CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 1 DE 4

QUANDO O ESTADO DE DIREITO SE OPÕE À DEMOCRACIA

Carlos Novaes, 28 de setembro de 2018

[com + e + acréscimos em Fica o Registro – 29/09]

Esta série de quatro artigos será uma tentativa de apresentar de maneira clara os fundamentos que orientarão meu voto em cada um dos turnos dessa eleição presidencial.

Quando um país se livra de uma ditadura, seja através de uma derrubada abrupta ou através de uma transição, o que se deu foi uma luta democrática, isto é, uma luta que contou com o engajamento dos cidadãos animados pelo desejo de viver sob um Estado de Direito Democrático, desejo este traduzido segundo motivações e práticas propriamente democráticas, expressas na desobediência crescente ao arcabouço legal da ditadura, uma desobediência que aparece na paulatina difusão oral e escrita da opinião contrária à ditadura, acompanhada do exercício não menos crescente da vontade de reunião e manifestação contra a ditadura. A luta contra uma ditadura se dá democraticamente na sociedade, é exercida nela, contra o Estado ditatorial.

Na derrubada de uma ditadura, a democracia surge antes do Estado de direito, ela é a condição prévia para que ele seja alcançado – a nova forma estatal, o Estado de direito, herda da sociedade o impulso democrático e tem de traduzir no novo ordenamento institucional a prática democrática exercida pela sociedade em sua luta contra o Estado ditatorial. No plano do exercício das liberdades, que é o da sociedade, o antagonista da repressão ditatorial é a prática da democracia; no plano institucional, que é o do aparato estatal, o oposto da forma ditatorial é o Estado de Direito Democrático. A forma estatal final, almejada pela sociedade mobilizada contra a ditadura é, portanto, o Estado de Direito Democrático, que recebe este nome precisamente porque deve dar forma (consolidar) nas suas instituições (no direito) ao impulso e às práticas democráticas vindos da sociedade. Entretanto, a história tem mostrado que essa forma estatal final nem sempre é alcançada, ainda que o Estado ditatorial tenha dado lugar a um Estado de direito.

O intervalo entre o começo da luta democrática e a queda da ditadura pode ser curto ou longo, a depender tanto da força disponível em cada lado, quanto do grau de antagonismo entre aqueles que hegemonizam (enquanto hegemonizam) cada lado da disputa. Se a força democrática vinda da sociedade é irresistível, como nas revoltas generalizadas (revolucionárias ou não), a ditadura é derrubada em dias ou semanas. Se a força democrática vinda da sociedade existe, mas o Estado ditatorial, embora não possa esmaga-la, tem como resistir a ela, instala-se um período de transição democrática – a transição se chama democrática precisamente porque o que deve transitar é a democracia: trata-se de fazê-la transitar da sociedade, onde ela já está viva, para o Estado, infenso a ela porque ditatorial.

Além de depender da força disponível em cada lado, o ritmo e a duração dessa transição dependem também do grau de antagonismo entre aqueles que hegemonizam (qua hegemonizam) os lados da disputa, porque é também esse antagonismo que vai definir o quanto a transição será realmente democrática, e quanto ela arrastará da forma autoritária. Tudo o que é vivo busca permanecer, e as transições são uma negociação atritada entre formas vivas: por um lado, a forma ditatorial, querendo se conservar tão menos democrática quanto possa; por outro lado, a forma de direito, querendo se estabelecer tão democrática quanto possa.

Nessa negociação atritada, o que define o lugar da negociação e o grau de atrito é a combinação da magnitude das forças arregimentadas com o antagonismo de propósitos entre as vanguardas de cada lado da disputa. Se, como está dado, nenhum dos dois lados tem força para simplesmente derrotar o outro (por isso a transição, e não a derrubada da ditadura ou sua reafirmação), mas ambos contam com vanguardas irremediavelmente antagônicas em seus propósitos, o que predomina na transição é o atrito, não a negociação, e o que cada lado busca no curso do tempo da transição é aumentar sua própria capacidade de arregimentação contra o outro, para impor-lhe uma derrota final. Agora, se as vanguardas não forem irremediavelmente antagônicas, se a transição contrapõe forças plurais que reúnem em suas fileiras contingentes menos ou mais avessos à negociação dos seus propósitos, a negociação pode predominar sobre o atrito, processo que não raramente leva a mudanças na composição das vanguardas de cada lado.

