NÃO FUI PERGUNTADO, MAS…1 – Castells

Carlos Novaes, junho de 2013

 Respostas de Novaes a uma entrevista feita com o Castells, em O Globo.

Os protestos no Brasil não tinham líderes. Isso é uma qualidade ou um defeito?

Castells – Claro que é uma qualidade. Não há cabeças para serem cortadas. Assim, as redes se espalham e alcançam novos espaços na internet e nas ruas. Não se trata, apenas, de redes na internet, mas redes presenciais.

Os protestos no Brasil não tinham líderes. Isso é uma qualidade ou um defeito?

Novaes – Nem qualidade, nem defeito – é uma característica prática surgida da falta de “instituições para protestar”, que tem vantagens e limitações. Essa prática nova decorre do esgotamento de certas energias utópicas (notadamente as que dependiam de um sujeito prefigurado para a ação) e de uma forte e justíssima crítica à hierarquia, mas que tem levado a uma hipertrofia da horizontalidade.

Como conseguir interlocução com as instituições sem líderes?

Castells – Eles apresentam suas demandas no espaço público, e cabe às  

instituições estabelecer o diálogo. Uma comissão pode até ser eleita para encontrar o presidente, mas não líderes.

Como conseguir interlocução com as instituições sem líderes?

Novaes – A interlocução é um processo prático, que vai mudar junto com o movimento. A hipertrofia da horizontalidade tem levado à negação da verticalidade, confundindo Vertical com Hierárquico. Abre-se um processo algo confuso, mas que está apenas no começo e haverá de conhecer nova configuração, na qual não voltarão a haver líderes tradicionais, mas onde certamente haverá lugar para protagonistas com atribuições mais definidas.

Como explicar os protestos?

Castells – É um movimento contra a corrupção e a arrogância dos políticos, em defesa da dignidade e dos direitos humanos — aí incluído o transporte. Os movimentos recentes colocam a dignidade e a democracia como meta, mais do que o combate à pobreza. É um protesto democrático e moral, como a maioria dos outros recentes.

Como explicar os protestos?

Novaes – Cada vez mais gente está se enchendo. As pessoas estão insatisfeitas com o alargamento crescente do fosso entre as grandes possibilidades evidentemente existentes para uma vida melhor e a vida que de fato levam, não obstante a energia vigorosa que direcionam para alcançar uma vida boa.

Os políticos profissionais passaram a ser vistos como o que de fato são: os cavadores do fosso. Suas ferramentas de cavar são a corrupção, o tráfico de influência, o descaso ante as agruras alheias e a férrea determinação de não largar o osso.

Por que o senhor disse que os protestos brasileiros são um “ponto de inflexão”?

Castells – É a primeira vez que os brasileiros se manifestam fora dos canais tradicionais, como partidos e sindicatos. As pessoas cobram soberania política. É um movimento contra o monopólio do poder por parte de partidos altamente burocratizados. É, ainda, uma manifestação contra o crescimento econômico que não cuida da qualidade de vida nas cidades. No caso, o tema foi o transporte. Eles são contra a ideia do crescimento pelo crescimento, o mantra do neodesenvolvimentismo da América Latina, seja de direita, seja de esquerda. Como o Brasil costuma criar tendências, estamos em um ponto de inflexão não só para ele e o continente. A ideologia do crescimento, como solução para os problemas sociais, foi desmistificada.

 Por que o senhor disse que os protestos brasileiros são um “ponto de inflexão”?

Novaes – Não vejo a inflexão que Castells vê nem na forma, nem no conteúdo. Não há primeira vez. Já houve muitos movimentos sociais fora de partidos e sindicatos no Brasil– e aos montes. Movimentos contra a carestia, por moradia popular, contra a construção de barragens, e outros. A idéia de que esses movimentos recentes desmistificaram a ideologia do crescimento chega a ser engraçada, pois não houve NADA nem parecido com isso.

A “inflexão” que houve foi outra – e foi mais do que “inflexão”: os novos movimentos deram as costas à política como a conhecemos, seja de direita, seja de esquerda (até porque essa distinção já não faz sentido, mesmo).

O que costuma mover esses protestos?

Castells – O ultraje, causado pela desatenção dos políticos e burocratas do governo pelos problemas e desejos de seus cidadãos, que os elegem e pagam seus salários. O principal é que milhares de cidadãos se sentem fortalecidos agora.

O que costuma mover esses protestos?

Novaes – Concordo.

O senhor acha que eles podem ter sucesso sem uma pauta bem definida de pedidos?

Castells – Acho inacreditável. Além de passarem por uma série de problemas urbanos, ainda se exige que eles façam o trabalho de profissional que deveria ser dos burocratas preguiçosos responsáveis pela bagunça nos serviços. Os cidadãos só apontam os problemas. Resolvê-los é trabalho para os políticos e técnicos pagos por eles para fazê-lo.

O senhor acha que eles podem ter sucesso sem uma pauta bem definida de pedidos?

Novaes – O sucesso desses movimentos está em existirem para dar voz coletiva expressiva (nas ruas) ao que está calado dentro de cada um. Essa ação cheia de novidades dará lugar a uma nova forma de construção de pautas. Só não se pode cair na armadilha de deixar às autoridades políticas profissionais o papel de dar respostas, pois elas acabariam por fazer dessa demanda um modo de se fortalecerem. Cairiam alguns, mas seriam substituídos por outros, iguaizinhos. REPRESENTAÇÃO E GESTÃO públicas não são técnicas a serem manipuladas por profissionais da política e os movimentos precisarão encontrar a origem dos problemas e se concentrar em alterá-la.

