Carlos Novaes, Junho de 2009
A situação da política brasileira de nossos dias é de tal ordem que já não é o caso de só reclamarmos que ela se faça sem a participação de militâncias partidárias ou mesmo sem o engajamento dos cidadãos; se nada fizermos, um dia desses nos acharemos lamentando que ela se dê sem fazer caso sequer da tênue e quase inaudível opinião pública. Estamos mais e mais submetidos a um jogo oligárquico cujo tabuleiro foi posto além do nosso juízo e cujas regras, além de não nos darem a conhecer, têm sua vigência sujeita ao correr do jogo. Esse estado de coisas compõe o cenário despojado de encantos à imaginação criadora que emoldura projetos sem contraste, ornamentos para uma mesmice de candidaturas que desanima até as plateias arrebanhadas para consagrá-las.
Essa mesmice que prepara uma disputa inercial para 2010 – e que nasce da oligarquização do processo político – repousa sobre análises e alternativas econômicas cujas linhas gerais foram pensadas nos anos 50 do século passado e, já então, embaladas por matrizes teóricas desenvolvidas no século retrasado: crescimento industrial mais ou menos induzido ou dirigido pelo Estado, com uma distribuição do excedente que variaria segundo este fosse mais ou menos controlado por um de dois pólos da disputa então reconhecida como a mais promissora para estruturar as escolhas de dias melhores – empresários e trabalhadores.
Como a ditadura militar interrompeu aquele processo, a luta pela redemocratização do Brasil e os anos que se seguiram a ela não puderam escapar das aporias postas por aquela interrupção, notadamente porque foi no período ditatorial que a chamada questão social, simbolizada na desigualdade, conheceu sua fermentação máxima. Lula e Serra, homens da mesma geração, representam as duas pontas da força que a ditadura por assim dizer dividiu: os do exílio (que voltaram para reatar a luta) e os de dentro (que ficaram travando a luta); a classe média preparada e com compromisso com os de baixo e os trabalhadores que descobriram a própria força. Serra representa aquela metade da geração a quem a ditadura removeu do proscênio e, ao voltar, encontrou seus pares de geração já imantados pelo metalúrgico que protagonizara mais uma volta no parafuso da história.
Nessa ordem de idéias, no encontro-disputa de 2002 Lula estava à frente de Serra porque sua liderança emergiu do pólo mais dinâmico e mais moderno do processo então em curso: a massa trabalhadora. E emergiu de forma orgânica (era um deles) e numa perspectiva de enfrentar o problema da desigualdade tendo escolhido resoluta e incontrastavelmente o lado que sempre perdera. Naquela altura, Lula representava de maneira cabal a oportunidade de realização de um projeto para a qual Serra fora levado a chegar atrasado ao encontro. Com os governos de Lula, o projeto truncado em 64 se cumpriu, deu-se o envelhecimento inapelável das propostas políticas arranjadas no período e o país deve entrar em uma nova era.
Se for assim, a vitória de Lula em 2002, e os governos que realizou, tornariam por si sós anacrônica a presença de Serra na disputa de 2010, não fosse o fato de o presidente ter optado por uma forma de escolha do seu candidato a sucessor que é em si mesma a materialização do atraso, pois não só contraria o que seria de esperar de um processo político institucionalizado, como agride a percepção que se tem da trajetória do próprio Lula. Ao escolher por vontade pessoal e fazer essa escolha recair em personagem desprovido de luz própria que, quando muito, não pode propor senão mais do mesmo, o presidente impõe a si mesmo como o limite a que o país pode chegar, confundindo o fim do projeto que tão bem representou com o fim da história que, nesse equívoco, já não precisaria respeitar cronologias: o ano de 2014 precede 2010 e já estaria, nos sonhos lulianos, condenado a repetir a consagração de 2006.
Não é por outra razão que a polarização Serra-Dilma aparece a um só tempo tão inescapável quanto desestimulante. Inescapável porque o brilho do presidente ofusca a opinião pública e reduz artificialmente o espectro do que está em disputa (nesse trilho, as chances de Serra estão menos em ele se mostrar uma alternativa e mais em ele se apresentar como melhor continuador de Lula do que Dilma); desestimulante porque mesmo o menos atento dos observadores recebe com frieza e desconforto esse congelamento da ação política (o desempenho de uma Heloísa Helena nas pesquisas traduz essa ânsia por mudança que ainda não encontrou lastro).
