Escolhas passadas arbitram perdas presentes e comprometem o futuro
Carlos Novaes, 25 de novembro de 2014
Dizia eu no artigo anterior que o p-MDB de 2014 está exatamente onde sempre esteve, desde o p-MDB de 1965: coadjuvante de um arranjo político baseado num modelo eleitoral cujo limite é conservador porque destinado a sustentar a desigualdade. O lulopetismo oligarquizado e burocratizado é o substituto, do momento, para a cúpula hierárquica da burocracia paisano-militar, pano de fundo cujas diferenças embaçamos para melhor fazer o foco na continuidade de largo curso que o p-MDB simboliza, e que é preciso entender para poder transformar. O mistério é como isso foi possível não obstante tenhamos assistido na tela da Globo as mudanças contínuas que a sociedade brasileira e o mundo viveram no curso desses 50 anos, a começar pela queda do Muro e pelo processo que nos conduziu, através do voto, a transitar do mando dos generais para os governos do PT.
Se, do ângulo da desigualdade, tudo mudou para que tudo ficasse como estava, vejamos o que há de mais importante do lado da mudança e do lado da permanência. A mudança mais importante, quando se tem em mente entender o que se passa com o objetivo de transformar o país contra a desigualdade, é que multiplicaram-se os atores organizados. Não apenas temos hoje muito mais organizações políticas dos tipos que já tínhamos em 65, como partidos e sindicatos, mas também inventamos e sustentamos muitas outras formas de organização estável de ação coletiva, como ONGs e movimentos sociais de várias feições. Entretanto, em razão mesmo da desigualdade e da forma desigual com que sua magnitude se faz sofrimento para aqueles que estão submetidos a ela, ou seja, em como ela se distribui desigualmente no espectro social, todo esse esforço de ação organizada perdeu potência transformadora: no caso das organizações tradicionais (partidos e sindicatos), depois do impulso inicial, convergente com o primeiro petismo, a velha atração pelos benefícios de ter “chegado lá” levou seus dirigentes ao abandono dos propósitos transformadores iniciais (a Carta aos brasileiros e a manutenção do imposto sindical são os símbolos mais claros dessa capitulação); no caso das organizações de novo tipo, o problema foi que, salvo exceções conhecidas, seus dirigentes desviaram seus vetores de força na direção do Estado, legitimando-o tal como é, tratando-o comodamente como o estuário natural das carências (vide a Constituição postergada), sem que se tivessem formado na sociedade anéis firmes em torno do inegociável na luta contra a desigualdade — em ambos os casos vigorou o velho ditado “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Insistir sobre a capacidade de cooptação do Estado brasileiro para explicar esse fenômeno seria fazer o cachorro correr atrás do próprio rabo, uma vez que essa capacidade é exatamente o simétrico da “inclinação” dos burocratas das organizações à cooptação, e o que dá vigência a elas, digo à capacidade e à “inclinação”, é a desigualdade. Apontar que o fim da desigualdade resolveria o problema seria desconsiderar que o que permite a manutenção da desigualdade são também aquelas capacidade e “inclinação”. Em suma, o problema é entender onde estão apoiadas as forças pró-desigualdade e porque as melhores e mais autênticas forças em prol da mudança, quando não morrem na praia, vítimas da violência paisano-militar do Estado brasileiro, acabam por se acomodar ao sol filtrado por uma desigualdade cuja magnitude não só não diminui, mas parece que se prepara para aumentar, tal como vem acontecendo no chamado mundo desenvolvido, com o qual nos parecemos cada vez mais (ou seria o contrário?).
De fato, o cenário político brasileiro apresenta uma configuração semelhante à vigente em países chamados de primeiro mundo, sendo exemplos mais nítidos a Espanha e a Itália: a primeira porque um movimento de rua recente, ainda mais abrangente e vigoroso do que o nosso, motivado a contestar o ajuste fiscal exigido pelo capital para corrigir efeitos tóxicos das suas próprias estripulias, acabou por também desembocar eleitoralmente na polarização eleitoreira PSOE-PP, com a vitória da alternativa mais conservadora, ou seja, ainda mais apegada do que o PSOE aos dogmas do mercado que haviam gerado o veneno contra cujos efeitos a rua se mobilizara — o disparate se deu porque o PSOE era governo e o PP se assentava na condição confortável de oposição (pela mesma ordem de razões, mais um pouquinho de Petrobrás na campanha e Aécio teria derrotado Dilma).