Com organização horizontal, esse movimento pode durar?

Castells – Vai durar para sempre na internet e na mente da população. E continuará nas ruas até que exigências sejam satisfeitas, enquanto os políticos tentarem ignorar o movimento, na esperança que o povo se canse. Ele não vai se cansar. No máximo, vai mudar a forma de protestar.

Com organização horizontal, esse movimento pode durar?

Novaes – Não só pode durar como pode determinar uma profunda transformação no nosso modelo de representação política legislativa: fim da reeleição infinita, mandatos legislativos de só 4 anos, com as evidentes vantagens horizontais de uma dinâmica permanente de substituição de representantes políticos. Fim da representação como profissão. Se não fizermos isso os profissionais vão se rearrumar em campo e nos darão o troco.

Outra característica dos protestos eram bandeiras à esquerda e à direita do espectro político. Como isso é possível?

Castells – O espaço público reúne a sociedade em sua diversidade. A direita, a esquerda, os malucos, os sonhadores, os realistas, os ativistas, os piadistas, os revoltados — todo mundo. Anormal seriam legiões em ordem, organizadas por uma única bandeira e lideradas por burocratas partidários. É o caos criativo, não a ordem preestabelecida.

Outra característica dos protestos eram bandeiras à esquerda e à direita do espectro político. Como isso é possível?

Novaes – é possível porque já não faz sentido pensar, falar e, sobretudo, agir, como “esquerda” ou “direita”. Essas são referências de ordem espacial&ideológica que perderam o referente faz tempo. De novas práticas surgirão novos valores, novas instituições e novos problemas. A ideia de caos criativo é simpática mas fecha os olhos ante as ameaças de regressão que se mantêm latentes e precisam ser tenazmente contidas.

Há uma crise da democracia representativa?

Castells – Claro que há. A maior parte dos cidadãos do mundo não se sente representada por seu governo e parlamento. Partidos são universalmente desprezados pela maioria das pessoas. A culpa é dos políticos. Eles acreditam que seus cargos lhes pertencem, esquecendo que são pagos pelo povo. Boa parte, ainda que não a maioria, é corrupta, e as campanhas costumam ser financiadas ilegalmente no mundo inteiro. Democracia não é só votar de quatro em quatro anos nas bases de uma lei eleitoral trapaceira. As eleições viraram um mercado político, e o espaço público só é usado para debate nelas. O desejo de participação não é bem-vindo, e as redes sociais são vistas com desconfiança pelo establishment político.

Há uma crise da democracia representativa?

Novaes – Há, e esse é o ponto em torno do qual todo o novo processo deverá girar se quiser aproveitar o máximo de convergência que as energias despertadas contém. A resposta de Castells é um resumo perfeito de todo o erro da imensa maioria dos analistas simpáticos (e contrários) aos novos movimentos: eles permanecem reconhecendo os políticos tradicionais como o outro a ser criticado e, ao mesmo tempo, a ser demandado. Castells sonha com uma nova prática, mas não propõe nada realmente transformador. O ativismo horizontal não vai poder ficar todo o tempo apontando as mazelas e requerendo mudanças dos políticos profissionais. Castells e outros simplesmente não enxergam que o problema está na representação como PROFISSÃO. O problema não está nem nos partidos como FORMA, nem na representação como FORMA. Está no modo como os partidos se organizam e no modo como a representação se dá: ambos são dependentes diretos da PROFISSIONALIZAÇÃO para uma carreira. Acabemos com ela.

O senhor vê algo em comum entre os protestos no Brasil e na Turquia?

Castells – Sim, a deterioração da qualidade de vida urbana sob o crescimento econômico irrestrito, que não dá atenção à vida dos cidadãos. Especuladores imobiliários e burocratas, normalmente corruptos, são os inimigos nos dois casos.

O senhor vê algo em comum entre os protestos no Brasil e na Turquia?

Novaes – Sim, em ambos os casos as pessoas estão cheias de trabalharem e não verem resultados positivos sobre suas vidas. Essa ausência de resultados é colocada, muito acertadamente, na conta dos políticos profissionais. Os únicos cuja vida jamais deixa de melhorar.

Protestos convocados pela internet nunca tinham reunido tantas pessoas no Brasil. Qual a diferença entre a convocação que funciona e a que não tem sucesso?

Castells – O meio não é a mensagem. Tudo depende do impacto que uma mensagem tem na consciência de muitas pessoas. As mídias sociais só permitem a distribuição viral de qualquer mensagem e o acompanhamento da ação coletiva.

Protestos convocados pela internet nunca tinham reunido tantas pessoas no Brasil. Qual a diferença entre a convocação que funciona e a que não tem sucesso?

Novaes – Uma reúne gente. A outra, não. O sucesso da convocação contra os 0,20 centavos não está na convocação, que nunca imaginou adesão tão massiva e, sobretudo, jamais antecipou uma pauta tão diversificada à partir dos 0,20. O sucesso está na adesão em razão de cada vez mais gente enxergar que vale à pena se reunir uns aos outros, mesmo pensando diferente, porque há um inimigo comum: os políticos profissionais. Falta dar um passo: concentrar-se em acabar com a representação profissional e dar início a uma nova era de experimentação, acertos e problemas.

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