Respostas de Novaes a uma entrevista feita com PAOLO GERBAUDO, Folha de São Paulo, 08 de julho de 2013
Objetivo de manifestações é nova forma de democracia
Sociólogo italiano critica presidente Dilma e diz que protestos voltarão em “novas ondas e novas formas”
BERNARDO MELLO FRANCO, DE LONDRES
Folha – O sr. estudou manifestações impulsionadas pelas redes sociais em países como Egito, Espanha e Turquia. O que elas têm em comum com os protestos no Brasil?
Paolo Gerbaudo – Da Primavera Árabe ao Occupy Wall Street, os ativistas se definem como integrantes de movimentos de praças. Eles veem praças e ruas como pontos de encontro da sociedade para protestar contra as instituições. O caso brasileiro é mais complexo, porque envolveu várias cidades, mas também houve a ocupação de lugares que simbolizam a nação, como o Congresso.
A noção de povo é a chave para entender esses novos movimentos. A alegação básica deles é que representam todo o povo, e não apenas uma classe, na luta contra um Estado visto como corrupto. Isso os diferencia dos movimentos antiglobalização, que reuniam minorias e tinham um espírito global.
Esses novos movimentos são nacionais, dirigem suas reivindicações a cada país. Isso fica claro numa frase que foi muito usada nos cartazes brasileiros: “Desculpe o transtorno, estamos construindo um novo país.”
Novaes – O que há em comum são basicamente duas coisas, uma real, a outra ilusória. A real explica o que há de esperançoso, de positivamente contagiante nos movimentos; a ilusória mostra o que há de risco regressivo neles. O impulso real à movimentação política coletiva é a percepção de que a representação é uma mentira, uma vez que há um fosso instransponível entre representantes e representados. O impulso ilusório é a crença improvisada de que a resposta a uma representação esgotada é aferrar-se a supostos interesses nacionais, que aplainariam todas as diferenças que põem problemas de coordenação à democracia e, assim, já não precisariam ser “representados”. Essa ilusão é a canção de ninar almejada por todo projeto autoritário de cunho nacional, e há mais do que paradoxo no fato de ela, a ilusão nacional, ser comum a movimentações que sacodem ao mesmo tempo vários países, de culturas e arranjos políticos muito diferentes: está faltando comunicação esclarecedora que enfatize o que há de global no mundo horizontal das redes globais. Contra a representação esgotada (e no mundo todo!) a solução não é negar a forma representação, mas identificar o vertedouro do esgotamento: a representação como profissão. Isso sim é comum a todos os países e não tem nenhuma razão nacional, tem tão somente maneiras nacionais de se mostrar ruim (como disse Tolstoi, “as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”).
Redes sociais como o Facebook têm papel importante nessas mobilizações. O que elas mudam no jogo político?
Paolo Gerbaudo – A ascensão das redes sociais permite que a sociedade se organize de forma mais difusa, especialmente as classes médias emergentes e a juventude das cidades. Isso desorientou os políticos e os velhos partidos, que estavam acostumados a buscar consensos através dos meios de comunicação de massa.
Os partidos têm pouco a fazer diante das novas formas de comunicação mediadas pelas redes sociais. A não ser que mudem completamente as suas práticas, baseadas no velho sistema de quadros e caciques locais, e se abram para novas formas de participação popular.
Novaes – A redes sociais possibilitam comunicação horizontal e sem centro a pessoas, sobretudo jovens, que já vivem uma situação sociocultural de horizontalidade e ausência de centro. A família, a escola e o trabalho (pela ordem crescente de desgarramento) vem atravessando um processo de redefinição duríssimo desde muito antes do alastramento da WEB: são instituições que vem precisando se reiventar, reinvenção que passa precisamente por mais horizontalidade (negação da hierarquia) e coordenação descentralizada ou, no mínimo, multicentrica. As redes, como não poderia deixar de ser, encontraram solo fértil: daí a fecundidade transformadora de sua versão propriamente política. A ordem política em que vivemos não tem como oferecer respostas. Logo, Paolo fica pelo meio do caminho quando ainda busca saídas para os políticos profissionais em “novas formas de participação popular”.
No Brasil, militantes com bandeiras de partidos foram expulsos de vários protestos.
Paolo Gerbaudo – Isso é muito comum nesses movimentos, porque os manifestantes querem ser vistos como uma onda única. No Egito, os militantes de partidos também foram impedidos de mostrar suas bandeiras na praça. Só permitiam o uso da bandeira nacional.
Como eles dizem representar toda a nação, são contra todos os elementos que podem dividir as pessoas na luta contra um inimigo comum, representado pelo aparato repressivo do Estado.
