Carlos Novaes, ABRIL de 1994
APRESENTAÇÃO — 6 de outubro de 2014
O texto a seguir foi escrito pelo autor há mais de 20 anos e enviado à Folha de S. Paulo, que não o publicou. Sua circulação ficou restrita ao CEBRAP, onde o autor trabalhava na época, e a cópias impressas enviadas a alguns amigos. Publicado agora neste blog, ele me ajuda a deixar mais claro o apanhado histórico sumário que faço neste outro texto aqui, que é atual, de hoje.
Na altura em que o texto abaixo foi escrito, Lula era o líder disparado nas pesquisas, mas havia uma fragilidade óbvia na candidatura, fragilidade que era reforçada pela luta interna do PT, que levara uma ala da Articulação, corrente interna então majoritária no partido, a simular esquerdismo (até hoje é assim!) para assumir a direção partidária com apoio da ultra-esquerda petista, o que resultou num arranjo eleitoralmente contraproducente, pois o problema de Lula não era o de hoje, depois que ele se rendeu ao pacto conservador que FHC justamente logrou por de pé depois da vitória naquela eleição de 1994. Não. Naquela época Lula ainda aparecia como um reformista prá valer e, assim, tinha dificuldades para ultrapassar certas barreiras à mudança no Brasil, como, de fato, acabou por então não conseguir e, depois, por desistir. O texto abaixo reproduz exatamente o que escrevi, a quente, como resposta a um artigo de José Arthur Giannotti, que defendia a candidatura de FHC.
CARISMA, MUDANÇA E CONSERVAÇÃO
No processo de impeachment, na CPI do Orçamento e no malogro da Revisão Constitucional se deram sinais eloquentes de que os padrões estruturais da política brasileira se alteram em benefício do avanço político dos progressistas e aguçando as dificuldades vividas pelos conservadores para traduzirem no plano da representação político-institucional a hegemonia que conservam na ordem social geral. A CPI mostrou, de um lado, que os progressistas tem capacidade de iniciativa valendo-se dos mecanismos legados pelo processo constituinte e, de outro, que embora os conservadores possam resistir protegendo indivíduos, já não podem preservar práticas institucionais anacrônicas. Na mesma linha, a Revisão mostrou conservadores sem capacidade de iniciativa coletiva e progressistas com capacidade de opor resistência institucionalmente eficaz. Em suma, desde a Constituinte se pode observar que a trama interna das nossas instituições funciona segundo uma estratégia sem estrategista, mas de sentido inequívoco: um patamar superior de gestão e coordenação da coisa pública. Condutas recentes do Ministério Público, do Judiciário e da Receita Federal oferecem evidências adicionais desse processo.
Esses episódios mostram o funcionamento da gramática política de que fala Giannotti em artigo publicado na Folha (caderno Mais!, 10/04/94). Embora de sentido nem sempre evidente, o jogo da representação vai progressivamente consolidando práticas institucionais que seriam impossíveis se a representação fosse o decalque dos interesses presentes na sociedade. A CPI do orçamento exibe isso à perfeição: embora os culpados mais notórios venham escapulindo de reproches mais duros — visto que a gramática não suportaria cortes muito fundos, pois ela é um jogo de políticos entre políticos –, tão cedo não se terá um orçamento emendado daquela maneira. No caso da revisão constitucional, só o delírio poderia presumir que ela gorou em função dos vetos da ortodoxia do PT, que pretendeu grandes mobilizações de massa e não realizou nenhuma. A revisão não foi adiante porque a complexidade de articulação dos interesses que a patrocinavam no Legislativo não encontrou denominador comum e esbarrou na ação intra muros dos que a ela se opunham.
O Brasil de 1994 assiste, estampado na disputa presidencial, ao esgotamento do modo de operar do sistema político que já em 1989 claudicara. Ainda que se conserve uma opinião pública política eminentemente populista — isto é, que desdenha partidos e outras formas de mediação representativa e dê preferência à atuação de líderes fortes –, o sentido dessa percepção populista da política se inverteu. A diferença está em que pela primeira vez quem mobiliza as esperanças do fundo do tacho não é o candidato do capital, mas o candidato das forças progressistas das grandes cidades. Trata-se de uma solda inédita na política brasileira: o candidato que dialoga com as expectativas neo-messiânicas do grosso da população é produto (e agente) da modernização institucional engendrada no país nos últimos vinte anos.
