juntos. Não vejo como um sobreviver e outro morrer.

NOVAES – Não, Sr. Pereira, não é uma contradição, muito menos “incrível”. Chegamos ao centro da questão: onde o Sr. Pereira vê contradição, não há contradição alguma. Ele precisa de uma contradição porque a equação dele não fecha, pois ela gira em falso em torno da tese do impeachment, cujos resultados vão, necessariamente, beneficiar gente pior do que Dilma! Não há na “crise” atual a oportunidade de a sociedade brasileira se livrar dos três grandes articuladores do pacto e da corrupção que a infelicitam, o p-MDB, o PT e o PSDB, junto com seus aliados. Em outras palavras: o grande problema é que a “crise” não é uma crise para valer! A “crise” é um desarranjo no establishment e o impeachment é só um freio de arrumação. Não há alternativa a Dilma melhor do que Dilma para quem quer ir além do pacto do Real, para quem quer enfrentar a desigualdade e a corrupção. É certo que Dilma não vai além do pacto, nem enfrenta a desigualdade, mas tirá-la é recuar ainda mais nessas frentes. O melhor é ficarmos com o calendário de 2018 e lutar para reunir forças em direção à transformação na sociedade. Como tirar Dilma é só um freio de arrumação na política como ela é, os grandes empresários, com razão (da perspectiva deles, de não fazer marola desnecessária na condução da ordem que os favorece), não vêem necessidade de  correr os riscos da instabilidade que essa freada pode gerar. Eu, ao contrário deles, não tenho esperanças de que essa freada possa trazer algo de fecundo contra os interesses deles e, assim, a contragosto, tenho de reconhecer, embora com ânimo contrário a eles, que tirar a Dilma é pior.

A política nacional é marcada pela polarização PT-PSDB desde 1994. Podemos esperar algo diferente no próximo período?

Pereira – Acho que sim. Estou muito pessimista com o futuro do PT. Não acho que o PT vai acabar, até porque tem uma burocracia grande e muito distribuída que depende dessa estrutura partidária. Mas vai haver uma progressiva migração. Alguns vão criar novos partidos de esquerda. A velocidade disso vai depender diretamente da extensão das punições judiciais.

NOVAES – Sim e não. Embora o PT esteja liquidado, ainda poderá vegetar na força da máquina, como eu já disse aqui. Se Dilma vier a cair, as possibilidades de Lula ter alguma chance em 2018 (quando pensadas em relação à situação atual dele) aumentam um pouco, pois haverá um governo não aliado a criticar (supondo que o Lula vá para a oposição!)… Se ela não cair, a recuperação econômica, se ocorrer, pode recolocar Lula no páreo. De um modo ou de outro, não se deve descartar um sacrifício da marca PT via transfiguração numa autointitulada frente de esquerda, encabeçada por Lula, etc… Em suma, a ausência de um vetor transformador faz com que tudo gire sem rosca e tudo pareça possível. Mas nem tudo é possível: não há chance de se tirar alternativa transformadora da situação.

E o PSDB?

Pereira – O PSDB, de certa forma, está de camarote nesse jogo. Vai tentar pegar o espólio disso. Teve um candidato muito competitivo em 2014 e, de acordo com as pesquisas, tem uma dianteira sólida agora. Então o PSDB corre menos riscos. Acredito que o jogo vai ficar entre PSDB e PMDB na próxima eleição. Daí porque, no caso de um impeachment, vejo a dificuldade do PSDB em apoiar um novo governo [com Temer]. O PSDB já começa a identificar o PMDB como seu principal rival. Mas vai ser muito pouco crível que o PSDB não participe de um governo de transição sob a liderança do PMDB.

NOVAES – Primeiro, o PSDB não teve um candidato “muito competitivo” em 2014. Aécio só virou preferência depois que o eleitorado que queria mudança viu que não tinha para onde correr. Ou seja, a “competitividade” de Aécio foi decorrência da mesma falta de alternativa que estamos vivendo nessa “crise”, e isso não se dá por acaso…

Segundo, no caso da queda de Dilma, um governo Temer teria, hipoteticamente, três opções: 1. formar um governo do p-MDB com o PT, deixando tudo mais ou menos como está, mas trocando as “ênfases” na ocupação dos cargos de poder; 2. formar um governo do p-MDB com o PSDB, rearranjando totalmente os ocupantes dos cargos de poder entre estes dois partidos, mas para fazer a mesma política de sempre; 3. formar um governo do p-MDB com o varejão do Congresso, com PSDB e PT sendo buscados pontualmente. Ora, não precisa ser muito esperto para ver que qualquer uma das três opções é pior do que Dilma…

Terceiro, permitam-me perguntar ao Sr. Pereira: governo de “transição” de onde para onde?

A oposição é cobrada por estar votando contra medidas que ela defendia só para atrapalhar Dilma. Como vê isso?

Pereira – Quem faz essa crítica não percebe que para a oposição, numa situação de polarização, não há espaço para um comportamento responsável no curto prazo. Ser responsável hoje significa aumentar o tempo que vai continuar na oposição. A estratégia para a oposição é vulnerabilizar ao máximo a presidente. E sabendo que ela está muito constrangida do ponto de vista fiscal, e sabendo que a probabilidade dessas medidas passarem é baixa, pois, em última instância, a oposição sabe que ela vai vetar, o que a oposição está fazendo é o jogo de transferir a responsabilidade do veto à presidente.

NOVAES – quem está sendo cínico e aceitando o cinismo, agora!? A polarização é falsa, pois eles defendem a mesma política desde pelo menos 2002!! Mas o Sr. Pereira não está sozinho: além dessa ideia esdrúxula de que é aceitável ficar contra suas próprias posições, nessas últimas semanas tem sido comum encontrar na imprensa apoio à tese tucana de que não cabe à oposição oferecer caminhos, que a crise é do governo. Ou seja, eles, agora, se conduzem como se fossem revolucionários e esquecem que uma oposição liberal tem, sim, de oferecer caminhos. ATENÇÃO: não é que os tucanos não tenham caminho a oferecer, é que a alternativa deles tem a mesma orientação (por isso o país está empatado, não dividido, como já discuti aqui), só que mais danosa, pois eles tem preferência por soluções mais duras, como já discuti aqui.

Mas não é esse o tipo de comportamento que, no fim, vai distanciar ainda mais os eleitores? Isso é um cinismo. Não seria, com sinais invertidos, um estelionato da oposição?

Pereira – Não resta dúvida. O ponto é saber até onde a oposição pode ir com isso. Até quanto o custo gerado para a presidente compensa o custo da perda de grau de legitimidade com a sociedade em função de fazer isso? Mas queria destacar que a opinião pública pode não estar vendo esse componente estratégico, vê só o componente de princípios.

NOVAES – O jornalista fez picadinho dele. É nisso que dá misturar preferência com análise ruim!

1 pensou em “NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 4 – Deu na Folha de hoje – entrevista da segunda

  1. eder

    Suas analises são desmistificadoras. Teria muito gosto em ler um apanhado sobre as experiencias autointituladas progressistas dos paises vizinhos.Especialmente a situaçao chilena, onde bachelet passa por um momento parecido com a dilma

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