Carlos Novaes, 30 de setembro de 2017
Venho tratando da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário. Apartado da sociedade, a qual, por sua vez, se mantém inerte diante dele por razões também já discutidas, o Estado brasileiro abisma-se em si mesmo enquanto não reencontra os fundamentos para o exercício estável da sua força – essa queda só acabará em uma de duas possibilidades: ou quando o Estado reencontrar a força bruta, numa nova forma autoritária (com ou sem eleições, mais provável com); ou quando o Estado brasileiro finalmente encontrar a sociedade, único fundamento para o uso legítimo da força. Venho acompanhando a deterioração da conjuntura, mas sem ânimo para escrever, pois a cada dia temos mais do mesmo, isto é, a cada dia se rearranjam as facções de ontem e/ou se arranjam novas, enquanto Temer não para de afundar, como indicam as pesquisas mais recentes.
Hoje resolvi escrever porque com a nova determinação da primeira Turma do STF para que Aécio se afaste do mandato, a mídia convencional vem trazendo como novidade a descoberta tardia de que o afastamento de Cunha, lá atrás, se deu ao arrepio da Constituição. Naquela altura, não se viu nenhum problema; agora, com Aécio, estaríamos vivendo uma crise entre os poderes da República, como se houvesse uma disputa entre os Poderes eles mesmos, entre as Instituições elas mesmas. Esse equívoco ao ajuizar a marcha da deterioração do Estado de Direito Autoritário deriva de dois erros básicos: primeiro, o de não enxergar a relação entre essa deterioração propriamente política e a desigualdade, como já discuti aqui e em muitos outros posts deste blog; segundo, o de insistir que construímos depois da ditadura um Estado democrático de direito. Ou seja, para quem lê os fatos da perspectiva confortável do establishment (de “direita”, “centro” ou “esquerda”) temos, de um lado, que a desigualdade é um problema de justiça social, e não entra na discussão da crise política como tal; de outro lado, como para esse pessoal nós já vivemos num Estado democrático de direito, crises institucionais não resultam da forma institucional, mas de maus procedimentos, a serem corrigidos pelas instituições elas mesmas.
Sustento que não há crise entre os Poderes da República pela simples razão de que esses poderes não estão alinhados uns contra os outros. O que há é uma crise de legitimação do Estado, diante da qual diferentes facções, transversais aos poderes, buscam firmar o pé para levar o Estado a dar um passo favorável a si mesmas. Daí a facção liderada por Temer e Gilmar, que conduziu Dodge à PGR, dando lugar a uma configuração de forças que desarranjou a facção não menos circunstancial que era liderada por Janot e Facchin. No Senado, por sua vez, em meio às disputas menores entre “situação” e “oposição”, se sobrepõem convergências facciosas contra as decisões ameaçadoras saídas do teatro de operações da Lava Jato. Dentro do Supremo, além de alinhamentos explícitos com o Executivo, há a atuação facciosa das Turmas, cada uma delas com seus aliados no Legislativo.
Como a marcha dessa luta de facções se dá ante a inércia da sociedade, a gestão pública prossegue como se legítima fosse. Não tem havido obstáculo à aprovação de “medidas impopulares” (muito fala da nossa letargia interna o fato de que a única medida danosa de Temer revogada tenha sido a que encontrou forte reação contrária internacional), o que nos vai conduzindo ao pior dos mundos, pois além do dano gerado pelas medidas em si, há o encorajamento de novas investidas e, com o êxito delas, o surgimento de novos arranjos faccionais. Com a crise de legitimação do Estado, já não se trata de se “organizar” para obter seu quinhão, como fizeram partidos, sindicatos, ONGs, no curso desses trinta anos em que construímos nosso Estado de Direito Autoritário. Não. Temos, agora, na crise dele, algo mais fluído e deletério: arranjam-se facções ocasionais, sem propriamente organização, para obter decisões favoráveis. De costas para uma sociedade inerte tudo é permitido.
