Carlos Novaes, maio de 2011
Quando se identifica um problema, é de esperar que ao diagnóstico se sigam uma ou mais medidas de solução coerentes com a mudança almejada. Não menos trivial é supor que havendo mais de uma medida a ser tomada, elas sejam concebidas de modo a não contrariarem umas às outras.
O propósito desse texto é mostrar, por um lado, que a Lista Fechada e o Financiamento Público de Campanha são medidas incoerentes com ao diagnóstico de que nossa representação política vai mal e, por outro, esclarecer que as propostas coerentes pela Proibição das Coligações Proporcionais e pela adoção da Candidatura Avulsa, livre de partido, são medidas contraditórias com a Lista Fechada.
A insatisfação com a nossa representação política encontra lastro final numa constatação simples: nossos representantes não nos representam. Ora porque estão distantes, ora porque não respeitam compromissos programáticos, ora porque se tornaram assalariados autointeressados de uma nova “classe”, a classe política, ora porque são ladrões, corruptos ou corruptores, ora porque são instrumentos de seus financiadores – sem prejuízo das combinações que se queira imaginar entre duas ou mais dessas mazelas.
A Lista Fechada retira do eleitor o instrumento da escolha individual nominal, transferindo às direções partidárias (sejam elas uma Executiva, um Diretório ou uma Convenção – instâncias essas comandadas por esses políticos que não nos representam) essa escolha dos indivíduos que irão nos representar (sim, tenhamos em mente, sempre, que o representante é um indivíduo). Salta aos olhos que não há correlação virtuosa entre desejo e medida, pois a Lista Fechada:
- VAI afastar ainda mais o eleitor do representante, VAI interpor um filtro (mais um!) entre o candidato e o eleitor, não cumprindo o desejo de acabar ou diminuir a distância entre um e outro;
- NÃO VAI tornar mais programática a atuação dos representantes, pois não há vínculo entre o “formato” lista fechada e compromisso programático. Cada candidato presente na lista vai pedir o voto, distribuir materiais, da mesma maneira como faz hoje: “EU estou nessa lista aqui, vote nela para ME eleger”. Não há fundamento nenhum na esperança de que com a Lista Fechada os partidos farão campanhas onde idéias e vínculos programáticos serão mais sólidos do que o são hoje – a coisa não passa por aí;
- VAI tornar ainda mais confortável a ação intramuros desses membros da “classe política”, que ficarão protegidos até mesmo da incerteza benéfica que o voto individual nas mãos do eleitor ainda instila no processo;
- VAI tornar, por isso mesmo, muitíssimo mais difícil a renovação política, pois novos valores não poderão surgir pelas mãos do eleitor (que não poderá votar em indivíduos), tendo que furar a pedreira das oligarquias partidárias, que resistirão tenazmente a dar lugar viável, ou mesmo qualquer lugar, na lista, aos novatos. Na mesma linha, VAI oferecer mais poder para quem já manda nos partidos submeter suas minorias, que hoje sobrevivem porque conseguem chegar ao eleitor por si mesmas e, na lista, serão deixados fora ou longe de uma posição viável;
- NÃO VAI ter qualquer incidência corretiva sobre a atuação corrupta, de um lado, porque não há correlação entre concentração de poder (na confecção da lista) e diminuição da corrupção (até pelo contrário, não é?); de outro lado, porque o indivíduo corrupto terá conduta corrupta tenha sido eleito pela Lista ou não;
- VAI tornar os indivíduos da lista ainda mais sujeitáveis à ação dos financiadores. De um lado, porque não terão os “seus” votos para contrapor às pressões; de outro, porque ficarão devendo a “alguém” da hierarquia partidária o seu lugar na lista (tenhamos em mente a pergunta sábia do velho Miguel Arraes: “pois sim, e quanto vai custar um bom lugar nessa lista?”);
Em suma, com a Lista Fechada se retira do cidadão uma ferramenta cujo único “defeito” é o de permitir a cada um fazer dela uso diferente do que gostaria o observador ao lado (são os inconformados com essa liberdade que gostam de encher a boca para dizer que o povo, ou parte dele, não sabe votar, como se o “saber votar” tivesse qualquer relação com uma verdade presumida). Em troca dessa amputação se oferecem quimeras regulatórias bem ao gosto daqueles que supõem que os nossos problemas nascem na hora do voto (no fundo, culpam o povo) e não se dão conta de que o ambiente do erro é aquele do depois do voto (está na prática dos políticos).
Embora seja de rir, não devemos apenas rir daqueles que combinam a Lista Fechada com Candidatura Avulsa. Essa reunião esdrúxula é muito instrutiva sobre a confusão a que foram levados aqueles que confundem os próprios desejos com reflexão detida acerca dos nossos problemas políticos. A Candidatura Avulsa aposta ainda mais no vínculo indivíduo eleitor-indivíduo eleito, retirando parcialmente do processo o filtro que o partido representa, oferecendo ao eleitor insatisfeito com o quadro partidário a possibilidade de apresentar(-se) candidato alternativo e/ou nele votar. Ou seja, a Candidatura Avulsa potencializa o voto nominal individual precisamente porque faz a leitura correta de que, de certa maneira, temos partidos de mais. Ora, a Lista Fechada parte do diagnóstico oposto, isto é, o de que temos partidos de menos e de que é imperioso conter o poder individual.
