A ritualização da ira
Carlos Novaes, 27 de abril de 2016
Nos três artigos anteriores desta série tentei mostrar, entre outras coisas, que o impeachment de Dilma reproduz o modus operandi imposto à política brasileira pela ditadura paisano-militar (nas circunstâncias atuais, esse legado nefasto se aproveita do cadáver do lulopetismo, morto, como vimos, justamente porque desistiu de enfrentar a desigualdade, que é o fundamento do Estado de Direito Autoritário que nos infelicita). Esse modus operandi pode ser resumido assim: um Legislativo hegemonizado por agrupamentos desprovidos de qualquer projeto de desenvolvimento e consolidação democrática para o país, sempre que vê ameaçado o status quo em que foi treinado a obter e preservar vantagens para si, passa a criar, em forma de “crise”, dificuldades para o Executivo, de modo a simular sintonia com a sociedade insatisfeita e, sobretudo, dissipar a energia transformadora emitida pelos segmentos mobilizados dela, que estão justamente a ameaçar a manutenção desse status quo.
Dizendo o mesmo de outro modo, ao contrário do que temos sido levados a acreditar, quando olhada de mais longe a dinâmica da política brasileira dos últimos 50 anos deixa ver poucas variações: sob ditadura ou sob democracia, o Legislativo, onde os mandões, depois de se acomodarem às práticas de dispositivo paisano da ditadura, se habituaram a não ter projeto para o país e fizeram da expertise adquirida naquela acomodação um instrumento para a defesa da ordem desigual que é favorável a si; um Legislativo assim degradado, eu dizia, se opõe ao Executivo, a quem as responsabilidades inerentes às funções exercidas — e, sob democracia, também em razão das expectativas geradas para obter o voto — obrigam a apresentar, e a pôr em prática, algum projeto que leve o país a esta ou àquela mudança, o que sempre implica incerteza incômoda para os cardeais do Congresso (ao contrário do que se pensa, e do que seria de almejar numa democracia consolidada, no Brasil o Legislativo está ainda mais agarrado a rotinas do que o Executivo, pois atua segundo práticas paisanas que transitaram eleitoralmente da ditadura para a democracia).
Sob um arranjo desses, e numa sociedade encharcada de demandas insatisfeitas como a nossa, qualquer dificuldade institucional mais séria para a reprodução da ordem (uma Lava Jato, por exemplo), ou diante de mobilização direta da sociedade que sofre as consequências dessa mesma desigualdade (um panelaço contra a carestia como o de 1976; ou as manifestações contra a tarifa de transportes em 2103), o Executivo estará sempre vulnerável para que se faça nele o desenho do alvo – para bem e para mal. Se as coisas se complicam, as forças que hegemonizam as práticas autoritárias paisanas logo começam a preparar o bote, que pode acabar em desengate: primeiro, passam a cobrar mais caro pelo apoio do Legislativo à chamada governabilidade (como fizeram com o Figueiredo da Anistia, com o Sarney da ressaca do cruzado, com o FHC da emenda da reeleição e com o Lula do mensalão, salvaguardadas as diferenças de objetivos, claro, e as margens havidas para a chantagem em cada caso); segundo, se o ardil não funciona e as coisas pioram, isolam o Executivo na condição de mal a vencer, tangendo contra ele a insatisfação popular, distraindo-a da conclusão de que o mal a superar engloba todo o sistema político garantidor da desigualdade – foi assim com o Figueiredo da fase final da transição “lenta, gradual e segura”, foi assim com Collor e está a ser assim com Dilma (naturalmente, para isolar o essencial estou a deixar de lado as diferenças do que se pôs em jogo em cada caso).
Longe de mim atribuir o desfecho comum para esses estados de coisas a uma conspiração, afinal, esse desenho final é resultado, dentre outros fatores, tanto de inúmeras conspirações inconclusivas rivais entre si, quanto de entrechoques havidos na sociedade mesma em cada um dos momentos históricos respectivos. Também estou longe de não valorizar as diferenças marcantes entre estar submetido ao dispositivo paisano da representação congressual sob gestão ditatorial (no caso, militar) ou sob gestão democrática: a eleição presidencial direta trouxe óbvias diferenças para melhor. Menos óbvio, porém, é o que há de continuidade entre democracia e ditadura, e é essa continuidade que estou a apontar, de modo a nos permitir explorar o potencial emancipatório da atual crise brasileira, cujo desatamento depende da lucidez e da disposição de luta que tenhamos para encarar o problema central: o Legislativo. Vejamos, nas linhas a seguir, como ele tem obtido sucesso e, em seguida, no próximo post, exploremos as falsas soluções (sempre mais prováveis), deixando para o post final a discussão de um possível caminho de superação.
