Carlos Novaes – março de 1999
1. O modelo proposto para o Brasil é basicamente o modelo alemão?
Não. Na Alemanha os distritos levam em conta o eleitorado do país e cada cidadão vale um voto. Na proposta defendida pelo Senador Sergio Machado e outros, os distritos seriam construídos com base no eleitorado dos estados e no seu atual número de representantes. Um deputado distrital da Bahia, por exemplo, estaria representando cerca de 412 mil eleitores. Um de São Paulo representaria 665 mil eleitores. Não obstante, eles teriam o mesmo valor na Câmara Federal. Na verdade, se aprovado, o novo modelo nos deixaria muito próximos da Bolívia em matéria de sistema eleitoral, país de voto distrital misto que incluiu, na sua adoção, distorções na representação dos cidadãos dos diferentes Departamentos.
2. O chamado voto distrital misto iria fortalecer os partidos?
Depende do que se entende por “fortalecer”. Se a idéia for dar consistência programática e/ou ideológica aos partidos, a resposta é não. Não há na experiência dos outros países razão para supor uma relação entre sistema eleitoral e a consistência programatico-ideológica dos partidos.
Se “fortalecer” significa dar mais poder aos atuais partidos brasileiros, a resposta é “em termos”. O voto distrital iria polarizar a disputa dentro do distrito e levaria ao fortalecimento dos que já são fortes, em prejuízo dos mais fracos.
Em suma, o modelo proposto beneficiaria os grandes partidos.
3. Com o voto distrital o eleito ficaria mais perto do eleitor, que disporia de maior poder de cobrança do que detém hoje, com o voto proporcional, e aumentaria seu interesse pela política?
Não. A maioria dos distritos seria bastante grande, com dezenas de municípios. A esperança, simpática, de um deputado que caminha, e é cobrado, nas ruas do seu distrito seria, na maioria dos casos, simplesmente frustrada. Mesmo em São Paulo, por exemplo, estado onde mais de 80% da população vive em áreas urbanas, haveriam distritos com mais de 50 mil km2 , com mais de 50 municípios. Em suma, na imensa maioria dos casos, o eleitor teria menos poder de cobrança do que detém hoje sobre o prefeito ou o vereador em que votou no seu próprio município.
Como o novo modelo diminuiria drasticamente o número de candidatos, pois cada partido lançaria uma lista com, no máximo, o número de cadeiras em disputa, parece difícil argumentar que diminuindo o número de pontos de contato ativos entre o eleitor e a campanha que discute as alternativas de rumo político para o país seriam incrementadas justamente as possibilidades de participação desse mesmo eleitor.
4. Com o voto distrital misto, em que o eleitor dispõe de dois votos (um na lista partidária e outro no candidato do distrito), haveria a alegada combinação virtuosa entre a preferência ideológica por este ou aquele partido e a orientação pragmática por este ou aquele interesse em jogo na disputa distrital?
Em tese, sim; na prática, não. Em tese, dispondo de dois votos, o eleitor poderia colocar um pé em cada canoa. Assim, poderia, por exemplo, votar na lista do PT e num candidato distrital do PFL. Ocorre que a experiência internacional demonstra que o voto majoritário, no distrito, “coloniza” o voto proporcional, na lista, porque os partidos põem também na lista os nomes que disputam nos distritos (em geral nomes fortes, que vem nas melhores posições da lista, para aumentar suas chances de eleição em caso de perderem a disputa distrital para o nome forte do outro partido, que, por sua vez, estará na lista daquele partido…). Em suma, o eleitor pragmaticamente orientado tenderia a votar no candidato do distrito por assim dizer duas vezes, no distrito e na lista.
Ademais, esse argumento dos dois votos complementares (pragmatismo e ideologia) é ilógico para quem defende que a reforma viria para fortalecer ideologicamente os partidos. As duas idéias estão erradas. Como já dito, iriam se fortalecer os partidos que já são fortes, e não porque teriam ficado mais ideológicos ou programáticos…
5. O voto distrital misto iria alterar para melhor a forma de os partidos recrutarem seus candidatos, acabando com a captação oportunista de pessoas “boas de voto” mas sem compromisso com o partido?
Não. Essa inclinação pelos “bons de voto” continuaria existindo. No caso da lista aparece uma diferença que prejudicaria o “bom de voto” mas não iria impedir os partidos de irem buscá-lo, pelo contrário: com pouca ou nenhuma força na máquina partidária, o “bom de voto” acabaria mal colocado na lista do partido e poderia deixar de ser eleito, mesmo tendo trazido muitos votos para ela. Mais uma vez, os homens fortes das máquinas partidárias, nem sempre os mais votados, é que seriam beneficiados pela mudança, pois, embora com limites desenhados pela luta interna, reservariam para si os melhores lugares da lista.
6. O modelo distrital iria aumentar a coesão interna dos partidos?
Não. A briga pela vaga majoritária de um mesmo distrito criaria/explicitaria profundas clivagens internas, polarizando os filiados de um mesmo partido. No caso do candidato distrital, seria como as disputas internas para definir candidaturas a prefeito, governador e senador, também majoritárias. No caso das listas, a disputa pelos melhores lugares seria tremenda, com a desvantagem de que o eleitor não iria controlá-la com seu voto, como acontece hoje, quando os mais votados estão, por definição, nos melhores postos da lista, que é aberta.
