ATENÇÃO: Carlos Novaes, junho de 2009
O texto abaixo deve ser lido junto com este aqui, da mesma época. As primeiras versões destes dois textos foram escritas entre o final de 2008 e o início de 2009. Em meados de 2009 eles foram modificados, enviados a vários interlocutores e publicados no site do então Movimento Marina Silva. O compromisso explicativo deste blog (cabe ao leitor avaliar se proveitoso ou não) me leva a indicar a leitura deles, pois minha maneira de avaliar a conjuntura atual segue parâmetros que vêm de longe, o que me dá um conforto duplo: me protege de ter surpresas infundadas e facilita o comentário dos fatos.
Ao longo dos 13 anos em que fez a disputa para levar Lula à presidência (1989-2002), o PT sempre se empenhou em oferecer à sociedade brasileira o que de melhor pôde produzir como projeto, seja no diagnóstico, seja nas propostas de mudança. Mas, já na reeleição de 2006, embora fosse natural que a lógica de governo tivesse peso importante na discussão sobre como prosseguir, afinal buscava-se reconduzir Lula, um partido fragilizado pelos acontecimentos de 2005 acabou por não desempenhar o papel que outrora desempenhara no desenho de um projeto inovador, que contribuísse para liberar o segundo mandato de certas amarras do primeiro. Deu-se o contrário, ganhou força, ao invés de perde-la, uma dimensão do passado que não quer passar e que se infiltra não apenas ali onde a podemos identificar como má, mas também na forma como se passou a conceber o que deve ser celebrado como bom.
Deixemos aos estudiosos buscar se há precedência e, em havendo, se o que veio primeiro foi o abandono do projeto ou a negação das práticas inovadoras. Seja como for, faz 20 anos o PT escolheu pela primeira vez um candidato para representá-lo na disputa pela presidência da República. Naquela, como em todas as eleições presidenciais seguintes, quem era do PT decidiu pelo nome de Lula com o entusiasmo de quem foi chamado a participar. Mesmo quando foi o caso de escolher entre a amplamente majoritária opção Lula e o senador Suplicy, cada um dos petistas, tivesse a preferência que tivesse, se sentiu respeitado e contemplado tanto no método empregado para a escolha quanto na decisão final pelo nome de Lula, pois ela se deu reafirmando a tradição de consulta às bases.
Em 2010, em razão das regras do jogo democrático brasileiro, o petista não poderá contar com uma candidatura Lula à presidência — é imperativo mudar. Mas a exigência era para que se mudasse de candidato, não de método. Para os petistas tratava-se, agora, da experiência inédita de escolher um nome entre vários possíveis. Em política, cada um de nós tem a sua preferência pessoal e ela não vale mais do que a de qualquer outro. Só se sabe o quanto nossa vontade coincide com a do companheiro do lado ou distante quando há um movimento aberto de debate, consulta, p a r t i c i p a ç ã o, reafirmando um padrão democrático que lança um facho de luz contra a prática dos coronéis dos partidos convencionais.
Mesmo diante da notória, ainda que calada, insatisfação de grande parte de seus militantes, filiados e simpatizantes, a direção do PT se rendeu a um outro método de escolha: a chancela pura e simples de uma vontade pessoal, com as mesuras cênicas, e até cínicas, que vão se tornando praxe no arremedar a participação que ontem fez grande aquele que hoje faz uso da força a si confiada para impor. A canga imobilizadora em que obsequiosamente a direção do PT acomodou sua vontade repele o entusiasmo daqueles que driblam as rotinas cotidianas abrindo espaços para lutar, precisamente porque jamais aceitaram delegar aos profissionais da política a decisão sobre os nossos destinos naquilo que têm de comum, de público. Se os petistas deixarem, essa direção os aquartelará no quintal da obediência, em tudo desfavorável à realização da democracia ampla pela qual se tem lutado, pautados por valorizar em cada um a vontade pessoal e intransferível de fazer as escolhas que resultam em mudanças, deitando fora métodos saídos do populismo, expressão de massas da dimensão autoritária da nossa cultura política.
