Arquivo da categoria: REPRESENTAÇÃO NÃO É PROFISSÂO

Textos em que se defende a ideia de que o problema da representação está no fato de a política ter virado uma carreira.

SÓ 4 JÁ – representação não é profissão

Carlos Novaes, junho de 2013

O movimento de revolta que atravessa o Brasil e o mundo precisa encontrar uma bandeira política que corresponda à sua motivação transformadora e lhe dê impulso, amplitude e materialidade:

–          Impulso – isto é, o torne mais forte;

–          Amplitude – isto é, o leve a reunir ainda mais gente;

–          Materialidade – isto é, dê a cada um de nós uma meta fecunda, agradável, clara e realizável.

O problema dos problemas políticos no Brasil e no mundo é a farsa da representação legislativa: a representação virou uma profissão e, com isso, política virou carreira. A prática rotineira dos políticos profissionais os levou, e leva, a darem as costas às sociedades que deveriam representar. A representação não existe, pois eles estão todo o tempo ocupados com seus próprios interesses e não dão atenção aos desejos da sociedade. O primeiro interesse deles é fazer carreira, continuar a ser político para sempre. A sociedade só é levada em conta quando suas demandas não atrapalham essa meta permanente deles ou podem ser usadas para ajuda-los a permanecer.

Por melhor que seja a origem eleitoral de um político, a profissionalização sempre o arrasta para longe das metas iniciais, pois ele passa a ser regido pela lógica férrea da reeleição. Tão logo tenha sido eleito, a  primeira preocupação de um político é tudo fazer para conseguir um outro mandato legislativo na próxima eleição, mesmo que em um outro cargo.

Para recuperar o sentido da representação a solução é muito clara: o fim da reeleição para todos os cargos de representação legislativa. Política não é profissão e cada um só deve ter um mandato de 4 anos, seja de vereador, deputado ou senador. Quando um eletricista, uma professora, um médico, uma petroleira, um lavrador ou uma esteticista se torna um político profissional e passa a trabalhar por uma carreira política, perdemos todos:

–          perdem os seus colegas de profissão de origem e seus “clientes”, pois o novo político passa a manipular as ferramentas de uma outra “profissão”. Deixa os seus iguais para trás sem jamais pensar em voltar à antiga profissão, que está na origem de tudo;

–          perdem seus eleitores, que imaginaram estar elegendo um representante, mas vão ter que aturar mais um político entocado em uma vida política rotinizada em nome de uma carreira;

–          perde a sociedade como um todo, pois perde seu, ou sua, eletricista, professora, médico, petroleira, lavrador, esteticista, etc e não ganha em troca alguém voltado para os interesses de todos nós, pois o político profissional vai se ocupar em primeiro lugar de buscar dinheiro e poder para continuar empoleirado no legislativo.

As coisas estão de ponta cabeça: permite-se a reeleição ali onde deveria ser obrigatória a renovação. Se a recondução a qualquer outro mandato legislativo for proibida, mesmo que para um cargo diferente do já ocupado (fim da política como carreira), ganhamos todos:

–          o fim da recondução acabará com a perspectiva de uma carreira política, o que será um filtro poderoso contra o ambicioso político típico de nossos dias;

–          todo aquele que se candidatar saberá que terá de voltar à sua profissão depois dos 4 anos de mandato como representante – se for um mau representante poderá comprometer seu futuro profissional, pois terá de voltar para o meio de onde saiu (os políticos só se reinventam e traem porque tem a perspectiva de uma carreira);

–          a troca periódica e compulsória dos representantes vai tornar a representação o que ela deve ser: fluxo dos interesses, desejos, expectativas, projetos e esperanças da sociedade (hoje a representação não é fluxo – é rotina que segue a cadência dos interesses mesquinhos dos que fizeram da política uma profissão);

–          a renovação permanente de representantes vai obrigar os partidos a funcionarem de modo totalmente diferente, pois hoje eles estão deformados pelo domínio  burocrático dos profissionais da política – os partidos terão de liberar energias e talentos internos que seus mandachuvas sufocam, e terão de abrir as portas à sociedade, se quiserem representa-la;

–          um representante legislativo bem avaliado, tenha sido eleito como candidato avulso ou por um partido, poderá aspirar a condição de gestor público num mandato executivo, seja de prefeito, governador ou presidente.

