O ESGOTAMENTO DO RECURSO AO IMPEACHMENT

Carlos Novaes, 16 de junho de 2017

 

Quem acompanha este blog está familiarizado com a ideia de que, desde a redemocratização eleitoral, o Congresso brasileiro tem sido mais conservador do que os presidentes da República eleitos. Mais conservador, aqui, significa mais avesso à mudança. A razão dessa assimetria é simples de entender: o Congresso da redemocratização herdou da ditadura paisano-militar seu dispositivo paisano, o p-MDB, tendo como linha auxiliar o PFL-DEM, partidos que haviam criado raízes na dinâmica eleitoral miúda, não interrompida pela ditadura. Esses partidos sempre enxergaram a mudança como ameaça à situação que haviam conquistado no período autoritário e, por isso, se empenharam em obter a transição lenta, gradual e segura.

Como uma desigualdade como a brasileira não pode deixar de colocar problemas à reprodução da ordem política, especialmente quando há um sistema eleitoral aberto à participação popular, o desafio para os que buscam manter a desigualdade é obter o voto de quem quer mudança para depois fazer com que, malgrado melhorias instáveis, tudo fique como está. Faz mais de trinta anos que eles tem tido sucesso nisso — chegaram a embrulhar pela cooptação PSDB e PT — mas ao preço de acumular contradições que estão sempre a criar problemas novos. Ou seja, o Brasil tem vivido sob o regime político da improvisação.

Como já discuti aqui, sempre que as contradições desse estado de coisas resultam em mobilização popular hostil ao mando, e torna-se incontornável oferecer algum aceno à mudança, a ira popular é desviada contra o Executivo (gestão), numa operação que visa preservar o coração do sistema nefasto: o Congresso (representação). Essa é a explicação para estarmos à beira do terceiro impeachment presidencial em menos de trinta anos. Com isso, se vendem várias ilusões em uma única manobra: primeiro, como o impeachment é tarefa congressual, o Congresso não apenas fica preservado, mas se  fortalece como instância de solução do problema, quando é nele que estão concentrados nossos problemas; segundo, e por isso mesmo, reitera-se que o problema é o presidencialismo imperial (mas que força é essa, que vive ameaçada de cair?!); terceiro, e até contraditoriamente, se faz mais uma aposta em que a solução virá com a escolha de um novo presidente, realimentando a dança das cadeiras em que o Congresso nunca deixa de encontrar onde sentar!

Em outras palavras, o impeachment tem sido uma manobra para contornar crises. Mas como a crise se aprofundou numa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o impeachment já não tem o poder prestidigitador que vinha tendo, pois a ilegitimidade do próprio Congresso veio a furo.  A melhor maneira de perceber que um truque de mágica ficou manjado é vê-lo a ser encenado por qualquer um – pois é o que estamos a ver: há gente propondo impeachment por todo lado; ele, o impeachment, virou a varinha de condão da luta de facções em que está abismado nosso Estado de Direito Autoritário. Há facções que o cogitam contra Fachin; outras contra Gilmar e, até, contra o Janot.

Olhada assim, a situação de Temer é esdruxulamente nova, e é nessa novidade que ele se segura: não é exatamente que falte a eles um nome para substitui-lo, falta o método; afinal, com que cara nossos “representantes” se dirigiriam ao microfone para declarar SIM ao afastamento de Temer?! Eles estão numa sinuca de bico, pois está à vista de todos que a fábula fala deles. Em artigo recente, explorei esse mesmo dilema por outro ângulo: o que falta é o lugar, não um nome.

Fica o Registro:

– Sem fazer caso dessa crise de legitimidade que os engoliu, os deputados e senadores continuam a agir como se nos representassem e apertam o acelerador da parafernália institucional destinada a roubar da sociedade qualquer possibilidade de buscar a mudança: querem improvisar o voto em lista ou, pelo menos, o chamado distritão, e estão em vias de aprovar nada menos do que mais 3 bilhões de reais do nosso dinheiro para gastarem contra nós na campanha eleitoral de 2018. Até quando, Brasil?!?

– Os tucanos, coitados, foram na do FHC e subiram na pinguela, estando a descobrir que não sabem nadar!

– Sintoma adicional do aspecto terminal da crise é o fato de haver quem sonhe em voltar à polarização Lula-FHC, agora mais fajuta do que nunca.

– Mais abaixo, links para uma sequência de três recentes palestras minhas sobre o que nos levou à crise atual. Entendo que a participação do público ao final de cada palestra foi fundamental, inclusive para que eu deixasse mais clara a minha opinião.

PALESTRA 1

PALESTRA 2

PALESTRA 3 

5 pensou em “O ESGOTAMENTO DO RECURSO AO IMPEACHMENT

  1. Rodrigo

    Boa Noite, Novaes

    Sou leitor do Blog e pude assistir as exposições no Youtube. Gostaria de parabenizá-lo pela apresentação e tecer um questionamento sobre a análise:

    1- A despeito da alta qualidade da análise que, despretensiosamente, vou chamar de estrutural, acerca da forma político-institucional legada pela ditadura paisano-militar, percebi a falta de um elemento que acho indispensável para compreensão da crise atual, para além de nossas contradições representativas. Eu quero me referir aos interesses norte-americanos sobre as macro-políticas de cunho nacional-desenvolvimentista, levadas a diante pelo petismo. Parece-me haver evidências suficientes dessa sutil ingerência (financiamento de think tank, espionagem presidencial, submissão de algumas facções tanto no plano político, quanto nas forças armadas, aos interesses da CIA etc. – Ainda hoje, veio à tona encontros de Etchegoyen com Chefe da Cia, e há indícios da colaboração de Temer também para com os interesses norte-americanos). A vetorização desta crise mais recente não atende estes interesses? O programa nuclear brasileiro, a pretensão de uma frota de submarinos nucleares, ou o mero avanço de “nossas” gigantes corruptas (Ode… e JB…) em mercados externos, não seria motivo o bastante para articular uma crise, talvez de forma mais eficiente do que nossa própria insatisfação?

    Em suma, gostaria de saber se você não acha este tipo de abordagem relevante para analisar o nosso momento político, e se podemos pensar realmente em constituir uma república sem olhar para os interesses americanos na região. Indo mais além, os interesses americanos não são operados de maneira tão sofisticada, que se incumbiriam de operar no nível da nossa própria “usinagem de memórias?”

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    1. Carlos Novaes

      Rodrigo,
      não quero ser mais um a especular sobre o que não conheço. É muito fácil empilhar supostas evidências acerca da origem externa da crise. Se os interesses dos EUA são reais, não me parece simples enxergar como eles se beneficiariam de uma crise que, de resto, encontrou suficiente matéria de combustão no plano interno. Em suma, não vejo como entender melhor o que se passa, ou ajuizar melhor qualquer saída, olhando para os EUA — temos de olhar para o Brasil, mesmo.

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  2. André Marcelino Nunes

    Excelentes análises do política brasileira. Nesses dias tem sido raras narrativas como estas. A regra costuma ser a pequenês dos dicursos a favor ou contra o lulo-petismo, da volta da ditadura, da união que devemos ter contra a “crise econômica” que o Brasil estaria passando, etc.
    Parece incrível que a maneira como sempre se fez política no Brasil esteja longe das análises.

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