A desorientação provocada por esse novo modo de apresentação da polarização política brasileira explica tanto a atarantada busca de um anti-Lula pelos conservadores, quanto o frasismo pseudo-radical da ortodoxia presente na direção do PT. No primeiro caso, o problema não estava exatamente na falta de um nome. Buscou-se em vão a peça de um jogo que já não pode ser jogado porque falta o tabuleiro. Habituado a uma receita infalível, o campo conservador se viu desprovido de um ingrediente fundamental, o carisma. Ao lado do poder do dinheiro, o carisma permitia o controle dos mecanismos fisiológicos de reposição diuturna do sistema político. Na ausência dele, perdido para o outro lado, buscou-se, depois de muitas cabeçadas, precisamente trazer desse outro lado a compensação: a respeitabilidade (e a modernidade) das mediações negociadas. Daí a intermediação entre Fernando Henrique Cardoso e as forças conservadoras, via PFL.
No caso do frasismo petista, a vantagem de Lula nas pesquisas vinha sendo festejada não como o resultado ainda frágil de um contínuo processo de transformações, mas como a possibilidade de uma ruptura completa com a ordem institucional que, afinal, garante a disputa. Essas expectativas desprezam três coisas fundamentais: 1. o carisma de Lula tem uma dimensão populista, embora não seja ele um populista; 2. a presença do petismo na esfera institucional faz do PT expressão importante dessa ordem que se quer transformar; 3. por essas e outras razões, um almejado governo Lula não é o limiar da superação do capitalismo.
O carisma de Lula é um fenômeno social cuja imensa complexidade só posso indicar. Há nele um traço muito nítido: é um carisma que se expandiu através de mediações e de instituições. O magnetismo da liderança de Lula cresceu alimentando-se da dinâmica virtuosa da modernização política do país e jamais dependeu de formas diretas de marketing operadas em aparições de mídia, salvo aquelas que derivam do próprio fato de ele ter estado no centro dos acontecimentos mais importantes de nossa vida política recente. Os contingentes esfarrapados que acorrem às caravanas de Lula não estão sendo manipulados por alguém que simula o empenho pela mudança a serviço de uma ordem cuja conservação secretamente urde. Não estão tendo suas fantasias aumentadas com promessas absurdas. A ilusão não vem por ai. A ilusão aparece na ausência de medida para calibrar as expectativas da mudança almejada. A marca do carisma de Lula não é a conservação, mas a incerteza.
Como o conservadorismo não conta com o carisma populista, recorre a um tipo de negociação que ganha a descompromissada forma da conversa. Fernando Henrique tem dado a impressão de que negocia, quando na verdade abafa o horror a um projeto reformista que ameaça um modelo de gestão da riqueza tão confortável quanto injusto. Nossas elites só irão negociar quando o Estado estiver sob a coordenação inédita de forças hostis ao seu desfrute de mando político combinado com poderio econômico. Essa é a condição da negociação, pois negociar implica fazer um movimento na direção de quem tem poder para agir diferente. E é só por isso que Giannotti tem razão ao dizer que para governar Lula terá de ir para a direita. Mas se é assim, o apego de Fernando Henrique à coerência não oferece garantia correspondente do outro lado, como pretende Giannotti ao igualar indevidamente em força um movimento objetivo, próprio dos constrangimentos da representação, e um movimento subjetivo, que mesmo um Goethe não poderia garantir. Uma vez na presidência, a coerência não é dada pelas veleidades subjetivas do titular, por mais intelectualmente fundamentadas que sejam, mas pela tessitura social e política que consubstanciou a investidura no cargo, configurada em uma gramática política que se não é o decalque dos interesses, tampouco conforma uma arena isolada da dimensão substantiva da atividade dos interessados.