A bandeira de SÓ 4 anos de mandato legislativo é radical porque ao mesmo tempo em que se luta para mudar a Constituição via um projeto de lei de iniciativa popular, colhendo milhões de assinaturas em todo o Brasil, podemos praticar desde já o que propomos: em 2014, nenhum voto para representante em quem já tem, ou tenha tido, mandato legislativo, por melhor que seja o político.

Essa bandeira é radical porque seu sucesso depende, antes de tudo, da nossa própria prática horizontal, dispensando-nos de esperar pela mudança legal vertical que não obstante defendemos. Essa bandeira é radical porque vai à raiz de todos os problemas políticos. Essa bandeira é radical porque propõe uma transformação viável sem derramamento de sangue, embora imponha algumas perdas.

Não há transformação sem perdas. Vamos ter de abrir mão dos poucos representantes em quem atualmente confiamos para alcançar uma meta mais elevada: uma representação que corresponda à dinâmica de uma sociedade em mudança: cheia de problemas, mas a cada dia mais comunicativa e participante.

 

NÃO FUI PERGUNTADO, MAS…1 – Castells

Carlos Novaes, junho de 2013

 Respostas de Novaes a uma entrevista feita com o Castells, em O Globo.

Os protestos no Brasil não tinham líderes. Isso é uma qualidade ou um defeito?

Castells – Claro que é uma qualidade. Não há cabeças para serem cortadas. Assim, as redes se espalham e alcançam novos espaços na internet e nas ruas. Não se trata, apenas, de redes na internet, mas redes presenciais.

Os protestos no Brasil não tinham líderes. Isso é uma qualidade ou um defeito?

Novaes – Nem qualidade, nem defeito – é uma característica prática surgida da falta de “instituições para protestar”, que tem vantagens e limitações. Essa prática nova decorre do esgotamento de certas energias utópicas (notadamente as que dependiam de um sujeito prefigurado para a ação) e de uma forte e justíssima crítica à hierarquia, mas que tem levado a uma hipertrofia da horizontalidade.

Como conseguir interlocução com as instituições sem líderes?

Castells – Eles apresentam suas demandas no espaço público, e cabe às  

instituições estabelecer o diálogo. Uma comissão pode até ser eleita para encontrar o presidente, mas não líderes.

Como conseguir interlocução com as instituições sem líderes?

Novaes – A interlocução é um processo prático, que vai mudar junto com o movimento. A hipertrofia da horizontalidade tem levado à negação da verticalidade, confundindo Vertical com Hierárquico. Abre-se um processo algo confuso, mas que está apenas no começo e haverá de conhecer nova configuração, na qual não voltarão a haver líderes tradicionais, mas onde certamente haverá lugar para protagonistas com atribuições mais definidas.

Como explicar os protestos?

Castells – É um movimento contra a corrupção e a arrogância dos políticos, em defesa da dignidade e dos direitos humanos — aí incluído o transporte. Os movimentos recentes colocam a dignidade e a democracia como meta, mais do que o combate à pobreza. É um protesto democrático e moral, como a maioria dos outros recentes.

Como explicar os protestos?

Novaes – Cada vez mais gente está se enchendo. As pessoas estão insatisfeitas com o alargamento crescente do fosso entre as grandes possibilidades evidentemente existentes para uma vida melhor e a vida que de fato levam, não obstante a energia vigorosa que direcionam para alcançar uma vida boa.