Embora com dificuldades crescentes, essa operação do dispositivo paisano via Legislativo tem se realizado com êxito porque, de um lado, a despeito de insatisfeita, a sociedade brasileira é preguiçosamente conservadora, o que a leva a evitar desfecho cabal para suas inquietações, isto é, está sempre na torcida íntima para que “os políticos se entendam” (o que robustece o que deveria ser vencido) e, de outro lado, o dispositivo paisano se sai bem também porque o dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura, a PM, jamais deixou de ser mobilizado para lembrar ao nosso povo os custos do engajamento na luta contra a ordem, como Alckmin fez contra os manifestantes de junho de 2013 e, mais recentemente, contra as mobilizações dos adolescentes secundaristas.
Mas as dificuldades para repetir a pantomima com êxito têm aumentado, já que as contradições postas pela desigualdade não param de crescer e a ordem política moldada à imagem e semelhança da desigualdade não pára de se desmoralizar. E ela se desmoraliza porque não há roubalheira que chegue para contentar a todos os agentes políticos que aderiram ao esquemão – não há parceria Público-Privada que absorva todos os agrupamentos voltados a ganhar com, e a driblar a, desigualdade quando todo mundo (de Odebrecht a Paulinho da Força, de Aécio a Cunha) já descobriu o caminho das pedras – a disputa eleitoral adquiriu contornos de uma luta de morte.
Daí a Lava Jato ter encontrado tanto material criminal, o que, por sua vez, levou todo o sistema político a se mobilizar para contê-la ou dela tirar vantagem. Provida de dois braços, o da primeira instância, no Paraná, e o da última instância, no Supremo, no decorrer da luta a Lava Jato teve sua inevitável ênfase no PT (inevitável porque quando tudo começou o partido já ocupava o centro do poder político federal há 12 anos) empurrada para uma unilateralidade que, até aqui, na prática, dirigiu apenas contra o lulopetismo uma corrupção que diz respeito a todo o sistema político. Embora a equipe do Paraná estivesse impedida por lei de investigar pessoas com fôro privilegiado, certas escolhas de Moro não deixam dúvidas sobre os objetivos políticos de decisões suas contra Lula. Ou seja, no andamento das disputas em torno da Lava Jato, mesmo a primeira instância passou a oferecer evidências do caráter unilateral das suas escolhas. Caso bem diferente é o da esfera federal, protagonizada pelo STF, pois ali a unilateralidade tem sido total: salvo no caso de Cunha, nada vai adiante contra políticos graúdos fora do PT.
O Paraná foi unilateral em sua celeridade; o Supremo vai sendo unilateral na sua morosidade – ambos dão exemplo do exercício faccioso dos poderes institucionais próprio do nosso Estado de Direito Autoritário: o primeiro ofereceu material que serviu ao incitamento da sociedade; o segundo digere o material num ritmo que serve à dissuasão dela – entre uma escolha e outra, o impeachment. Combinadas com a maioria facciosa improvisada no Legislativo, essas práticas do Judiciário conferem a todo o conjunto um ar de encenação sacrificial onde a vítima é o Executivo, contra quem se fez a ritualização da ira da sociedade.
Mas ainda é possível que essa crise não desemboque num novo acordão contra a mudança, pois ao longo dos últimos anos, e especialmente no curso dos últimos meses, a sociedade tem mostrado ganhos de consciência sobre o que está em jogo. O contraste entre as práticas facciosas descritas acima e esses ganhos de consciência apareceu na forma da estupefação, que uniu a todos, qualquer que fosse o lado a que se tenha deixado arrastar nessa disputa. Por um momento nos esquecemos da crise, de Dilma, do PT, de Temer, de Lula ou da corrupção e nos concentramos na realidade: a conduta efetiva, indubitável, ali, na nossa frente, dessa corja liderada por Cunha, que nos “representa”. Tal como num programa de auditório em que as aberrações saíram de controle e a realidade da violência cotidiana se deixa ver, também naquele domingo nosso parlamento se viu desnudo em sua violência e cinismo, diante de um país perplexo.
A força da realidade se impôs a todo o alarido da mídia, a todas as análises mistificadoras, e pudemos ver, ao vivo e em cores, de que material é feita a representação legislativa que nossa negligência permitiu entronizar-se. A ninguém escapou o imenso fosso, talvez tão grande quanto o da desigualdade, entre a importância que fora dada ao impeachment ao longo de 16 meses de luta e aquela encenação decisória dele: a performance coerente dos atores fez aflorar a pequenez do melodrama que levara as ruas a se dividirem improdutivamente entre vilões e mocinhos, e nos deixou em vias de enxergar a extensão da tragédia.
Caro Carlos Novaes,
Ao que o senhor se refere a ” todo o alarido da mídia … todas as análises mistificadoras”, podemos chamar de “propaganda unilateral”? Não são os meios de comunicação em boa parte responsáveis pelo insuflamento da ira popular, enquanto continuem a apontar só para um partido político?
Obrigado!