A disposição — ou a percepção da necessidade — de negociar que Lula exibe junto com setores hoje minoritários na direção do PT, simbolizados por Erundina, Genoíno e Mercadante, que são amplamente majoritários na sociedade civil petista, não é acompanhada pela maioria ortodoxa da direção do partido. A incerteza embutida no sucesso de Lula atinge os frasistas do PT em justaposição à maneira como intranquiliza o capital: imagina-se que ela significa uma revolução, subestimando-se os elementos de continuidade que a constrangem, para bem e para mal. Como quer que seja, Lula e seus aliados internos sabem que o que está em jogo não é a continuidade da ordem do capital no país, mas o seu padrão de gestão pública. Não estamos vivendo uma Revolução, evento que destrói as mediações institucionais conhecidas, altera vertiginosamente as identidades coletivas, desarranja o processo de produção e desestrutura a auto-imagem dos indivíduos. O Brasil vive uma agudíssima crise política, acompanhada de forte turbulência institucional, mas não há crise de hegemonia. Nenhuma força política relevante questiona, por exemplo, a existência ou a disposição atual dos três poderes da República; o princípio da propriedade privada não está em cheque; a busca do lucro não perdeu legitimidade etc.
As forças que instrumentalizam no PT os resíduos confusos de uma ideologia inatual tornaram-se maioria beneficiando-se também do populismo presente no carisma de Lula, que jamais disputou abertamente esta ou aquela opinião nos debates internos. Vivendo a ilusão de ser a expressão depurada da luta interna do PT, Lula não fez caso de que a máquina do partido vinha sendo engessada por uma oligarquia avessa aos compromissos que sua inserção na política brasileira impõe. O risco mais dramático dessa omissão, cujos danos foram reforçados pelo elitismo de outras lideranças petistas, que subestimaram o poder intrigante dos mercadores ideológicos, é o descredenciamento do PT como instituição de mediação entre Lula e os interlocutores do centro. A continuidade da trajetória virtuosa do PT na sociedade brasileira requer que o partido multiplique a capacidade de negociação do candidato. Mas para isso é necessário que os mandarins da máquina petista percebam que o sonho de escapar do segundo turno não pode velar a existência do terceiro: a formação de um governo viável, o que inclui o centro.
À medida que, apesar de tudo, Lula avança, a direção do PT vai ficando para trás. Se o candidato for bem-sucedido apesar da direção do partido, o risco é o reforço da dimensão populista do seu carisma. Ao não se apresentar como complemento à expansão do magnetismo do candidato, essa direção mostra não se dar conta de que quanto mais eleitores se voltam para Lula, mais aumenta a superfície de contato dele com a cultura política com que ele está em permanente tensão. Naturalmente não é o caso de rejeitar esses votos, mas é indispensável levar em conta as expectativas desmedidas que uma tal adesão gera. Mas como a aposta de fundo é numa ruptura, essa efervescência é vista como benfazeja, negligenciando-se a matriz populista que também a alimenta. Na “participação popular” idealizada no programa petista, em si mesma positiva, o exercício da cidadania é imaginado como se fosse uma grande aspiração latente nas massas, porém represada, bastando criar os canais para que o fluxo jorre. Não é assim. As pessoas terão que descobrir a cidadania, aprender a interessar-se pela coisa pública, e isso requer tempo, muito tempo. Além disso, e a partir disso, imagina-se uma polarização política cujo grau de enfrentamento é muito alto se considerarmos a disposição conservadora do eleitorado. Ainda que a maioria dele visse em Lula, já no primeiro turno (como sonhavam alguns), a materialização de suas expectativas de mudança, não é provável que o voto indicasse, na maioria dos casos, mais do que a escolha daquele que vai resolver para o povo os seus problemas.
Parte da militância dirigente do PT ainda está prisioneira da velha ideia de que o objetivo da luta popular é destruir o Estado burguês, como se o receituário válido para outros tempos, quando a presença organizada dos trabalhadores era irrisória na sociedade burguesa, não tivesse se mostrado inadequado diante dos novos arranjos verificados com o advento das franquias democráticas. É dessa dificuldade da direção do PT para valorizar as mediações institucionais que Giannotti parte para indigitar como anacrônica a “participação popular” prevista no Programa de Governo do PT. Documento que reúne contribuições de origens as mais diferentes (e opostas), esse programa abriga parágrafos que se desmentem. Por isso, discordo igualmente do professor Paul Singer que, em artigo publicado também na Folha (caderno Mais!: 17/04/94), contrapõe aos argumentos unilaterais de Giannotti frases do Programa em que se valoriza a representação institucional. O PT não é nem só o que Singer elogia, nem só o que Giannotti critica. Documentos partidários não legislam sobre a prática do partido; é a prática que confere sentido aos documentos. Por isso mesmo, ainda está em disputa o sentido final das passagens que ambos citaram.