Já com a Itália nos parecemos duplamente: tanto porque nossa ida às ruas contra os limites do pacto conservador que nos infelicita tem sido pouco menos aguerrida do que lá, sem o ímpeto espanhol (afinal também ele malogrado, tal como sua versão norte-americana, ainda menos efetiva do que o 15M ibérico, o Occupy — sem prejuízo de que, lá como cá, nada chegou ao fim); também parecemos com a Itália, eu dizia, porque a nossa corrupção é igualmente endêmica e, se for combatida a fundo, poderá arrastar com ela todo o sistema político e boa parte das grandes empresas, tal como quase aconteceu na Bota no decurso da chamada “operação mãos limpas” — o que não deixa de ser uma deixa, embora já surjam vozes “sensatas”, saídas dessa nova jabuticaba analítica brasileira, a “crítica camarada”, a nos advertir para os perigos da síndrome de Berlusconi, sem perceber que o remédio prescrito é precisamente o que realizaria a síndrome: como sabido, o fascista bufo, e a “nova” corrupção que o acompanhou, emergiram da devastação provocada pela “mãos limpas” exatamente porque ela não devastou a ordem política, que foi preservada, mas apenas a elite política italiana.
Lá como cá, o mesmo fosso entre a lógica de palácio (mantenedora da ordem desigual), e a lógica da rua (de quem sofre a desigualdade), e o mesmo desfecho frustrante das mobilizações de rua, que esbarram nos aparatos policiais e se dissipam em falsas polarizações eleitoreiras entre as forças que se especializaram em disputar os postos de mando do palácio. Como em cada país o arranjo político se dá segundo modelos eleitorais e partidários peculiares, havendo as combinações institucionais mais variadas para acabar nas mesmas frustrações na representação, a solução não virá pela imitação de uns do modelo eleitoral dos outros, o que deveria ser suficiente para soterrar todas as ilusões em torno de uma reforma política redentora para o Brasil: o país e o mundo precisam de uma transformação política que dobre a aposta na busca de uma forma democrática de resolver conflitos que incorpore ainda mais a vontade dos insatisfeitos.
Conectado àquela mencionada multiplicação de atores organizados verificada no curso dos últimos 50 anos da política brasileira, temos um dispositivo institucional invariante. Partilhado por praticamente todas as chamadas democracias ocidentais, sua longeva solidez porosa ajuda a explicar a perda do ímpeto transformador das novas organizações sociais porque faz dele o principal filtro político contra a mudança: a reeleição infinita para o legislativo, cuja inadequação e imbricação com a desigualdade discuti longamente aqui e em outros textos deste blog. Em poucas linhas: por mais novidades que tragam, aqueles novos atores organizados esbarram num sistema político estruturado para não mudar, pois a reeleição infinita permite a perpetuação dos mesmos personagens e das mesmas rotinas, independentemente de o quanto a sociedade tenha mudado — em outras palavras, se as sociedades mudam devagar, ainda mais lenta se faz a mudança quando elas estão amarradas pela reeleição infinita. Para piorar as coisas, essa dinâmica da reeleição é replicada em praticamente todos as novas organizações: a tendência é reconduzir quem já está no comando, numa negação ao fluxo de mudança que vem da sociedade — não sei não, mas desconfio que as direções de nossas organizações sociais são ainda mais estáveis do que as das grandes empresas, que realizam trocas para não perder o bonde do fluxo das mercadorias.
Explicar a crise de representação pela lógica de palácio (como faz Marcos Nobre com seu pemedebismo) é tomar o efeito como causa do problema: há crise de representação não porque criou-se uma dinâmica de palácio em que uns vetam os outros (isso, quando muito, descreve lá a briga entre eles, enquanto já divorciados da sociedade e ocupados do butim – ao preço de deixar de lado o lastro que permite que eles se deem ao luxo dessa briga), mas porque a escolha do representante em uma sociedade que quer mudança se faz segundo um modelo eleitoral hostil à lógica da rua (na qual estão mais ou menos engajados os representados), que obriga fazer a escolha sempre entre os mesmos, o que leva à fratura do fluxo já lento da mudança pelo acionamento dos freios da inércia que o modelo favorece no comportamento propriamente eleitoral do cidadão que, não obstante, quer mudança.
Essa a engrenagem de onde também saiu a nossa transição lenta, gradual e segura da ditadura para a democracia, com o p-MDB preservando seu papel de pelego graças à especialização na política eleitoral miúda que a ditadura o obrigou a adquirir e para a qual ele seleciona, há 50 anos, os mais tarimbados profissionais nessa correia de transmissão que sai dos municípios, passa pelos Governos e Assembléias estaduais e chega ao Congresso Nacional, sem jamais precisar de projeto nacional algum, pois este sempre será o trabalho do outro — esse é o legado propriamente político da ditadura paisano-militar para a continuidade da desigualdade: sem o saber, ao adestrar o p-MDB, a ditadura criou o partido ideal para tirar proveito desse modelo eleitoral em benefício da manutenção da desigualdade mesmo sob democracia, pois esse partido aglutina forças não por ter um projeto para o país, mas precisamente por não tê-lo: ao mimetizar na política os interesses individuais miúdos que são a matéria escura da sociedade, o p-MDB é o próprio entulho autoritário embrulhado para presente — ele é a memória que empata o fluxo.
