A alternativa pede você no olho da rua, não de olho na TV
Carlos Novaes, 04 de maio de 2016
O domingo é um dia de encenação, suspendem-se os conflitos familiares, adia-se (para segunda-feira) a vigência dos problemas lá fora. Não deve ser por outra razão que a TV reservou para o domingo os programas de entretenimento mais caprichados, com seus homens de palco mais tarimbados, que são transmitidos ao vivo para compor melhor o quadro em que realidade e ficção aparecem na dose certa, isto é, de modo a que a segunda prevaleça sobre a primeira. As performances dominicais são feitas para escamotear o que está em jogo, ainda que elas mesmas sejam expressões da realidade, diluída na teatralização de sentimentos e motivações, não obstante, autênticos. Os deputados gritaram em defesa da família naquele domingo inesquecível porque suas intenções públicas são impublicáveis, não obstante eles tenham como autênticos para si os sentimentos privados que colocaram a serviço da ficção.
A se debater em meio às rotinas propriamente políticas do legado paisano da ditadura, a sociedade brasileira tem nos domingos televisivos rotineiros a reiteração por assim dizer cultural desse legado, não apenas na versão mais retrógrada de um Silvio Santos perturbado, com tiques de déspota senil e aparentemente inofensivo, a simular harmonia familiar enquanto arruína o negócio dela; mas também, e sobretudo, com Fausto Silva, em seu Domingão do Faustão, um programa a que as pessoas assistem não obstante estarem sempre prontas a declarar desapreço pelo apresentador. Qualquer um que venha pesquisando TV profissionalmente sabe que Fausto é visto pelo público como alguém que “não deixa os outros falarem”, sendo frequentemente classificado como “autoritário”, “grosseiro” ou “rude” pelo telespectador que, ainda assim, continua a assisti-lo: abandonado a rotinas, esse telespectador imagina encontrar no palco do “Domingão” a “vida real” do elenco ficcional da Globo; mais ou menos como o eleitor que depois de ter votado para o legislativo segundo rotinas sonhou encontrar na sessão dominical do impeachment um representante à altura dos desafios da hora presente.
Ora, se no “Domingão do Faustão” o telespectador escolhe se distrair da realidade enquanto simula para si mesmo um encontro com ela; no “Domingão do Cunha” o eleitor foi em busca da realidade e não teve como dissimular o encontro com o resultado das suas próprias escolhas distraídas*. O “se vira nos trinta” dos deputados repugnou a todos, mas, como não poderia deixar de ser, embalado que fora pela platéia tola, o show prosseguiu e, agora, estamos às vésperas de repetir a história pela terceira vez: a primeira como tragédia, com Vargas; a segunda como farsa, com Jânio; e a terceira como pornochanchada, com Temer. Vargas morreu em 1954 para evitar um golpe militar, mas só o adiou; Jânio renunciou para dar um golpe paisano, e abriu espaço para o golpe militar de 1964; Temer urdiu um golpe paisano cujo desfecho está em aberto — cabe a nós, nas ruas, pô-lo para fora e iniciar a consolidação de uma democracia que faça dos golpes coisa do passado.
Depois de termos seguido tão de perto o remanchar da conjuntura, marcada, de um lado, pela vivacidade equivocada das ruas e, de outro, pelo exercício faccioso dos recursos de palácio, não há porque apostar no jogo institucional tal como ele se apresenta. Não há lições incrementalistas a tirar desse último golpe. Assim como não iremos enfrentar a desigualdade com uma aposta incrementalista em políticas como o Bolsa Família ou o Minha Casa Minha Vida (por mais que esses programas tenham levado benefícios aos pobres, e levaram); tampouco iremos alcançar a consolidação democrática na forma de um Estado de Direito Democrático com uma aposta incrementalista nas práticas dessas instituições que nos foram legadas pela ditadura paisano-militar (por mais que elas se mostrem melhores do que no período da gestão dos militares), afinal, elas estão a nos conduzir à estaca zero do fim da ditadura: mais uma vez, um vice inconfiável e sem voto (Sarney/Temer) assumiu um governo mambembe do p-MDB voltado a fazer negócios em prol da manutenção do status quo.
Para lutar contra a desigualdade temos de ir além do incrementalismo social, impondo aos muito ricos perdas que se mostrem produtivas para o desenvolvimento da sociedade em seu conjunto; para alcançarmos um Estado de Direito Democrático temos de ir além dos marcos institucionais atuais, diminuindo seu pendor faccioso pelos interesses dos ricos. Para abrir caminho à construção de novas instituições precisamos nos lançar às incertezas da inventividade do nosso povo, chamando-o às urnas em nova eleição para os cargos federais: deputado, senador e presidente. Para realizar essa nova eleição será necessário arrancar do Congresso uma alteração constitucional que permita convoca-la e na qual, talvez, possamos nos livrar dos políticos profissionais que colonizaram a representação, dando fim à reeleição para o Legislativo, nos termos em que já tratei em vários posts neste blog, sobretudo aqui, aqui e aqui.
Um desfecho assim é improvável, mas não impossível, pois está a se abrir uma conjuntura de crise especialmente avessa a acomodações – se só com base na inventividade das ruas consolidaremos a nossa democracia, temos de abandonar nesse chamado todo desenho totalizante para a mudança e, por isso mesmo, o que quer que tenhamos nomeado de socialismo pouco tem a fazer aqui. Se um outro mundo é possível, ele só o será se for outro também em relação aos mundos anteriormente sonhados.
Nota: * – Tratei aqui dessa imbricação convergente, sem estrategista ou conspiração, entre os interesses da Globo e do p-MDB.
Novaes, apesar de achar extremamente pertinente e necessária a ideia de eleições gerais neste momento, não se corre o risco de substituir estes profissionais da política que lá estão, por outros , igualmente profissionais?
Bem, risco há por toda parte… e todo risco deve ser comparado à certeza que subsistirá ao não se correr o risco cogitado… Pense, Thiago!