Sejamos materialistas. Do final dos anos 70 para cá petistas de todos os matizes, ao lado de outras forças democráticas, realizaram uma grande obra institucional, exercendo sua vocação para construir novas instituições. Formaram associações populares e associações sindicais, multiplicaram o sindicalismo rural, construíram a mais importante central sindical do país, deram passos importantes para estruturar uma central de Movimentos Populares e ergueram um partido político digno de se chamar assim. Além disso, somaram esforços para a consolidação de outras formas de ação coletiva não clandestina, como o Movimento Negro, o Movimento das Mulheres e a União Nacional das Nações Indígenas, e participaram com sucesso de muitos movimentos institucionais com dimensão de massas, sendo as Diretas e o impeachment os maiores exemplos. Tudo somado, não há como fundamentar a idéia surrada de que Lula simboliza uma utopia. Pode haver proposta que melhor articule realismo e criatividade do que as Câmaras Setoriais?
As críticas que se tem feito ao PT omitem esse lado essencial da sua trajetória, tomam a nuvem por Juno. A fragilidade numérica e a estreiteza teórica da maioria dirigente atual não pode rivalizar com a riqueza dessa história. Além disso, essa maioria não conta sequer com unidade ideológica. Pelo contrário, ultimamente nomes proeminentes tem gasto boa parte do seu tempo buscando a fórmula que lhes permita compor com Lula sem caírem em descrédito diante daqueles que os conduziram à direção exatamente porque defendiam posições “duras”. Reveses recentes destes grupos — como na derrota de sua proposta de moratória da dívida externa e na tentativa malograda de excluir parágrafos que davam ao programa de governo do PT um caráter reformista — deixam claro que a realidade vai agindo sobre o partido de modo a devolvê-lo ao leito de avanços trilhado até bem recentemente por uma militância ciente de que a inspiração inicial do PT foi a inventividade política a serviço da ampliação da cidadania dos trabalhadores. Sua motivação prática tem sido a de construir, não a de destruir. Seu dia-a-dia tem sido lutar por novos direitos, por instituições renovadas e por novas instituições. O PT é bom nisso e sabe que é por aí que o partido tem dado certo. O perfil de um governo Lula resultará dessa intuição construtiva ditada pela prática.
A aposta que se faz aqui, portanto, não depende da coerência subjetiva de um intelectual respeitável que recebe o apoio preliminar dos conservadores, mas das forças sociais que dão carne ao partido e ao sucesso do candidato que ponteia as pesquisas. Defina-se como se definir o lado conservador, Lula é o candidato da mudança, ainda mais nitidamente do que em 1989. Quem votou em Lula daquela vez teria que motivos para deixar de fazê-lo hoje? Afinal, em que o Lula de 94 está aquém do de 89? Já no ano passado ele fora mais longe em conversas com outros setores do que o fez nos 40 dias que mediaram os dois turnos de 89. O PT daquela época era muito mais impermeável às exigências do exercício compartilhado do poder do que hoje, quando conta com número maior de quadros com experiência na administração pública. A solução encontrada para o caso Bisol mostrou Lula com capacidade de comando, sustentando como novo vice um nome não simpático à ortodoxia petista, embora sem a rapidez que só o autoritarismo permitiria.
A despeito da maioria atual na direção do partido, a ação negociadora de Lula e a disposição dos parlamentares e prefeitos petistas de jogarem o jogo da representação — como quando derrotaram a direção no embate da Revisão constitucional, ou como fez a prefeita Luiza Erundina ao não aceitar o dirigismo destes mesmos setores — permitem antecipar para um almejado governo com Lula na presidência da República um período de reformas profundas, baseado na negociação e reforçando a democracia. Propostas que provoquem disputas mais acirradas poderão ser levadas à consulta popular, empregando-se mecanismos democráticos como o plebiscito e o referendo. Se, aos olhos do leitor, a incerteza que permanece não se legitima como condição da própria democracia, que ele não a tema mais do que as certezas que o outro lado oferece.