O resultado de uma transição democrática marcada pela negociação e não pelo atrito será sempre um compromisso entre as partes: o Estado ganha a forma de direito, mas conserva dispositivos e práticas da forma ditatorial.

A transição democrática brasileira foi uma transição desse tipo. Primeiro, porque não havia força para simplesmente derrotar a ditadura; segundo, o grau de antagonismo entre as vanguardas dos dois lados sempre esteve longe de ser irremediável: pelo lado da ditadura, o Estado estava sob comando hegemônico de uma vanguarda que queria alguma abertura (Geisel e Golbery); pelo lado da oposição, a sociedade estava representada por uma vanguarda cuja hegemonia era exercida por quem vinha da política profissional consentida pela ditadura (p-MDB e setores da ARENA, depois PFL e DEM) e, por isso, seus profissionais não estavam dispostos a promover alterações que pusessem em risco os mecanismos que lhes haviam permitido tornarem-se o que eram: políticos profissionais eleitoralmente bem-sucedidos.

O resultado foi que ao Estado Ditatorial sobreveio não um Estado de Direito Democrático, mas um Estado de Direito Autoritário: o Estado se tornou de direito porque deu forma institucional a aspectos fundamentais da dinâmica democrática que a sociedade mobilizara na luta contra o Estado ditatorial (liberdades de imprensa, de opinião e de manifestação, amplo e livre direito de voto etc), mas não se tornou democrático porque além de ter conservado na nova forma estatal dispositivos ditatoriais paisanos (p-MDB, PFL e satélites) e militares (Polícia Militar, prerrogativas e privilégios constitucionais das FFAA), também assegurou normas legais que não obstam, e até protegem, as práticas institucionais antidemocráticas desses dispositivos (estrutura eleitoral e partidária; judiciário próprio para policiais e militares, etc). Além disso, essas normas legais garantem privilégios (remuneratórios, salariais, previdenciários, compensatórios) e dão prerrogativas (foro especial e de iniciativa) aos hierarcas do serviço público civil que são assimétricas com, e agravam, as condições de vida da imensa maioria que labuta na chamada iniciativa privada e não é rica.

Tudo o que se acaba de recuperar realimentou o exercício faccioso dos poderes institucionais próprio do Estado ditatorial (faccioso porque contrário à democracia e porque se organiza, mesmo, por meio de facções estatais, que são formações não transparentes de defesa de interesses, que se montam e desmontam ao sabor das conveniências em jogo, como dá péssimo exemplo a prática diária da instituição tida como a guardiã da Constituição, o Supremo Tribunal Federal-STF, tão cindido pelas facções quanto nossos presídios). Em suma, nossa transição democrática foi truncada e resultou num Estado de Direito Autoritário: conseguiu trazer o direito, mas não consolidou a democracia.

Como já detalhei aqui, o resultado desse arranjo não poderia deixar de ser a permanente oposição entre esse Estado de Direito Autoritário e a sociedade democrática, uma oposição que se desenvolveu por trinta longos anos e, agora, apresenta toda a sua desfuncionalidade numa crise de legitimação que desgraçadamente separou sua dimensão econômico-social (desigualdade) da sua dimensão sistêmica (a ordem político-estatal facciosa).

A revolta, mais fortemente vocalizada pelas camadas médias, contra o sistema (bandidagem de Estado-corrupção; privilégios e regalias de facções estatais; e tributação injusta) não é senão a tradução da ilegitimidade do Estado de Direito Autoritário, um Estado faccioso voltado para si mesmo, para os seus. Nessa revolta a maioria da sociedade está a escancarar, sem enxergar, que o Estado é ilegítimo.

A revolta, mais fortemente vocalizada pelos pobres, contra os sofrimentos da desigualdade (emprego, educação, saúde, salário, bandidagem de rua-violência e arbítrio policial-violência) não é senão a tradução da ilegitimidade do Estado de Direito Autoritário, um Estado faccioso a serviço dos ricos. Nessa revolta a maioria da sociedade também está a escancarar, sem enxergar, que o Estado é ilegítimo.