Os políticos profissionais passaram a ser vistos como o que de fato são: os cavadores do fosso. Suas ferramentas de cavar são a corrupção, o tráfico de influência, o descaso ante as agruras alheias e a férrea determinação de não largar o osso.

Por que o senhor disse que os protestos brasileiros são um “ponto de inflexão”?

Castells – É a primeira vez que os brasileiros se manifestam fora dos canais tradicionais, como partidos e sindicatos. As pessoas cobram soberania política. É um movimento contra o monopólio do poder por parte de partidos altamente burocratizados. É, ainda, uma manifestação contra o crescimento econômico que não cuida da qualidade de vida nas cidades. No caso, o tema foi o transporte. Eles são contra a ideia do crescimento pelo crescimento, o mantra do neodesenvolvimentismo da América Latina, seja de direita, seja de esquerda. Como o Brasil costuma criar tendências, estamos em um ponto de inflexão não só para ele e o continente. A ideologia do crescimento, como solução para os problemas sociais, foi desmistificada.

 Por que o senhor disse que os protestos brasileiros são um “ponto de inflexão”?

Novaes – Não vejo a inflexão que Castells vê nem na forma, nem no conteúdo. Não há primeira vez. Já houve muitos movimentos sociais fora de partidos e sindicatos no Brasil– e aos montes. Movimentos contra a carestia, por moradia popular, contra a construção de barragens, e outros. A idéia de que esses movimentos recentes desmistificaram a ideologia do crescimento chega a ser engraçada, pois não houve NADA nem parecido com isso.

A “inflexão” que houve foi outra – e foi mais do que “inflexão”: os novos movimentos deram as costas à política como a conhecemos, seja de direita, seja de esquerda (até porque essa distinção já não faz sentido, mesmo).

O que costuma mover esses protestos?

Castells – O ultraje, causado pela desatenção dos políticos e burocratas do governo pelos problemas e desejos de seus cidadãos, que os elegem e pagam seus salários. O principal é que milhares de cidadãos se sentem fortalecidos agora.

O que costuma mover esses protestos?

Novaes – Concordo.

O senhor acha que eles podem ter sucesso sem uma pauta bem definida de pedidos?

Castells – Acho inacreditável. Além de passarem por uma série de problemas urbanos, ainda se exige que eles façam o trabalho de profissional que deveria ser dos burocratas preguiçosos responsáveis pela bagunça nos serviços. Os cidadãos só apontam os problemas. Resolvê-los é trabalho para os políticos e técnicos pagos por eles para fazê-lo.

O senhor acha que eles podem ter sucesso sem uma pauta bem definida de pedidos?

Novaes – O sucesso desses movimentos está em existirem para dar voz coletiva expressiva (nas ruas) ao que está calado dentro de cada um. Essa ação cheia de novidades dará lugar a uma nova forma de construção de pautas. Só não se pode cair na armadilha de deixar às autoridades políticas profissionais o papel de dar respostas, pois elas acabariam por fazer dessa demanda um modo de se fortalecerem. Cairiam alguns, mas seriam substituídos por outros, iguaizinhos. REPRESENTAÇÃO E GESTÃO públicas não são técnicas a serem manipuladas por profissionais da política e os movimentos precisarão encontrar a origem dos problemas e se concentrar em alterá-la.

Com organização horizontal, esse movimento pode durar?

Castells – Vai durar para sempre na internet e na mente da população. E continuará nas ruas até que exigências sejam satisfeitas, enquanto os políticos tentarem ignorar o movimento, na esperança que o povo se canse. Ele não vai se cansar. No máximo, vai mudar a forma de protestar.

Com organização horizontal, esse movimento pode durar?

Novaes – Não só pode durar como pode determinar uma profunda transformação no nosso modelo de representação política legislativa: fim da reeleição infinita, mandatos legislativos de só 4 anos, com as evidentes vantagens horizontais de uma dinâmica permanente de substituição de representantes políticos. Fim da representação como profissão. Se não fizermos isso os profissionais vão se rearrumar em campo e nos darão o troco.

