Carlos Novaes, 07 de fevereiro de 2022
Venha a se dar ou não, a hipótese de Alckmin como vice de Lula já fez mais por Bolsonaro do que por Lula. Se a chapa se confirmar, poderá tornar possível o que hoje parece inviável: uma ida de Bolsonaro ao segundo turno com chances de vitória. Esmiuçemos o que acaba de ser dito.
Toda a movimentação eleitoreira de Lula mostra que ninguém se torna um expert em política facciosa sem perder o que quer que possa ter tido de semelhante a um político transformador, afinal, para transformar é preciso ter clareza sobre como deixar o status quo para trás, e agir nessa direção, enquanto que para se movimentar no jogo das facções com a maestria quase imprescindível com que Lula o faz é preciso estar no coração do apego ao status quo. Hoje, Lula não é sequer um agente de mudança, como já o foi em passado muito remoto, que dirá um líder transformador, que jamais o foi. Apenas diante de Bolsonaro Lula pode ser tido como portador de uma mudança, quando, na verdade, atua em prol de uma restauração; e mesmo contraposto a um Bolsonaro, Lula algum poderia ser tomado por um transformador, como o fazem incautos, espertos e espertalhões da autointitulada esquerda.
Imersa no jogo das facções, a imaginação política de Lula não vai além dele. A “solução” Alckmin pareceu a Lula uma jogada de mestre porque ele a ajuizou desde essa imersão. De fato, ao puxar Alckmin para a condição de vice, Lula obtém dois ganhos facciosos de primeira linha, enquanto facciosos: primeiro, um ganho de pequena duração, mas que ajuda e lhe pareceu relevante; segundo, e muito mais importante, um ganho de longa duração, que poderá ser decisivo para a sobrevivência do lulopetismo enquanto facção central do jogo político brasileiro. O primeiro ganho vem do reforço que a presença de Alckmin dá ao jogo eleitoreiro miúdo com as facções, ajudando a cimentá-las na crença de que Lula é peça imprescindível à continuidade do jogo tal como todos conhecem. Esse ganho é de curta duração porque dura apenas o período eleitoral; depois, se vitorioso, a força do cargo dará a Lula todos os meios para se mostrar, realmente, imprescindível, tornado Alckmin supérfluo, ainda que merecedor das mesuras que Lula é capaz de dirigir mesmo àqueles a quem desconsidera.
O ganho faccioso de longa duração está em que, ao puxar Alckmin para fazer figuração na chapa presidencial, Lula o tira da disputa pelo governo de São Paulo. Favorito para voltar ao cargo, Alckmin, se vitorioso, manteria a força do maior Estado da federação alimentando o jogo de facções de forma hostil à facção lulopetista; logo, removê-lo abre uma avenida para a vitória do PT, o que daria impulso inédito à força facciosa do lulopetismo, que alimentaria sua máquina de poder com os recursos orçamentário-burocráticos que o governo de São Paulo maneja. Como o candidato a governador pelo PT é o preferido dentre os preferidos de Lula, estaria aberto o caminho para que Haddad fosse até mesmo o sucessor de Lula depois de quatro ou oito anos de mandato de ambos. Parece um nó de marinheiro. Só que não.
Já exploramos aqui e aqui como Lula vem há tempos concentrado em costurar alianças com as outras facções estatais diretamente voltadas para o jogo eleitoral de 2022, tratando sua suposta inocência pessoal como um atestado de inocência ampla, geral e irrestrita, até para crimes conexos de membros de antigas facções parceiras. Ao se concentrar na mesmice das facções estatais em busca de uma restauração, Lula acentua sua dissintonia com a maioria da sociedade brasileira, que vem mudando e vai continuar a mudar na direção da busca, nem sempre lúcida, de soluções para suas duas urgências, a urgência por ordem e a urgência social. Com Alckmin de vice, Lula fica ainda mais exposto como candidato incapaz de dar resposta à urgência por ordem, afinal, além de há tempos nada poder dizer contra a corrupção e as maracutaias conexas da política profissional, agora terá de ficar calado diante da desordem policial, que vem deixando às milícias e às quadrilhas do narcotráfico a manutenção de alguma “ordem” nas periferias urbanas do país. Voltado para o Estado, Lula se mantém eleitoreiramente alheio ao que quer que aconteça na sociedade, da matança no Jacarezinho, aqui ao lado, à mineração assassina em remotas terras indígenas; afinal, vai dizer o que, se está empenhado em ter como vice alguém cujos governos foram período das maiores matanças promovidas por policiais em SP? Se políticos de facções/partidos a quem ele se alia estão implicados na mineração e na luta fundiária que esmagam em desespero as populações indígenas?