Embora sejam aspectos da mesma realidade, essas duas revoltas não conversam uma com a outra. São essas cegueira e mutismo político diante de uma crise de legitimação tão flagrante e monumental que explicam a indigência dessa eleição presidencial: a maioria da sociedade não conseguiu construir um vetor de transformação que reunisse suas duas urgências e está, mais uma vez, a se dividir improdutivamente entre candidaturas amputadas, que ora simulam defender o social, ora defendem a ordem, mas sem reunir os dois hemisférios de um modo transformador em benefício da maioria e contra os interesses imediatos das minorias encasteladas no Estado e no Mercado, que armam juntas o circo eleitoral.

É por isso que Haddad pode aparecer como campeão do social e da ponderação (embora Lula e seu PT tenham aderido ao sistema, tenham traído a luta contra a desigualdade e vivam a gritar da boca para fora contra as elites). Por outro lado, não é outra a explicação para Bolsonaro poder aparecer como campeão anti-sistema (embora seja o representante da truculência antidemocrática e antissocial desse mesmo sistema); e para Alckmin poder aspirar ser o ponto de equilíbrio do sistema, como se tudo fosse uma questão de ajuste no âmbito do próprio Estado de Direito Autoritário, um arranjo estatal que simplesmente não tem conserto, é inviável, e, mais cedo ou mais tarde, acabará por ceder ou a uma outra ditadura ou a uma transformação – essa eleição é apenas um sofrido ritual de passagem para mais e maiores sofrimentos.

[29/09] – Fica o Registro:

  • A decisão de Fux, do Supremo, de proibir a realização e/ou censurar a publicação de entrevista de Lula à Folha de S.Paulo é ainda mais grave do que parece: além de ser facciosamente antidemocrática (embora dentro do Estado de direito…); além de vir embasada em uma justificativa falsa, pois a essa altura da campanha não há como supor que o eleitor letrado possa ser desinformado sobre quem é o candidato do PT se Lula for ouvido (até porque, na própria entrevista, Lula não poderá deixar de repisar que o candidato dele é Haddad); além de se opor a uma decisão, dessa vez bem fundamentada, do não menos faccioso colega Lewandowsky, que permitiu a realização da entrevista; a decisão de Fux é grave e perniciosa sobretudo porque antecipa, chancela e traz para dentro do STF o ânimo golpista que se instalará se Haddad passar ao segundo turno.
  • Bolsonaro já deu o sinal verde para a largada das hordas golpistas contra o Estado de direito (querem de volta o Estado ditatorial) ao declarar, em entrevista ao Datena (vejam a conexão: falou ao mais notório apresentador de programas de TV que enaltecem a truculência antidemocrática da polícia – truculência essa protegida pelo Estado de direito), que não aceita nada que não seja a própria vitória, ecoando fala anterior de Villas Bôas, cujo sentido comentei aqui — a situação se agrava, leitor.
  • O UOL acaba de noticiar que um juiz de Goiás, apoiador de Bolsonaro, planejou meticulosamente, e combinou facciosamente com o exército local, recolher as urnas eletrônicas, sob o argumento bolsonariano de que elas podem fraudar o voto do eleitor. Note-se que o referido juiz já agiu não apenas antidemocraticamente, mas inteiramente ao arrepio do próprio Estado de direito, pois, segundo o Conselho Nacional de Justiça, além de ele não ter poderes para tomar a decisão, ainda deixou de obedecer à norma de informar outros órgãos sobre o que pretendia fazer. Ou seja, já estamos vivendo a síndrome ditatorial do chamado “arbítrio de guarda de trânsito”…
  • Para se ter uma ideia de como Ciro está à altura do cargo que disputa… : a nove dias do primeiro turno, a imprensa nos informa que entre as dicas de campanha próprias de reta final, ainda está o conselho para Ciro evitar palavrões quando se dirigir “às mulheres”!!…. (vejam a “sutileza”: quem deu o conselho, sabendo que o candidato não tem conserto, concedeu que seja apenas quando se dirigir a mulheres, como se fosse possível, numa campanha eleitoral, selecionar a difusão dos palavrões do candidato segundo o gênero de quem os ouve). Agora é tarde!