Esse arranjo, a um só tempo autoritário e popular, tem levado alguns críticos a dizer que Lula repete Putin, o todo poderoso ex-presidente da Rússia. Embora a história política das duas sociedades se preste cada vez mais a comparações iluminadoras (escravidão até a segunda metade do século XIX, tentativa autocrática para sair do atraso, populismo presidencialista, oligarquização política corrupta, etc), Putin impôs Medvedev com duas diferenças fundamentais: primeiro, a condição explícita de que o próprio Putin continuaria em cena, e em primeiro plano, agora na figura de primeiro-ministro fortalecido com poderes subtraídos da presidência; segundo, uma maioria governista quase pétrea, sem contraste, no legislativo russo. Ou seja, como já não vai estar lá, Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja, Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o PMDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.
Na verdade, isolando-se apenas os aspectos formais, a candidatura Dilma tem menos semelhança com a de Medvedev na Rússia distante do que repete frágil experimento local recente, proposto em São Paulo em 1996: um governante muito bem avaliado nas pesquisas, mas impossibilitado de se reeleger e cioso do seu capital político (Lula e Maluf), escolhe alguém desconhecido, sem histórico político-eleitoral, moldado para “continuar na mesma enquanto eu vou ali e já volto” (Dilma e Pitta). Para compensar a falta de lastro público próprio, o nome escolhido deve trazer em si mesmo evidência óbvia e inegável que permita dialogar com nossa cultura política de massas vibrando a corda sensível da reparação (Mulher e Negro), e a ele se atribui com estardalhaço um programa governamental tão visível quanto controvertido (PAC e CINGAPURA). Em suma, Dilma é o Pitta de Lula. Para completar, se não fizer o recuo que a lógica exposta acima impõe, caberá mais uma vez a José Serra disputar com o preposto em seu próprio campo e, claro, mais uma vez caberá aos transformadores alargar o espaço que há para uma alternativa a essas duas versões do mesmo. Não será de surpreender se este espaço se revelar maior do que a atual paleta de tintas sugere.
À luz de suas realizações desiguais, e até contraditórias, o período Lula aparece a um só tempo como progressista, continuista, conservador e reacionário: progressista em políticas sociais compensatórias, continuista em política econômica e desenvolvimento, conservador na dimensão institucional-democrática e reacionário em meio ambiente e telecomunicações.
Uma política orientada para a transformação não pode deixar de propor uma reformação política antioligárquica, que valorize a democracia. Uma política orientada para a transformação deve encarar o desafio do nosso desenvolvimento entendendo que ele é bifronte: de um lado, dotar o país de um projeto de desenvolvimento que promova condições sociais, ambientais, energéticas, culturais e industriais mais propícias ao bem estar do nosso povo; de outro lado, um modelo de desenvolvimento em consonância com o potencial do Brasil para ser um dos protagonistas de dias melhores para a humanidade.
Não é a primeira vez na era moderna que um país ainda atrasado em seu desenvolvimento interno descobre que o melhor caminho da mudança para si é aquele que também serve de dispositivo para fazer avançar a luta planetária pela solução das aporias de sua época. A história nos mostra que os passos de quem recua ante a tarefa mais longínqua esmagam as possibilidades de realização da mais próxima. Insistir numa concepção anacrônica de crescimento nacional que contraria as exigências para o desenvolvimento da humanidade em seu conjunto comprometerá nosso próprio futuro como nação ao permitir que interesses apequenados se interponham entre o nosso próprio povo e os benefícios que ele pode receber de um projeto de desenvolvimento sustentável que tenha implicações diretas na transformação do modo de vida de todos os povos.
As evidências dessa concatenação auspiciosa entre o local e o internacional renovam oportunidades de luta pela mudança porque elas já não chegam a nós apenas pela pregação dos mais interessados, ou pela via indireta da Internet, da TV ou dos jornais, antes fazem parte da nossa experiência sensível mais básica, pela vivência de intempéries surpreendentes, de cujas consequências a ninguém é dado escapar, seja pobre ou rico; mulher ou homem; amarelo, negro, branco, mulato ou índio: são calores súbitos, chuvas torrenciais, cheias inusitadas, ventos impetuosos, degelos continentais, secas abrasadoras, mares amotinados. Uma natureza que até bem pouco tempo o homem insciente celebrava como a seu dispor põe desafios à existência humana em razão de técnicas humanas adversas a maltratar todo o globo.