Em geral, eles dizem que não há ideia de esquerda ou de direita, o que existe são ideias boas e ideias ruins. Sonham com uma política sem partidos políticos.
Novaes – Os partidos estão sendo identificados como portadores do mal a combater de maneira dupla: de um lado, são os veículos compulsórios da representação defeituosa; de outro, são a expressão de interesses vivenciados como apartados de um suposto interesse nacional. Assim, há, como sempre, erro e acerto na crítica. O erro mais preocupante é a confusão entre a necessidade de buscar o “bem comum” com a identificação aplastadora do nacional e contra as busca legítima de afirmar (e defender!) diferenças. Desse erro decorre negar a forma partido enquanto instrumento de gente reunida para afirmar valores e interesses, o que é incontornável numa democracia.
Qual é o significado disso?
Paolo Gerbaudo – É um discurso populista. Isso emerge em alguns momentos na história que Antonio Gramsci [1891-1937] chamava de “interregnum”. É quando um sistema de poder está em colapso, mas seu sucessor ainda não se formou.
Nesses momentos, aparecem o que Gramsci chamava de sintomas mórbidos. Fenômenos estranhos, criaturas monstruosas e difíceis de serem decifradas. Hoje, as criaturas estranhas são esses movimentos populares.
Para eles, a classe política rompeu o contrato social que sustenta o sistema representativo. O acordo era: Vocês, o povo, nos concedem o poder. Em troca, nós atendemos às suas demandas’. Agora, as pessoas percebem que a classe política só está atendendo à sua própria agenda.
Há um problema fundamental na democracia representativa como ela existe hoje. Ou os partidos encontram um caminho para reconquistar legitimidade, ou vão ser superados por novos partidos sintonizados com as demandas da sociedade pós-industrial de hoje.
A crítica à partidocracia é legítima. Por outro lado, às vezes parece haver nos movimentos uma crença quase religiosa de que é preciso eliminar todas as mediações.
Novaes – Um dos componentes mais regressivos desses movimentos é a volúpia pelo comportamento de enxame, pela anulação de qualquer saliência do eu. Há muita impaciência com quem pensa diferente. Essa é uma armadilha da pseudo defesa da diversidade que está presente. É como se todos possam pensar o que quiserem, desde que obedeçam uma regra básica, não escrita, mas que germina daninhamente por toda parte: “não perturbem com tentativas de argumentação a minha indiferença ante a opinião de quem pensa diferente”. O neo nacionalismo é uma face evidente disso, o máximo de diversidade com o máximo de indiferença – obscurantismo.
Em que sentido?
Paolo Gerbaudo – Eles parecem ter a ilusão de que a solução é eliminar os partidos, os sindicatos. Essa ideia em si é muito problemática e ingênua. É uma ideia religiosa, absolutista, que compete com a democracia. A política é uma obra coletiva, não um agregado de indivíduos. São blocos diferentes que interagem. Para isso, você precisa dos partidos. Eles sempre existiram e sempre vão existir.
Novaes – Como sintoma da recusa correta à Hierarquia temos o mal da recusa à Verticalidade, o que é uma confusão que precisa ser combatida. Ninguém mais quer se ver “por baixo”. As pessoas estão cada vez menos propensas a aceitar a condição de quem aprende (daí, também, a crise da escola) com outra(s) pessoa(s). Há uma certa ilegitimidade em “ter razão”. É como se todos os pontos de vista fossem válidos não apenas para serem expostos (sem que se tenha de prestar atenção), mas também, e sobretudo, para serem aceitos (daí, também, a nova criminalidade). É como se a obediência sempre colocasse um problema de hierarquia – embora, muitas vezes, ela possa ser apenas uma condição não necessariamente errada da verticalidade. Horizontal e vertical são parâmetros que dizem respeito, e só tem sentido, relacionados um ao outro. A perda de um é a perda do outro.
Este sentimento contra os partidos pode ameaçar a democracia como a conhecemos?
Paolo Gerbaudo – Existe um risco. Os momentos de “interregnum” oferecem bifurcações. Estamos num momento de crise sistêmica mundial. O Brasil está melhor que outros países, mas também está desacelerando. Nesses momentos, podem emergir forças progressistas ou reacionárias. É preciso ver se a esquerda vai saber interpretar o espírito do tempo ou se vai adotar uma postura defensiva.
Há uma demanda correta por renovação moral, mas setores mais reacionários podem explorá-la para fins antidemocráticos. A ideia de que a política tem que buscar “o bem” é ingênua, representa uma visão em preto e branco. Maquiavel dizia que o caminho para o inferno é pavimentado de boas intenções.
