Carlos Novaes, 09 de setembro de 2014
Não é segredo que a sociedade brasileira quer mudança. Quando se pensa exclusivamente na política ali onde ela está sujeita ao voto do cidadão, a insatisfação é generalizada, embora o poder executivo se saia melhor do que o legislativo. Se olharmos para os números das pesquisas que avaliam presidente, governadores e prefeitos ao longo dos últimos anos veremos que a gestão da coisa pública é sopesada com critério pelo eleitor, pois o quadro varia muito, havendo tanto repúdio quanto exemplos positivos, em todas as instâncias executivas do sistema federativo. Do lado dos legislativos não há variação porque a repelência pela nossa representação é justificadamente absoluta: eles construíram um mundo à parte, baseado em suas próprias afinidades com as rotinas do poder e do dinheiro, afinidades que intensificam relações corporativas recíprocas ali onde seria de esperar divergência programática, situação que lhes permite receberem os votos para ficarem de costas para nós, paradoxo que tem sido apropriadamente descrito como uma crise de representação.
Os remédios para essa crise de representação são quase tão numerosos quanto os médicos que se apresentam à urgência, e já fiz em outros textos o escrutínio de algumas das propostas de reforma política que nos tem sido oferecidas, como pode ser lido aqui. Mas uma coisa é certa: uma crise de representação não pode ser enfrentada com remédios que aumentem a distância entre eleitor e eleito, pois medidas assim tornariam ainda mais confortável a vida dos nossos representantes infiéis, que são infiéis não só porque querem, mas também porque encontram mecanismos propícios para sê-lo.
Aparentemente afinado com esse cenário de crise e busca de alternativas, o Programa de Governo de Marina dá precedência ao tema da reforma política sobre todos os outros quando defende logo em seu primeiro capítulo que
“não basta substituir a representação pela participação simplesmente; trata-se de procurar uma articulação nova e profunda entre as duas coisas. Uma das causas profundas da crise de valores é a reprodução da velha política.[…] O primeiro passo de uma reforma implica exigir comportamento republicano de todos os agentes políticos e dos demais ocupantes de cargos públicos. […].Para deflagrar o processo de reforma política, vamos sugerir medidas iniciais que levarão à reconfiguração integral do sistema político e eleitoral do país. […]. A política precisa absorver a mensagem de reconectar eleitos e eleitores. […].Os canais existentes devem ser fortalecidos, mas novos instrumentos precisam ser desenvolvidos, mediante o uso de tecnologias da informação e comunicação, para que o cidadão participe mais ativamente das decisões.”
No que diz respeito à representação, parece claro que a candidata pretende “articulá-la” com a “participação” e “reconectar eleitos e eleitores”. Entretanto, quando conseguimos transpor o palavrório enfadonho do programa, encontramos propostas que renegam o que os autores alegavam pretender e, pior, são em tudo contrárias ao que queremos:
Coincidência geral das eleições e mandatos de cinco anos: além de prorrogar mandatos de uns e outros, atropelando escolhas anteriores do eleitor, essa proposta é o oposto de mais participação e responsabilização: ela mais que dobra, estende de dois para cinco anos(!), o tempo em que o voto do eleitor não pode interferir no andamento da representação (legislativo) e da gestão (executivo), ou seja, protege o sistema político dos juízos da sociedade, quando parecia pretender o contrário. A adoção de mandatos de cinco anos é mais do que nossos políticos corruptos poderiam sonhar, e desafio qualquer um a demonstrar como essa medida aproxima eleitor e eleito. Para glória dos marketeiros e mistificadores de plantão, a coincidência geral de mandatos engessa numa mesma campanha eleitoral o diversificado temário de todos os níveis e instâncias do sistema político cujos cargos são providos pelo voto popular, pondo dificuldades adicionais ao escrutínio do eleitor acerca da realidade, mas facilitando enormemente o trabalho de quem se dedica à fantasia.
