EQUIPE NOVA, MAS PARA O MESMO PACTO

Carlos Novaes, 29 de novembro de 2014

 

Todo aquele que compreende a dinâmica do pacto incrementalista conservador em curso desde 1994 e não é um pescador de águas turvas, não pode deixar de reconhecer de público, como faço agora, que Dima acertou ao escolher a nova equipe econômica, embora não seja certo que alcançará o principal resultado almejado: reequilibrar a economia de modo a não atrapalhar Lula em 2018.

Note, leitor, que aqui estou me movendo dentro da lógica do pacto, não na sua crítica, que tenho feito tenazmente neste blog. Essa lógica é bastante simples de entender quando o observador não deixa que os desejos turvem a mente: o pacto é incrementalista e conservador, ou seja, incrementa sempre que pode conservar; se não puder conservar, não incrementa. Em outras palavras, os pobres recebem incrementos se, ao mesmo tempo, os muito ricos puderem conservar tanto o que já tem acumulado como os mecanismos que ensejam essa acumulação.

A natureza da economia, mormente a de mercado, é ser dinâmica, dinamismo que distribui ganhos e perdas, o que exige dos agentes atenção permanente, de modo a minimizar perdas e maximizar ganhos. Mas a lógica do nosso pacto tem um parâmetro de contenção desse dinamismo natural: os muito ricos não podem perder — ao mesmo tempo, claro, esses muito ricos e seus empregados economistas, grande parte deles escrevendo em jornais, fazem a defesa enfática do livre mercado, cortina de fumaça que quando não é mera decorrência do que há de obtuso nessa gente, se faz necessária para atrapalhar a atividade cognitiva dos adversários, que não se realizam como adversários porque são a grande maioria insciente, que suporta as perdas porque não tem a mesma capacidade de agência dos seus antagonistas poderosos (até porque pouco numerosos).

No âmbito desse dinamismo ancorado pela exigência de os muito ricos nada perderem, as margens de manobra para o incrementalismo são estreitas, muito estreitas, afinal, não só os muito ricos detém um enorme volume de riqueza, que em suas mãos é improdutiva, sonegando energia a todo o sistema, como também os mecanismos que permitem acumular essa riqueza travam energias sociais e produtivas que, uma vez libertas, incrementariam o desenvolvimento, com o inconveniente, entretanto, de distribuir riqueza, ao invés de concentrá-la.

Segundo o que foi combinado em 1994 (plano Real) e em 2002 (na Carta de adesão assinada pelo lulopetismo), o que resta ao gerente do pacto é arbitrar perdas e ganhos no âmbito delimitado do variegado andar de baixo: as classes médias sofrem um pouco mais para que os muito pobres possam comer, tenham algum abrigo e recebam instrução duvidosa. Quando as trocas com o mundo exterior nos são favoráveis, há um pouco mais de margem de manobra para o gerente, como na segunda fase do período Lula, mas sempre depois que os muito ricos, no caso os bancos, o agronegócio e a mineração, tenham tirado o seu quinhão, seja em ganhos diretos, seja naqueles auferidos dos prejuízos ambientais não contabilizados que eles legam às gerações futuras (nem tão futuras assim, a julgar pela crise da água).

Ao escolher a nova equipe econômica Dilma acertou porque está, com algum atraso, adaptando a gerência ao ritmo de uma fase do pacto pouco propícia ao incrementalismo, tal como Lula fez no seu primeiro mandato — escolhas que se dão, como não poderia deixar de ser, respeitando a dinâmica ancorada do pacto: em tempo de vacas magras, os muito ricos seguem sua vida e os outros sofrem o rearranjo conjuntural necessário à manutenção do sentido geral do arranjo primordial. De onde a surpresa? Por que o escândalo?