Um projeto transformador teria em Bolsonaro um adversário duro, mas a luta se daria cavando fundo na realidade brasileira. Em seu conservadorismo, Lula tem em Bolsonaro um espantalho cômodo, desde que para um intervalo curto e de enfrentamento superficial — só que daqui até a eleição vai transcorrer uma eternidade, leitor. As intrincadas e manjadas costuras a que Lula se dedica, como a ruidosa querela atual com o PSB dá exemplo, estão sendo amplamente noticiadas, e o que se escancara são esquemas de acomodação, não a construção de vetores de mudança. A chapa Lula-Alckmin é a cara do sistema, isto é, do que a maioria da sociedade quer derrotar, entenda-se o que se entender por “sistema”. A palavra “sistema” se tornou um carimbo e, como todo carimbo, é fácil de manejar.
Há quem diga que a disputa Lula-Bolsonaro se revelará uma disputa em torno da menor rejeição. Se for assim, na falta de uma alternativa real, Bolsonaro pode vencer, pois a maior rejeição é ao sistema e, em sua imbecilidade, Bolsonaro tem passado a falsa impressão de leão acorrentado, que estaria contido em sua potência pelas exigências do sistema contra o qual supostamente se debateria em conexões forçadas; ao passo que Lula, inebriado, mais e mais se exibe (e pavoneia!) cabeça e alma do mesmo sistema, com o qual aparece à vontade, dono do pedaço. Ainda que a incompetência e a desumanidade façam de Bolsonaro candidato fortíssimo a uma derrota, a chapa Lula-Alckmin pode ajudar a que, até a eleição, os danos gerados pela incompetência venham a ser considerados, por parcela do eleitorado, como preço já pago, e os sofrimentos saídos da desumanidade deste imbecil poderão vir a ser atenuados e até esquecidos, especialmente se a pandemia tiver ficado para trás. Para nossa desgraça, Moro é o único dentre os candidatos já lançados que pode tirar proveito do sentimento antissistema, em sua versão reacionária, o que faz do ex-juiz o provável beneficiário da erosão a que Bolsonaro não deixa de estar sujeito em razão da fragilidade de sua dianteira nessa via da disputa. Ao contrário do que muitos pensam, o que não falta é incerteza.
Fica o Registro:
– Se Alckmin se der conta da fria em que está a se meter e recuar de ser vice de Lula para concorrer ao governo de São Paulo, terá dificuldades em razão da sinalização equivocada que fez e do tempo perdido. Entretanto, poderá tentar compensar isso com uma ida para o PSB, oferecendo uma saída para a soberba de Siqueira e, ao mesmo tempo, robustecendo a versão de que a gula de Lula e seu PT fazem deles parceiros não confiáveis… Na luta entre facções, todo cinismo é possível.
– Por tudo o que se disse acima, é uma ingenuidade acreditar que Lula e o PT estejam mesmo dispostos a negociar a candidatura de Haddad ao governo de SP. Muito pelo contrário, se há algo de certo além da candidatura de Lula à presidência é a candidatura de Haddad a governador. Para o lulopetismo, chegar ao governo em SP é um projeto que só não é maior do que o de reconduzir Lula à presidência, mesmo que essa dobradinha prejudique o desempenho do partido nas eleições para o Congresso; até porque, como sabemos, nem Lula nem o PT chegam a ter a composição congressual como uma preocupação central, estando sempre dispostos a apostar no jogo faccioso que já discutimos detalhadamente em mais de um post deste blog.