Trata-se da proposta mais reacionária que poderia ser concebida, porque é uma reforma contra a mudança: dá a uma representação política repudiada a oportunidade confortável de aumentar sua autonomia em relação aos eleitores numa circunstância em que a base da crise é a autonomia já demasiado confortável de que desfrutam “nossos” representantes.
Fim da reeleição para os executivos: ao invés de propor o fim da reeleição salteada, que tem levado grupos políticos a se eternizarem no poder, como no governo de São Paulo colonizado pelos tucanos, Marina propõe dar cabo da reeleição como tal, duvidando do juízo do mesmo eleitor a quem diz querer dar mais participação… Não há nenhuma evidência de que mandatos de quatro anos com uma, e apenas uma, reeleição sejam um dano à boa gestão da coisa pública. Pelo contrário: em instâncias de gestão, em que não há propriamente representação, não há mal no eleitor poder reconduzir uma vez um governante bem avaliado, desde que ele seja impedido de disputar o mesmo cargo mais adiante. A reeleição no executivo pode ser benéfica porque na gestão da coisa pública os elementos de continuidade se sobrepõem aos elementos de mudança: diferentemente do representar o cidadão, em que as mudanças na sociedade devem ser mais prontamente traduzidas, o gerir a coisa pública é tarefa que arrasta memórias mais duráveis, pois são escolas em construção, rotinas de atendimento médico em implantação, investimentos em infraestrutura em andamento, etc.
Ou seja, pela natureza da atividade, na gestão há menos necessidade de supor ou decalcar a mudança no humor das ruas, como é mister na representação. Ademais, como o titular do executivo tem visibilidade sempre maior do que a do legislativo, seguir e avaliar o desempenho de um prefeito, por exemplo, é sempre menos trabalhoso do que vigiar um vereador, circunstância que torna menos inercial a recondução na gestão do que na representação. Um parlamentar nocivo é muito mais facilmente reeleito do que um gestor incompetente – até porque, além de menos visível, o parlamentar sempre pode ir pedir votos em outra freguesia. A reeleição que tem que acabar é a do legislativo, mas sobre essa transformação necessária o programa de Marina nada diz. Enfim, o fim da reeleição para gestores é uma proposta reacionária, pois não só não propõe mudar a representação (embora simule reconhecer sua crise), como reforça o modelo político defendido pelos políticos profissionais dessa mesma representação legislativa em crise, que almejam mais rotatividade nos cargos de gestão porque aspiram ver esses cargos mais livres para a ciranda das cadeiras que ambicionam.
Em outras palavras, quando juntamos coincidência geral de mandatos de cinco anos com o fim da reeleição para o executivo vemos o desenho de uma alteração especialmente reacionária, pois ela reage ao pouco que conquistamos nos últimos anos e consagra os interesses dos profissionais da representação nefasta: dá a eles mais tempo, mais cargos e mais recursos para o toma-lá-dá-cá que fundamenta sua existência.
Se Marina vier a ser eleita, não haverá nenhuma surpresa quando ela conseguir maioria legislativa absoluta para aprovar essas barbaridades, que configurarão não a mãe de todas as reformas, mas a pá de cal em qualquer transformação e a pedra fundamental para uma base parlamentar voltada a outros retrocessos, como a autonomia legal do Banco Central. Naturalmente, se a oportunidade nefasta se apresentar, as velhas raposas irão facilitar o caminho para o que lhes interessa enfeitando a prorrogação/extensão dos seus mandatos e o fim da benéfica possibilidade de reeleição com a embromação conhecida sobre mecanismos complementares de “participação tecnológica”, tudo com o beneplácito dos bancos.
Um sistema eleitoral em que os candidatos mais votados são os eleitos – ou seja, o projeto de Marina quer acabar com o voto de legenda, regra eleitoral valiosa que nosso sistema eleitoral acertadamente adotou para fazer a combinação entre o voto em indivíduos e o voto nos partidos. É justamente essa combinação que torna impertinente e supérfluo qualquer outro modelo chamado de lista, como quer o PT, pois pelo nosso excelente modelo eleitoral o eleitor pode escolher entre o candidato individual e o programa partidário. Se nossos partidos não são programáticos, o remédio não está em retirar do eleitor a liberdade de votar neles (voto que ele tem dado com comedimento acertado).