Outra característica dos protestos eram bandeiras à esquerda e à direita do espectro político. Como isso é possível?

Castells – O espaço público reúne a sociedade em sua diversidade. A direita, a esquerda, os malucos, os sonhadores, os realistas, os ativistas, os piadistas, os revoltados — todo mundo. Anormal seriam legiões em ordem, organizadas por uma única bandeira e lideradas por burocratas partidários. É o caos criativo, não a ordem preestabelecida.

Outra característica dos protestos eram bandeiras à esquerda e à direita do espectro político. Como isso é possível?

Novaes – é possível porque já não faz sentido pensar, falar e, sobretudo, agir, como “esquerda” ou “direita”. Essas são referências de ordem espacial&ideológica que perderam o referente faz tempo. De novas práticas surgirão novos valores, novas instituições e novos problemas. A ideia de caos criativo é simpática mas fecha os olhos ante as ameaças de regressão que se mantêm latentes e precisam ser tenazmente contidas.

Há uma crise da democracia representativa?

Castells – Claro que há. A maior parte dos cidadãos do mundo não se sente representada por seu governo e parlamento. Partidos são universalmente desprezados pela maioria das pessoas. A culpa é dos políticos. Eles acreditam que seus cargos lhes pertencem, esquecendo que são pagos pelo povo. Boa parte, ainda que não a maioria, é corrupta, e as campanhas costumam ser financiadas ilegalmente no mundo inteiro. Democracia não é só votar de quatro em quatro anos nas bases de uma lei eleitoral trapaceira. As eleições viraram um mercado político, e o espaço público só é usado para debate nelas. O desejo de participação não é bem-vindo, e as redes sociais são vistas com desconfiança pelo establishment político.

Há uma crise da democracia representativa?

Novaes – Há, e esse é o ponto em torno do qual todo o novo processo deverá girar se quiser aproveitar o máximo de convergência que as energias despertadas contém. A resposta de Castells é um resumo perfeito de todo o erro da imensa maioria dos analistas simpáticos (e contrários) aos novos movimentos: eles permanecem reconhecendo os políticos tradicionais como o outro a ser criticado e, ao mesmo tempo, a ser demandado. Castells sonha com uma nova prática, mas não propõe nada realmente transformador. O ativismo horizontal não vai poder ficar todo o tempo apontando as mazelas e requerendo mudanças dos políticos profissionais. Castells e outros simplesmente não enxergam que o problema está na representação como PROFISSÃO. O problema não está nem nos partidos como FORMA, nem na representação como FORMA. Está no modo como os partidos se organizam e no modo como a representação se dá: ambos são dependentes diretos da PROFISSIONALIZAÇÃO para uma carreira. Acabemos com ela.

O senhor vê algo em comum entre os protestos no Brasil e na Turquia?

Castells – Sim, a deterioração da qualidade de vida urbana sob o crescimento econômico irrestrito, que não dá atenção à vida dos cidadãos. Especuladores imobiliários e burocratas, normalmente corruptos, são os inimigos nos dois casos.

O senhor vê algo em comum entre os protestos no Brasil e na Turquia?

Novaes – Sim, em ambos os casos as pessoas estão cheias de trabalharem e não verem resultados positivos sobre suas vidas. Essa ausência de resultados é colocada, muito acertadamente, na conta dos políticos profissionais. Os únicos cuja vida jamais deixa de melhorar.

Protestos convocados pela internet nunca tinham reunido tantas pessoas no Brasil. Qual a diferença entre a convocação que funciona e a que não tem sucesso?

Castells – O meio não é a mensagem. Tudo depende do impacto que uma mensagem tem na consciência de muitas pessoas. As mídias sociais só permitem a distribuição viral de qualquer mensagem e o acompanhamento da ação coletiva.

Protestos convocados pela internet nunca tinham reunido tantas pessoas no Brasil. Qual a diferença entre a convocação que funciona e a que não tem sucesso?