7. O modelo distrital iria provocar pequenas mudanças, pois o eleitor já vota em distritos virtuais?
Pelo que vimos até aqui, as mudanças seriam enormes. Quanto ao argumento de o eleitor já votar “distritalmente”, não é verdade. Quem diz isso comete dois erros bastante primários:
a- confunde distrito com reduto. Todo candidato tem um reduto eleitoral, que não configura distrito, tendo dimensões muito diferentes. Por exemplo, um deputado federal com forte votação em Araçatuba, populoso município do interior de SP, tem ali o seu reduto, mas isso não configura voto distrital, pois Araçatuba terá de ser reunido a cerca de outros 40 municípios para configurar um distrito.
b- deixa de levar em conta que os grandes municípios (basicamente as capitais dos estados) terão de ser subdivididos em mais de um distrito. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, serão 11 distritos. Assim, não faz sentido argumentar, como se tem visto, com a votação que esse ou aquele deputado obteve na capital paulista, pois ela não serve como parâmetro de concentração de voto. Na pratica, esse eleitorado do candidato forte na capital seria retalhado no novo modelo.
8. O modelo distrital acabaria com a eleição tremendamente dispersa dos deputados, que atualmente acabam por não prestar contas aos seus eleitores? [argumento logicamente contraditório com o anterior, mas que também é usado pelos defensores do novo modelo proposto, que embaralham tudo]
Não, e por mais de uma razão:
Primeiro, não é verdade que o modelo predominante seja uma dispersão amalucada. Na verdade, praticamente todo candidato tem um reduto, ao qual, a seu modo, presta contas. Ter votos em muitos municípios não descaracteriza o fato de que os eleitores dos candidatos estão, nesta ou naquela medida, mais concentrados aqui e ali. Segundo, e por isso mesmo, no atual modelo os deputados lutam e prestam contas (com deficiências e incorreções que não vem ao caso discutir aqui) dos seus atos de uma maneira que nada faz supor menos própria do que a que seria obtida no novo modelo: o que faz o deputado quando luta para incluir no orçamento a autorização para uma obra na sua cidade-reduto e divulga isso para os seus eleitores? Faria coisa diferente eleito pelo modelo distrital? Ou, por outra, não é exatamente a institucionalização disso que se daria com o voto distrital?
9. Dando a possibilidade de dois votos, o novo modelo preservaria o voto de opinião?
Não. Voto de opinião não é apenas – nem principalmente — o voto em partido. Aliás, em todo o mundo decresce a capacidade de representação efetiva dos partidos. Eles estão, sabe-se, em decadência como instituição de representação da opinião. As clivagens de opinião têm crescentemente atravessado as organizações partidárias. Exemplos de temas que encontram ferrenhos defensores e adversários dentro de um mesmo partido: a legislação sobre o aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, a mudança na idade para responsabilidade penal, a descriminalização de drogas, a censura aos meios de comunicação, a pena de morte, as compensações étnicas, o ensino religioso nas escolas públicas.
O modelo proposto restringiria muito a possibilidade de as opiniões controversas se expressarem na arena política. De um lado, o candidato pelo distrito seria pragmaticamente orientado a evitar esses temas (não será possível construir distritos tematicamente homogêneos ); de outro lado, na lista, o candidato com opiniões controvertidas poderia não ficar bem colocado nela e, “seus” votos, votos dados na lista pela sua opinião, seriam como que deslocados para outros. Hoje também existe essa transferência de votos, mas não há a possibilidade de um candidato transferir votos a quem teve menos votos do que ele e não se eleger, vendo o outro ser eleito.
Ademais, como vimos, o voto no distrito tende a colonizar toda a eleição, diminuindo as possibilidades de expressão do pensamento divergente mesmo nas pálidas chances da lista.
10. O modelo distrital poderia ser aprovado em tese, com os detalhes sendo discutidos depois?
Não, a menos que se queira enganar os votantes. O modelo tem de ser votado inteiro. Como vimos até aqui, os detalhes são fundamentais e empurram todo o sistema político para esse ou para aquele lado. Vejamos algumas questões preliminares não resolvidas, embora cruciais:
a- a eleição no distrito seria em um ou dois turnos? Se em um turno só, um partido poderia fazer maioria na Câmara sem ter maioria de votos no país. Se em dois turnos, o sistema todo seria levado a uma extrema polarização, acabando por restarem apenas dois ou três partidos, altamente atritados.
b- como compatibilizar os distritos para deputado federal e estadual? Um eleitor iria pertencer a dois distritos diferentes, a um para o caso federal e a outro para o estadual ? (nesse caso, a confusão não seria pequena, além de pôr sérios problemas para a concatenação da ação nos planos estadual e federal). Para os distritos coincidirem, seria necessário alterar o número de deputados de cada estado (federais ou estaduais), diminuindo uns, ou aumentando outros. Nesse caso, quem iria perder ou qual seria o custo (político e financeiro) da mudança?
c- quem iria construir/desenhar os distritos, a Justiça Eleitoral (o TSE ou os TREs?), uma comissão partidária (paritária?), segundo que critérios?
d- municípios com eleitorado menor do que um distrito poderiam ter seus eleitores alocados em distritos diferentes? Ou os municípios seriam indivisíveis, salvo, claro, aqueles que comportassem mais de um distrito?
e- qual seria o percentual de tolerância para desigualdades na magnitude eleitoral dos distritos?
f- buscar-se-ia respeitar acidentes geográficos tais como rios, lagoas e serras na reunião de municípios para construção de um distrito? Por exemplo, embora no mapa pareçam vizinhos (geograficamente o são) os municípios paulistas de São Bernardo e Cubatão não têm nenhuma relação na sua dinâmica política – há a serra do mar e muita floresta entre seus respectivos eleitores.
Sobre tudo isso e muito mais o modelo proposto silencia, apoiado na tese marota e frágil de que o modelo vai nos conduzir ao melhor dos mundos, vindo os “detalhes”(!) depois…