Se o Brasil, gigante pela própria natureza, faz por si só diferença no curso da vida mundial, nós, os brasileiros, muito teremos de pensar e lutar se não quisermos abrir mão de fazer diferença na definição sobre c o m o nosso país participará das escolhas mundiais. Mas não poderá oferecer alternativas de ordem geral quem não souber fazer as escolhas locais para superar seu nanismo político, a começar por aquelas que tornem seu próprio povo um protagonista autônomo.
Nossos valiosos cabedais humanos vêm sendo subvalorizados, subutilizados ou simplesmente malbaratados. Os talentos da nossa gente se dissipam numa escolarização tão precária que ao não contribuir para aliviar a faina cotidiana leva a uma depreciação crescente do próprio conhecimento; nossa má distribuição alimentar e nossas redes mambembes de saúde e saneamento abandonam no desvalimento e na doença um enorme potencial humano de criação; nossa produção cultural aparta da fruição, pelo preço, justamente aqueles que são a sua inspiração e que mais carecem dela; nosso desenvolvimento centrado num crescimento submetido a forças deletérias do mercado frustra nossa gente no momento da vida em que cada um tem mais para oferecer como trabalhador e empreendedor; nosso modo corrupto de fazer política exaure antes do desabrochar o ânimo transformador de uma juventude numerosa como nunca antes; nosso jeito excludente de tocar a inovação tecnológica vem colonizando via propriedade material o que é próprio do mundo virtual livre; nosso modelo de produção agropecuária contraditoriamente repele o homem e maltrata a terra; nosso sistema político oligarquizado desdenha a participação de muitos e remunera a obediência de poucos.
Parte considerável das nossas riquezas naturais ou tem sido gasta com o desperdício que a abundância franquia aos incautos, ou se esvai numa avidez danosa que o estado brasileiro não tem querido conter ou jaz adormecida em seu amazônico potencial restaurador e inovador para nós e para toda a humanidade. A extração ruinosa da madeira de nossas matas tem baixa produtividade e acarreta danos ambientais para todos, sem que os empregos locais que gera possam servir de consolo, uma vez que são de qualidade tão baixa que chegam à escravidão e colocam o Brasil na companhia dos que pior tratam seu próprio povo trabalhador. Escolhas governamentais feitas sob a pressão dos negócios têm cimentado nossa matriz energética em modelos cujos ganhos privados não se realizam sem prejuízos públicos, que se avolumam em estragos ambientais progressivos e degradação continuada da qualidade da vida humana. Custos crescentes empurram uma infraestrutura viária voltada para o uso do automóvel à sua própria inviabilidade, cuja paisagem é a de uma paradoxal imobilidade urbana fumegante pela queima de combustíveis fósseis de obtenção e uso cada vez mais onerosos. Nosso imenso potencial para a produção de energia de origem renovável inicia sua realização já limitado pela miopia que os sempre mesmos interesses privados de curto prazo produzem.
É hora de descortinar uma alternativa política inovadora para o Brasil. Devemos buscar reunir todos aqueles que continuam a perseguir a transformação da vida brasileira e gostem da idéia, e queiram partilhar de igual para igual a alegria, de trabalhar na elaboração de uma proposta de Reformação Política e de um projeto de Desenvolvimento Sustentável para o Brasil. Que seja desenvolvimento não pelas obras vistosas que venha a erguer, mas, sobretudo, porque ofereça possibilidades de uma vida menos cansada, mais saudável e prazerosa para o nosso povo. Que seja sustentável não para alimentar em nós brasileiros a ilusão de que é possível virar as costas ao mundo e sustentar-se por si mesmo; mas porque, ao contrário, estimule com o exemplo brasileiro a luta mundial animada pela convicção de que só é realmente possível ir adiante quando se tem em conta o bem estar de toda a humanidade.
O nome para liderar esse projeto e representa-lo na oportunidade única ensejada pela disputa presidencial de 2010 é o da Senadora Marina Silva, não por acaso aquela cuja atuação demarcou os limites da era Lula, cuja trajetória simboliza o que deve haver de continuidade com o caráter popular dessa mesma era e cuja visão de mundo está em consonância anímica com a perspectiva transformadora que nos remete para além dessa era.
NOTA DE 2009 – Este texto resulta da fusão, com cortes e acréscimos, de dois outros, escritos pelo autor entre novembro de 2008 e janeiro de 2009. O de 2008 tratava apenas da candidatura Dilma e foi enviado à Folha, que não o publicou. O de 2009 foi enviado a amigos tempos depois de escrito, quando o autor imaginou que uma candidatura de Marina em 2010 estava, como continua, sendo imprudentemente negligenciada.