Novaes – O que pode ameaçar a democracia é a intolerância contra quem pensa diferente. A recusa à verticalidade democrática pode nos conduzir de volta à hierarquia militar. O que vemos no Egito é basicamente isso: a sociedade exige horizontalidade, enquanto o exército e a ordem religiosa querem reinstaurar a hierarquia. O caminho é redescobrir a importância da verticalidade, via representação democrática não profissional: nem todos estão nas ruas todo o tempo (embora devam ser consultados através de macanismos diretos); nem a representação é reserva de caça para profissionais (essa nova aristocracia que nos oprime).
Como os protestos afetam a esquerda brasileira, que está há 10 anos no poder com o PT?
Paolo Gerbaudo – Em tese, o que está sendo cobrado no Brasil não precisaria estar sendo cobrado de um governo do PT. As pessoas estão pedindo escolas, hospitais. Para um governo de esquerda, é constrangedor estar sendo pressionado com pedidos de coisas que ele já devia estar fazendo.
O aumento da tarifa dos ônibus não foi tão grande, mas se tornou um símbolo de outros problemas. Foi a gota que fez o copo transbordar.
Há outro problema. Os governos do PT proporcionaram muitos avanços na área social, mas os casos de corrupção, clientelismo e compra de votos minaram a legitimidade moral do partido.
Também há um problema de representação. O PT foi criado para representar os metalúrgicos das fábricas. Nós agora vivemos numa sociedade pós-industrial. Há uma nova classe média cheia de designers e trabalhadores criativos, por exemplo, e eles não têm uma rede de proteção que os atenda. Há uma mudança histórica, mas os partidos e sindicatos tradicionais não têm demonstrado capacidade para entendê-la.
Novaes – O PT é um projeto esgotado – é só uma questão de tempo. Isso provavelmente ficará claro quando Lula deixar a atividade política. Depende bastante de Lula porque não há, no curto prazo, uma alternativa modernizadora real. Digo há anos que a força dele vai levá-lo a ser candidato a presidente em 2014, fato que só não se dará se motivos de saúde o impedirem. Fora isso, na conjuntura atual, o PT, em declínio, está numa situação eleitoral inédita: dispõe, ao mesmo tempo, da possibilidade de se apresentar como a “continuidade necessária” (Dilma) e da possibilidade de oferecer uma alternativa para corrigir um “desvio de curso” (Lula). Por que eles iriam abraçar o projeto de alto risco de reeleger Dilma se dispõem da saída vicária de a tudo propor consertar/concertar com a volta de Lula?
Na tentativa de responder aos protestos, a presidente Dilma Rousseff já propôs uma constituinte exclusiva e um plebiscito para fazer a chamada reforma política. Isso é suficiente?
Paolo Gerbaudo – Eu duvido que as promessas de Dilma sejam suficientes para acalmar a ira popular. Ela pode atender a pedidos específicos, mas a essência das manifestações vai além de demandas concretas. A luta principal é por uma nova forma de democracia, na qual os partidos não poderão mais lidar com os cidadãos apenas de quatro em quatro anos.
A solução para isso seria uma mudança constitucional ampla, bem além da que Dilma propõe. É preciso abrir espaço a novas formas de controle popular sobre os políticos, mais transparência contra a corrupção, novos instrumentos de democracia direta e consulta popular.
Novaes – Nada que Dilma fizesse a salvaria, pois ela é sobretudo parte do problema. Vejo o plebiscito como uma oportunidade de debate e disputa.
As manifestações no Brasil esfriaram nos últimos dias. Com base no que aconteceu em outros países, elas estão fadadas a desaparecer?
Paolo Gerbaudo – Devido à ausência de uma estrutura formal, esses novos movimentos populares tendem a sumir com a mesma velocidade com que aparecem. É impossível manter uma mobilização de massa a longo prazo, como se viu nos indignados da Espanha ou no Occupy Wall Street.
Mas, assim como aconteceu lá, é de se apostar que o outono brasileiro’ vai ressurgir em novas ondas e novas formas. Estamos vivendo tempos revolucionários, em que as pessoas voltaram a sentir que podem mudar o mundo. Veja o que está acontecendo agora no Egito.
Novaes – Não vão acabar porque os problemas que geraram a ida à ruas vão continuar existindo e não há solução rápida nem fácil. A sociedade brasileira precisa reaprender a escolher prioridades (verticalidade) numa situação em que o adversário é menos claro do que no passado recente. No Egito a luta é (como foi aqui) contra uma ditadura militar. Lá o fim se dá pelo colapso, aqui foi pactado. Tudo tem seu preço. Estamos nos reencontrando com os problemas e, por isso, vamos ficando cada vez mais parecidos uns com os outros.