Prudente registrar que a redação da proposta é tão econômica em detalhes que não dá para saber se não estaria embutida aí, além do fim do voto de legenda, uma porta secreta para a adoção de algum dos modelos do chamado voto distrital, no qual uma eleição majoritária permite ao mais votado levar tudo, sacrificando a representação das minorias e/ou do voto de opinião, que geralmente não são delimitáveis em distritos territoriais. Se for isso, teremos o pior dos mundos: eleições majoritárias gerais a cada cinco longos anos, com o massacre das minorias.
Permitir a inscrição de candidaturas avulsas – havendo exigências prévias de alguma representatividade, como o programa de Marina já ressalta, as candidaturas avulsas são um ganho para a riqueza da representação, e até para ajudarem a forçar os partidos à mudança. Mas salta aos olhos que essa proposta adequada de diversificação contraria as outras quatro, discutidas acima.
Propor mecanismos de transparência nas doações para campanhas eleitorais – bem, uma proposta vaga assim não permite avaliação. Mas vale à pena ressaltar a covardia do programa nesse ponto, pois esse é um dos temas centrais da nossa crise de representação. Certamente a vaguidão decorre de que não há unidade dentro da coligação sobre o tema, o que torna alarmante a clareza das primeiras propostas, pois é sinal de que a coligação está unida na reação.
Para além das propostas desastrosas, a reforma política do programa de Marina apresenta equívocos que o palavrório não esconde.
Primeiro equívoco: ao constatar o óbvio, que a maioria da sociedade quer mudar nossa dinâmica política, o programa faz a correspondência errada entre querer mudar e querer participar. Não há evidência dessa suposta demanda reprimida por participação. Pelo contrário, as manifestações do ano passado mostraram quão poucos somos os que nos dispomos a participar e quão efêmero é esse nosso impulso. A demanda é por uma representação que responda aos representados, e essa correspondência não será alcançada nem pelas propostas de Marina, como vimos, nem pelo rogo aos políticos para que tenham vergonha na cara, ou pelo apelo para que venham fazer política cotidiana, sem remuneração, cidadãos cuja luta pela vida não deixa tempo sequer para ajudar o filho com as tarefas da escola.
Segundo equívoco: a essas ideias aduladoras de participação, o programa junta a proposta “muderna” (claro) de consultas diretas com base em recursos tecnológicos, como se consulta fosse o mesmo que a participação propalada (outra falácia). Mesmo que fossem a mesma coisa, consultas são eventos esporádicos não porque falte tecnologia para realizá-las, mas sobretudo porque uma consulta política numa democracia requer duas preliminares: que os perguntados conheçam o tema em questão e que os perguntadores tenham legitimidade para fazer a pergunta, situação ótima rara de alcançar, cheia de meandros cabeludos. Em outras palavras, não cabe tratar a tecnologia como a solução para a “participação”, pois as complicações da consulta popular são muito anteriores ao ritual da consulta propriamente dito – não foi por outra razão que surgiu a representação, que significa “estar no lugar de”.
Um sistema de consulta direta empregado amiúde trará mais mistificação do que exibe a pior das representações: os perguntadores de plantão irão dirigir a “participação” via consulta, com todas as implicações da sociedade do espetáculo, que será chamada a votar em meio ao lufa-lufa diário, em verdadeiras gincanas de opinião. E se, pelo contrário, as consultas não forem amiúde (como é mais provável que ocorra), os profissionais da política continuarão a tomar a maioria das decisões, agora protegidos por mandatos de cinco anos.
Assim como os ruralistas aproveitaram a demanda efetiva por aperfeiçoamento do Código Florestal para acertar e aprovar intra muros uma reação à proteção ambiental no Brasil, a reforma de Marina permite aos profissionais da traficância política instrumentalizar a demanda por mudança numa proposta de reforma política que é o oposto da mudança.