A oportuna proibição das Coligações Proporcionais visa principalmente impedir o que se convencionou descrever como “o voto do eleitor ser transferido para alguém em quem ele não tencionava votar”. Ora, o que é a Lista Fechada senão a consagração, em altíssimo grau, da transferência do voto do eleitor “para alguém em quem ele não tencionava votar”? Permitam-me ser didático: um candidato de “opinião”, minoritário em seu partido, digamos, contrário à posse de armas pelos cidadãos comuns, pede o voto ao eleitor dizendo o que propõe e indicando a Lista Fechada (na qual figura lá embaixo). Apurados os votos, os eleitos pela mesma lista são todos defensores do direito à posse de arma, e obtiveram êxito com votos não mensuráveis (a Lista engole tudo, coisa terrível) daqueles que eram contra esse direito e haviam votado do candidato que só não se elegeu porque estava em posição desfavorável na lista do partido em que é minoria. Pois bem, pululam tagarelas que defendem as duas coisas: fim das coligações com base no fim da “transferência espúria de votos” e voto em lista, que consagra essa mesma transferência espúria.
A desigualdade no poder econômico disponível é grave no cenário político brasileiro e, até certo ponto, não passa de reflexo da desigualdade brasileira como tal. É necessário corrigir o problema, ou seja, é necessário diminuir (se não dá para anular) a distância entre a campanha com mais recursos e a campanha com menos recursos, sempre que por recursos se entenda aquilo que o dinheiro permite contratar. Ao mesmo tempo, é necessário conceber uma alternativa de financiamento que não se contraponha ao que se pretende alcançar com a mudança no sistema eleitoral: aumentar o vínculo eleitor-eleito. O Financiamento Público de Campanha seria uma resposta adequada?
Desde logo parece pouco provável que liberar partidos e candidatos do esforço de persuasão inerente ao tentar obter do eleitor apoio para suas campanhas seja uma forma de aumentar os vínculos entre eles. Pelo contrário, o Financiamento Público vai oferecer às direções partidárias (essas ocupadas pelos mesmos políticos profissionais que hoje manejam o Fundo Partidário…e que seriam as organizadoras das Listas Fechadas respectivas) um solo firme e certo, longe da vontade e do escrutino do eleitor, a partir do qual comandariam a garrafaria de campanha, submetendo os seus comandados, as suas minorias, os seus dissidentes, que estariam proibidos de captar recursos em suas próprias redes de apoio. O pior dos mundos para quem quer mudanças!
Além de configurar esse arranjo contraproducente mencionado acima, o Financiamento Público – que sempre terá de guardar alguma proporcionalidade com a força eleitoral já recebida pelo partido (o PSOL não receberia tanto dinheiro quanto o PMDB) – não traria por si mesmo qualquer trava ao caixa2, uma vez que:
- o caixa2 resulta da combinação de ambição com certeza razoável de impunidade, variáveis que o financiamento público não atinge (e até pode robustecer) – para mudar isso é necessário fiscalizar e punir, coisa que poderia ser feita qualquer que fosse o sistema de financiamento das campanhas, se os políticos aprovassem leis e a destinação de recursos nessa direção…;
- as diferenças visíveis entre as campanhas sempre poderiam ser atribuídas às diferentes dotações de financiamento público, o que ajudaria a mascarar a desigualdade advinda do caixa2 mais bem sucedido.
Assim como a Lista Fechada, o Financiamento Público é o remédio errado. Precisamos aumentar o vínculo eleitor-eleito e para isso não há nada melhor do que obrigar o candidato/partido a pedir dinheiro ao eleitor individual, seja ele rico ou pobre. Essa seria a fonte legal central de recursos para as campanhas. Fiscalizada a sério, essa medida produziria uma imediata diminuição na distância do poder econômico entre campanhas, pois não há nada mais difícil do que tirar dinheiro dos indivíduos. A lei definiria para cada cargo em disputa seu próprio teto de captação.
Se o leitor considera essa medida inviável porque é impossível controlar o caixa2, que não deixe de considerar que essa impossibilidade não muda em nada com o chamado Financiamento Público de Campanhas. O caixa2 é doença de ordem policial (legislação e prática), não havendo remédio na farmácia do modelo eleitoral.
Em suma, a uma sociedade que clama por mudança em sua representação política se está a oferecer, com apoio infernal de inúmeros mudancistas bem intencionados, inovações que vão tornar os sistema político mais protegido da ação livre do eleitor, único a partir do qual se pode esperar algum impulso de mudança. Nesse ambiente de manipulação o que não falta é inocente útil.