Não é à toa que agrada aos tucanos letrados ver o p-MDB cindido em duas criaturas (MDB e PMDB), uma antes da abertura política e outra depois, pois assim se joga fora precisamente a ponte orgânica entre esse antes e esse depois, transfiguração que se deu segundo os desígnios de uma transição “lenta, gradual e segura”: o p-MDB foi o instrumento para a política Geisel-Golbery, conjunto que respondeu pela preservação dos interesses da ordem do capital numa democracia desigualitária. Reapertado pelo lulopetismo, o plano Real tucano é um nó de marinheiro nessa corda antiga, que desde sempre está a amarrar os interesses dos extremos: os muito ricos são governistas enquanto fazem o governo, a quem só assim engolem; e os muito pobres o são porque dependem do governo, a quem só sufragam enquanto lhes dá de comer.
Logo, não foi um erro de cálculo de presidentes mal assessorados que fez do p-MDB peça indispensável ao projeto mudancista que orienta o país desde o realinhamento eleitoral de 1994: o plano Real. PSDB e PT, conquanto não proponham nenhuma ruptura com o passado, precisam do p-MDB na sua disputa improdutiva pelo protagonismo na condução do projeto comum precisamente porque ele só poderia ser dispensado se houvesse uma ruptura com o passado, cuja continuidade ele representa. O fato de no início de cada uma das suas respectivas eras governativas, tanto tucanos como lulopetistas terem tentado seguir sem o p-MDB mostra apenas que, como não poderia deixar de ser, eles partilham não apenas o projeto, mas também seu ponto cego: um projeto que satisfaz aos muito ricos e aos muito pobres, levando os primeiros a ganhar dinheiro como nunca e os segundos a comer como nunca antes, não é um projeto transformador numa ordem econômica com grande desigualdade porque as faixas do meio do espectro social, motor de arranque de qualquer transformação, são justamente aquelas que pagam o pato. Ou seja, uma vez sacrificada a energia social transformadora, o resultado só pode ser as forças mudancistas dependerem da capacidade acomodatícia que a força partidária conservadora provê. A força do p-MDB se nutre duplamente do sofrimento das camadas médias: a desorientação delas tanto favorece a construção da falsa polarização em que ele se encosta como indispensável, como confere a ele os votos indispensáveis para que possa se fazer encosto.
Assim, não faz nenhum sentido enxergar na polarização telecatch da eleição presidencial de 2014 a tradução de um impasse real porque não estaria “mais à vista a possibilidade de que alguém melhore sem que alguém piore”, como quer Marcos Nobre. Não. Há um vasto segmento intermediário perdendo desde o início, seja na remuneração da dívida pública, contraída pela maioria junto aos rentistas, seja na degradação correspondente da qualidade de vida nas maiores cidades. Em outras palavras, o analista não pode comprar a ilusão das camadas médias (entre as quais está toda a camada superior dos empregados da indústria) como se fosse real: os ganhos fátuos que ela comemora em consumo custaram a deterioração da qualidade de vida, enormes perdas ambientais não contabilizadas e o comprometimento da capacidade de investimento do Estado no futuro próximo, tudo em favor dos mais ricos, cujos interesses tem sido garantidos pelas duas forças que se enfrentam desde 1994 e cujo êxito varia conforme elas tenham ou não sucesso em receber a adesão governista dos muito pobres, não sem antes lograrem alcançar a simpatia daquela parte das camadas médias que oscila eleitoralmente de um lado para o outro porque PT e PSDB são mais parecidos entre si do que Democratas com Republicanos, nos EUA, ou PSOE com PP, na Espanha.
Como o Brasil emergente vem mais e mais se parecendo com os emergidos, fica cada vez mais difícil saber quem copiou a quem. Por isso, os modelos explicativos apoiados na ideia de que o país mais adiantado é o espelho do mais atrasado, ou na sua versão mais dialética (a palavra não é minha) sobre um desenvolvimento desigual e combinado, estão com água na gávea — afinal, pelo andar da carruagem da desigualdade em toda parte, parece estar havendo uma reversão pela qual o Brasil que temos sido sempre fora o futuro do mundo, que já não é o que era, como concluiu Paul Valéry diante do horror da primeira guerra mundial. Nessa ordem de idéias, em que se destaca simetrias e semelhanças sob a ordem do capital, e se desconfia das noções de “forma original” e “cópia”, um suposto atraso brasileiro no concerto das nações tem de ser visto com cautela.