Mas, afinal, por que o presidente Lula escolheu uma neo-petista neófita em urnas como sua preferida para a sucessão presidencial e recebeu a aceitação do PT e do petismo para a imposição da ministra Dilma Roussef como candidata?
A preferência de Lula decorre de duas limitações: da natureza instrumental do seu vínculo com o PT e, dela, de sua inclinação por substituir o petismo pelo lulismo; e da tendência, pode-se dizer natural, de ver a si mesmo como o limite a que a esquerda brasileira pode atingir.
A rendição do PT se dá pela natureza de seu vínculo com o Estado, que se baseia, antes de tudo, na busca pela primazia de nomear ou se fazer nomear.
Quanto ao petismo – desapetrechado de imaginário que revigore energias utópicas, distraído de propostas institucionais inovadoras, não obstante abrigue quem as faça –, vem se deixando reduzir à condição de dragão produtor de fumaça para encobrir o castelo em ruínas até que se resolva o clinch entre o carisma e a burocracia interessada.
Desde muito cedo Lula compreendeu que o PT era uma ferramenta necessária, mas não suficientemente manejável. Como já tive oportunidade de dizer em outro texto – na linha weberiana de que líderes carismáticos querem liberdade para agir e burocracias querem rotinas para controlar –, como resultado dos aprendizados da disputa de 1989, Lula montou o Governo Paralelo como uma burocracia a serviço do carisma, paralela não a Collor, mas ao PT, que crescia longe do seu controle. Tanto que jamais participou senão ritualmente (discursos de abertura e encerramento) dos Encontros e Congressos do partido, embora tenha dado detida atenção ao seu Instituto Cidadania, saído do Governo Paralelo.
Essa relação entre o carisma e a burocracia partidária encontrava expressão plástica cabal no tabuleiro armado ao longo dos anos em que Lula (o carisma) se candidatava a presidente em campanhas organizadas por Dirceu (a máquina). Esse arranjo continha um tenso dispositivo de amarração de interesses: a candidatura do próprio Dirceu à sucessão da almejada presidência Lula. O carisma abriria caminho para o nome da máquina desprovido de apelo eleitoral amplo, e só um acontecimento externo alteraria o curso arquitetado por Dirceu e vivido com desconforto por Lula – salvaguardada a estatura de cada personagem, foi mais ou menos o que Ruy Falcão tentou arrancar como vice de Marta na disputa para a prefeitura de SP em 2004: o desprezo insciente pela natureza não-petista do êxito de Marta em 2000, somado à precipitação de ambições em que a prefeita se deixou arrastar (Lula sempre soube que a vitória dele não foi petista e jamais teria aceitado Dirceu como seu vice) levaram à derrocada previsível, evidente para alguns só quando da tentativa atabalhoada de voltar atrás em 2008, quando Marta buscou, em vão, atrair o Quércia preterido na disputa de quatro anos antes por um Falcão agora em submersão tática. O alijamento do grupo de Marta do governo Lula provém dessas escolhas e dos erros conexos. Agora, no açodamento imprudente (e impudente) de mais uma vez cortar caminho, os parceiros de Marta a empurraram em sua ruidosa, e com ares de primeiros da fila, adesão à opção Dilma. Voltemos.