Novaes – Uma reúne gente. A outra, não. O sucesso da convocação contra os 0,20 centavos não está na convocação, que nunca imaginou adesão tão massiva e, sobretudo, jamais antecipou uma pauta tão diversificada à partir dos 0,20. O sucesso está na adesão em razão de cada vez mais gente enxergar que vale à pena se reunir uns aos outros, mesmo pensando diferente, porque há um inimigo comum: os políticos profissionais. Falta dar um passo: concentrar-se em acabar com a representação profissional e dar início a uma nova era de experimentação, acertos e problemas.

MAIS PODER AO ELEITOR – eleitor e telespectador são a mesma pessoa

Carlos Novaes, Abril de 2011

O principal problema a enfrentar em nosso sistema político é sua autonomia. Ou seja, o mundo político, em que atuam os políticos, está como que desligado do “mundo da vida”, em que vive o povo. Essa separação permite, de um lado, que os males se acumulem a ponto de a corrupção virar rotina, e, de outro lado, essa autonomia empurra o cidadão para a indiferença e, em seguida, para a desesperança. Como voltar a conectar ação política institucional com o “mundo da vida”, através de uma verdadeira representação? Como extinguir, ou mitigar, a autonomia do mundo político?

Para começar, acabar com a possibilidade da reeleição para o legislativo. Com o fim da política como profissão teríamos a volta da política como representação. Representar é estar no lugar de, e para estar no lugar de é necessário ter ligação efetiva com os representados, atributo que se perde na rotinização da carreira política, facilitadora da corrupção, que leva o político a se concentrar nos próprios interesses. Ao ter de manter laços com a profissão de origem, que lhe provê a vida e para onde terá de voltar, o representante se vê obrigado a uma outra prática política.

A solução não está em esperar pelos políticos enquanto tal, pois eles estão impedidos até mesmo de enxergar o problema. A legenda básica do político médio será sempre: “preciso me reeleger e, se há problemas, corrijamos o comportamento do povo”. Ora, nossa aposta tem de ser no contrário. Apostar todas as fichas nos indivíduos que dão sentido ao povo, único e real protagonista do que quer que vejamos de bom em nossa história (mais recente ou ultra-remota que seja).

Não se pode crer em mudanças que, para darem certo, tenham de contar com o engajamento virtuoso dos que hoje têm uma conduta viciosa. Mudança é aquela que independa da “virtude” do político, e aposte no eleitor, pois um diagnóstico adequado dos males a serem superados em nosso sistema político é, em si mesmo, um combate às idéias desfavoráveis sobre o eleitor brasileiro. A maior parte dos argumentos em prol da mudança do modelo eleitoral é variação do velho “o povo não sabe votar” – logo, é preciso empurra-lo a votar de outro modo. O desafio é outro: são os políticos que têm de ser empurrados a uma outra prática, não o eleitor.

Mais de 20 anos debruçado sobre eleições e cerca de 15 anos de trabalho em televisão, medindo audiência, fazendo testes de programas, avaliando apresentadores, telenovelas, telejornais, minisséries e infantis, para TVs Comerciais,  Públicas e Governamentais, me permitem entender que além de serem a mesma pessoa, eleitor e telespectador são o mesmo sujeito de preferências, vale dizer, fazem suas escolhas sob formato de estrutura muito parecida.

De uma maneira geral, telespectadores e eleitores têm uma primeira preferência e, dela, seguem-se outras. Há um apresentador preferido, mas não significa que não haja um outro. Ou ainda, entre uma novela preferida e o telejornal em um dia de notícia quente, o telespectador terá de fazer uma escolha entre preferências. Com o eleitor se dá o mesmo.