Interpretar as declarações de Dilma na campanha como um compromisso de quebrar o pacto é coisa para ignorante ou espertinho. Quando ela disse que os tucanos “plantam inflação para colher juros” não fazia a promessa imbecil de jamais subir juros, pois isso seria abrir mão de fazer política econômica; ela antes demarcava uma diferença para com o outro disputante, membro de uma turma cuja predileção por políticas ortodoxas deixa escapar oportunidades de interpretar o pacto de maneira menos dolorosa aos de baixo  — foi a isso que se reduziu o lulopetismo dentro do pacto incrementalista conservador, companheiro!

Ainda nessa horda dos ignorantes, vale à pena comentar aqueles que, sendo “do contra” por profissão, depois de passarem anos criticando Dilma por se “imiscuir” na condução da economia, vem agora reclamar que ela não aparece quando a nova equipe fala com desenvoltura e por si mesma sobre a correção de rumos dentro da dinâmica ancorada do pacto. O mais curioso é que são esses mesmos que, nos últimos tempos, vem não só insistindo na velha impertinência de independência do Banco Central, como agora inventaram a figura do ministro da Fazenda independente. Isso equivale a pretender que o gerente do pacto, além de obedecer a âncora que lhe é inerente, abra mão dos instrumentos que ainda permitem alguma arbitragem propriamente governamental na distribuição de perdas e danos entre os de baixo. Ou seja, esses ignorantes estão a serviço daquela ganância que, instruída por experimentalismo sádico, não abre mão de explorar as margens eventuais do sofrimento alheio que ainda podem ser apropriadas como ganho pelo “mercado”.

Aqueles que turvam a água para poder pescar o fazem porque não suportam assistir a boa pesca eleitoral que os adversários fazem do outro lado desse lago que julgavam só seu, e que insistem em não querer compartilhar. Como não querem escancarar o ridículo de ficar contra a adoção de políticas que também são suas, preferem o ridículo de torcer para que não dê certo ou, quando mais ridículos, ficam a acusar o outro lado de trair a si mesmo, numa apropriação indébita e anacrônica de uma indignação alheia que há muito já não encontra lastro. Isso é que é estelionato ideológico!

Finalmente, ainda nesse capítulo dos ridículos, quando  a gente pensa que já viu tudo, o pluralismo da Folha de S.Paulo não nos desampara e abre espaço para o “ridículo atroz”, como gosta de dizer o Delfim Neto quando lhe convém sacanear os neoclássicos — penso aqui naquela alma sonhática frustrada (“um Cubas!”*), que almejou um ministério e, agora, além de dar eco à ladainha sobre a “incoerência” de Dilma, geme sua inveja do colega de turma nomeado advertindo-o dos riscos reputacionais da investidura para quem almeja voltar, algum dia, ao disputado mercado de servir aos muito ricos. Isso é que é papelão!

Para nós, que compreendemos a dinâmica do pacto e não somos pescadores de águas turvas, resta torcer para que Dilma acerte o mais que possa, sempre que tiver o intuito de minorar o sofrimento dos mais fracos, e trabalhar para que essa inevitável dose adicional de sofrimento se junte à memória sofrida na forma de espírito de luta contra o pacto e as forças que o sustentam (voltarei a este tema no quarto e último artigo da série em andamento, DESIGUALDADE, MUDANCISMO E VOTO).

* – referência a uma passagem na vida do personagem central  do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

2 pensou em “EQUIPE NOVA, MAS PARA O MESMO PACTO

  1. Rodrigo

    Estou para ler o livro “A sociedade justa e seus inimigos- Desvende as estruturas e as práticas que sustentam as desigualdades”, de Antonio David Cattani e Marcelo Ramos Oliveira. Li apenas a orelha do livro por enquanto, e ficou-me a impressão, repito, impressão, de que ele vai na linha do que o Novaes vem escrevendo.

    Responder
    1. Anderson Thadeu

      Obrigado pela dica! Encontrei um pequeno artigo sobre o citado livro e fiquei bastante interessado em lê-lo também. O artigo, de autoria de Paulo L. Marques, intitula-se ‘Gerard Depardieu e os inimigos da sociedade justa’.
      Muita energia e leitura para compreender esse Brasil…

      Responder

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.