O episódio do mensalão deu a Lula ocasião para um passo largo na solução de um problema antigo: submeter o PT. A demissão com cassação que fez de José Dirceu uma assombração política abriu um horizonte novo para Lula, que passou a dispor de uma liberdade de movimentos inédita, pois, de um só golpe, removera-se Dirceu do governo, da direção do partido e do calendário eleitoral. Nessa ordem de idéias, o episódio de Belo Horizonte em 2008 (aliança entre Pimentel-PT e Aécio-PSDB), foi ilustrativo de como, desde a derrocada de Dirceu, o carisma se sobrepôs à dinâmica partidária institucional: Lula se posicionou ao lado da solução não-partidária, o partido esperneou dando sinais, pela primeira vez desde 2005, de que pretendia preservar uma zona de autonomia na relação com o carisma, mas acabou cedendo. Daí para impor Dilma foi um pulo nos gráficos das pesquisas de avaliação do governo. Para Lula, a ministra se encaixa à perfeição como silhueta exclusiva de seu facho de luz: o carisma abrindo caminho para uma candidatura lunar, sem apelo eleitoral próprio, desamarrada da máquina partidária e sem afinidades com o petismo (o carismático Vargas fez parecido quando escolheu eleger o anódino general Eurico Dutra em 1946, para acabar voltando em 1950…).
Mas, se estavam claras a falta de trânsito de Dilma na máquina partidária, sua condição de oferecer, no máximo, mais do mesmo e a fragilidade política de sua investidura, o que teria impedido o PT de apresentar um ou mais nomes alternativos à preferência pessoal do presidente?
O que tolheu a direção do PT é sua acomodação ao retorno político que proporciona a desigualdade brasileira, fundada na ausência de habilitação educacional formal da imensa maioria do povo. Nessas condições, toda ação coletiva institucionalizante via recrutamento dos de baixo acaba por se tornar ela própria instrumento de ascensão social. A máquina vira instrumento para contornar as agruras impostas pela desigualdade. Fazer parte dela possibilita ganhos e salários que a simples “luta brava na cidade” não ofereceria, pela razão também simples de que a “cidade” está organizada para manter embaixo os de baixo. Pela acomodação, as possibilidades de avanço social generalizado ficam tão remotas, as perspectivas de transformação assumem talhe tão quimérico, que as melhores e mais aguerridas intenções têm soçobrado no jogo miúdo dos mandatos, contratos e nomeações que se teme perder ao enfrentar o dono da caneta respectiva. Como é próprio dos que se dão prazos largos para ocupação do poder (os 20 anos de Sérgio Mota e de Zé Dirceu), o PT vai se restringindo ao papel de instrumento a serviço de uma, e apenas uma, geração.
Dessa perspectiva, quando se olha não para as nomeações, mas para as políticas públicas em si, vê-se que o PT não está retirando dos programas sociais do governo, com relevo para o Bolsa-família, as conclusões políticas mais profícuas para uma esquerda que não abandonou pensar o longo prazo para além da biografia de quem pensa: esses programas sociais deveriam ser valorizados politicamente não só, nem principalmente, pelo bem-estar que geram (e geram!), mas sobretudo por abrir a possibilidade de se passar a contar com uma nova e positiva figura de cidadão insatisfeito.
Também parece ter escapado que uma crise (dê-se a ela o nome de econômica, ou o nome Sarney) deveria ser uma oportunidade para o petismo voltar a influir no PT e restabelecer, num patamar política, ideológica e programaticamente mais qualificado, a tensão entre o carisma e o partido: no plano simbólico, a crise permitiria resgatar o debate sobre mais ou menos estado nas relações com o mercado; ou mais ou menos vínculo entre a ética e a política, temas emblemáticos dos embates entre esquerda e direita que, repostos, abririam perspectivas novas de persuasão e recrutamento, mormente se articulados a temário de mudança institucional motivadora; no plano político, uma crise em geral impõe a distinção partido-governo, uma vez que o partido, ao contrário do governo, tem o direito, e o dever, de ver na crise uma oportunidade para se desfazer de amarras que o própria crise tornou anacrônicas ou simplesmente desmoralizou; no plano eleitoral ou de um futuro governo, a crise, seja a econômica, seja a político-institucional, torna mais arriscada a aposta em um nome sem memória eleitoral e, assim, desprovido de liames próprios com eleitores e forças políticas.