Tal como na rotina do gosto do telespectador, o eleitor também tem uma preferência rotinizada, como se pode observar estudando em detalhes as preferências havidas (ou seja, os resultados de eleições passadas). A história escrita nas urnas mostra que levar a mudar o voto é tão difícil quanto levar a mudar de canal. No caso do eleitor, é difícil leva-lo a mudar porque ele ajuíza tanto a escolha, pondera tanto, que uma vez ela feita segue nela por muitas eleições – salvo acontecimentos extraordinários.  Há uma parcela minoritária mais aberta à mudança, ao experimento, e é ela que escreve as primeiras linhas de uma nova narrativa, que pode prosperar ou não. O voto em Marina Silva em 2010 foi dado por parte desse contingente, por exemplo.

Adotar o voto impessoal em Lista Fechada para eleger os nossos representantes não vai nos ajudar a diminuir a autonomia do mundo político, valorizando o “mundo da vida” porque:

  1. a lista fechada vai aumentar a concentração de poderes nas figuras que hoje estão na ponta da pirâmide da autonomia: os chefes partidários;
  2. a lista fechada vai retirar do eleitor justamente o vínculo entre representante e “mundo da vida”, isto é, o vínculo (mesmo vicário como é hoje) entre eleitor e candidato/eleito;
  3. a lista fechada vai retirar do eleitor o instrumento eleitoral que lhe resta para criar algum tipo de incerteza para esse sistema político oligarquizado.

O que fazer?

Proponho radicalizar o que já temos de melhor: o voto proporcional em lista aberta, que aposta todas as fichas no juízo do eleitor.

1. Cada eleitor teria não Um, mas três votos para Deputado e Vereador.

2. Teria de votar em nomes de um mesmo partido.

3. Os vencedores seriam os mais votados segundo a soma de TODOS os votos recebidos, não importando se o voto recebido foi o primeiro, o segundo ou o terceiro.

Razões para esse modelo alternativo:

1. O Eleitor, assim como o Telespectador tem uma primeira preferência e, então, seguem-se outras;

2. Em geral, segundo o público médio, a primeira preferência é a do mundo dos AFETOS, e resulta da inserção acrítica no mundo, com alto engajamento afetivo e baixo engajamento cognitivo;

3. As preferências seguintes distanciam-se dos afetos, e aproximam-se do balanço mais racional da interação;

4. É essa estrutura que permite explorar as diferenças e distâncias entre a TV que temos, a TV que queremos e a TV que deveríamos ter.

5. Pois bem, o eleitor poderia, democraticamente, dar o primeiro voto para a celebridade ou o ilusionista do momento – não há porque dar tudo por perdido nessa escolha;

6. O erro esta em dar a ele, ELEITOR, apenas UMA oportunidade de realizar suas preferências;

7. Os dois votos seguintes dariam a oportunidade de o eleitor estimular outras áreas do seu SER SOCIETAL, de equilibrar sua escolha, exercendo preferências que também tem e compartilha com qualquer um de nós;

8. Esse mecanismo poderia atenuar o “efeito celebridade”, obrigando o puxador de voto não só a afunilar o voto em si, mas, ao fazê-lo, dispersar sua vantagem pela concatenação não antecipável das segundas e terceiras preferências dos eleitores;

9) Trabalho com a hipótese adicional de que, em suas campanhas, os candidatos seriam levados a se apresentarem em trios, tão mais atraentes/rentáveis quão mais diversificados (celebridade+pensador+moralista), com semelhanças transversas como as que se tem, hoje, nas dobradinhas estadual-federal — que ora têm êxito, ora não o têm), num modelo que ajudaria a consolidar o partido (voto individual com feição de lista);

10) Além de tudo, esse arranjo tem a vantagem de dialogar com nossa cultura política, ao invés de pretender melhorá-la a golpes de martelo de engenheiros institucionais tão inconformados quanto apressados (quando não mal intencionados).

Se combinarmos a essa providência aquela que impede a reeleição para os legislativos, teremos dado um passo resoluto para diminuir a autonomia do mundo político, amarrando-o mais ao “mundo da vida”, que queremos ver realmente representado.