Uma evidência de que a crise se aprofunda é o ressurgimento público da opinião dos militares, o que não deve ser isolado da desenvoltura com que eles vêm sendo mobilizados por Temer para tratar da situação criminal no Rio. Deveria estar óbvio de que não se trata de um problema entre civis e militares.
No caso da opinião, enquanto o general Mourão (punido em 2015 com a perda do Comando militar do Sul justamente por dar opinião política) respondeu recentemente a uma pergunta sobre a situação política do país defendendo aberta e impunemente um golpe militar; em contrapartida, dias depois, o general Edson Leal Pujol, justamente o substituto de Mourão no Comando militar do Sul, respondeu a uma pergunta semelhante recomendando que “se vocês estão insatisfeitos, vão para a rua se manifestar”. Com isso a luta de facções se explicitou também no Exército: sem força propriamente institucional para punir Mourão, o comando do Exército deu sua resposta através da manifestação política de Pujol, o que reforça a conduta militar irregular, única possível em situações deterioradas — para nossa momentânea sorte, Pujol tem tropa e Mourão, não.
Dada a insegurança da sua própria situação, Temer tem jogado facciosamente com os militares – pegou mal quando os convocou para ocupar Brasília, mas vem agradando aos incautos com essas tão onerosas quanto deletérias incursões pelos morros do Rio, nas quais o espírito de facção já atingiu até aos soldados, que patrulharam as ruas em conduta hostil para com os moradores em geral, fazendo uso de máscaras com a figura da caveira, além de braçadeiras típicas de milícias justiceiras – ou seja, o espírito de facção desceu ao nível da descaracterização do uniforme, cujo padrão se destina, precisamente, a simbolizar a atuação legal, infensa a preferências pessoais ou grupais. Ao invadir casas e maltratar o povo pobre, o Exército vai voltando às práticas que legou às facções autoritárias da Polícia Militar, numa reconfiguração do exercício faccioso dos poderes institucionais propriamente militares que a ditadura paisano-militar nos deixou.
Em meio à flagrante arbitrariedade dessa ocupação da Rocinha, o general Otavio Santana do Rêgo Barros, chefe de Comunicação Social do Exército, põe a pergunta de se “para uma maior efetividade das ações a sociedade está preparada para abrir mão do direito individual em prol do coletivo?” E diz mais: quer foro privilegiado para os militares que cometerem crimes comuns nessas ocupações e, ademais, vê como problema à desenvoltura das tropas a vigência constitucional das garantias e direitos individuais e de domicílio. Note bem, leitor: se a crise fosse institucional, interpretar a Constituição ainda seria exclusividade do Supremo Tribunal Federal. Mas como a crise é de legitimação do Estado de Direito Autoritário, a interpretação da Constituição se tornou um jogo de malabares em que todos se acham no direito de tentar a sorte e defender o seu.
Não se trata de ver em tudo isso uma ação concatenada, uma grande conspiração. Não. A situação do Brasil é muito mais grave do que uma interpretação assim ingênua indicaria: trata-se de uma marcha convergente sem estrategista, na qual poderá haver uma solução ao mesmo tempo conservadora, constitucional, eleitoral e militar. A versão abominável seria a eleição de Bolsonaro, que banalizaria o emprego das prerrogativas do art. 142 da Constituição, tornando rotina a presença militar nas ruas; a versão horripilante seria a eleição de qualquer dos nomes do chamado “centro”, com o qual se alinhem as bancadas evangélica, da bala e do boi.
Nossa passividade levou o Brasil a uma atipicamente prolongada crise de legitimação, uma vez que a falta de legitimidade do Estado não encontra outra ebulição senão a das suas próprias facções internas, as quais, dada sua natureza apartada da vida real, não podem gerar alternativa. Se não nos mexermos, se nos limitarmos a rogar respeito a uma Constituição que já foi rasgada, acabaremos por encontrar uma nova estabilidade, em termos muito mais desfavoráveis à imensa maioria de nós e, ainda pior, com o voto da maioria de nós.