A ONDA BOLSONARO

Carlos Novaes, 13 de outubro de 2018

 

A onda Bolsonaro é avassaladora porque veio sendo impulsionada por duas forças: a do próprio candidato e a que veio dos seus adversários eleitorais.

O que ele fez: Bolsonaro se colocou contra o sistema e se fez resposta a uma urgência por ordem, deixando de lado a urgência social, a qual é, no fundo, negada pelo que ele propõe como ordem. Bolsonaro agarrou um pedaço da realidade para propor uma fantasia medonha como resposta.

O que fizeram os adversários: se colocaram no lugar de quem defende o sistema e, em graus variados, pretenderam legitimá-lo como ferramenta para enfrentar as duas urgências mencionadas acima, quando, na verdade, estão implicados na desordem e jamais enfrentaram a desigualdade, fundamento de ambas as urgências. Eles se agarraram a uma fantasia contraproducente para propor uma fantasia manjada como resposta (o blá, blá, blá de sempre, como escancarou o Cabo Daciolo).

Essa ação adversária deu potência a Bolsonaro porque o aspecto fantasioso dela é evidente: não há nada que justifique defender o sistema, ou seja, a ordem atual, isto é, este Estado de direito, afinal, está claro a toda gente que:

  • Este Estado de direito é instrumento de facções da bandidagem de palácio, voltadas ao roubo do dinheiro público com dois propósitos: enriquecimento pessoal e financiamento de sua permanência no poder — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito é o ambiente no qual se organizam as facções da bandidagem de rua, saindo de dentro dos presídios estatais as diretivas do crime — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito dá o arcabouço legal que garante às facções corporativas, especialmente aos hierarcas do serviço público, privilégios remuneratórios e previdenciários escandalosamente desiguais em relação ao que recebe a imensa maioria da sociedade — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito dá poder e protege de alto-a-baixo facções que praticam toda sorte de arbitrariedades, ora na forma de vantagens a favor de quem tem força, ora na forma de abusos contra quem, sem forças, precisa dos chamados serviços públicos: das polícias à fiscalização sanitária; dos Detrans ao SUS; da primeira à última instância da Justiça — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito se mostrou incapaz de conter a bandidagem de rua desorganizada, só obtendo algum resultado ao preço de fazer vítimas inocentes e entrar em acordo com facções do crime organizado — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito não ofereceu alternativa para tirar o país do atraso, pois está cego para os interesses da maioria, prisioneiro que é dos interesses dos ricos, contra os quais não é capaz de fazer sequer uma reforma tributária ou uma reorientação econômica que pelo menos retire o país da inviabilidade que se divisa — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes.

O golpe do impeachment e a operação Lava-Jato deram tão errado, fugiram tanto aos objetivos de seus feiticeiros, que escancararam o caráter autoritário dessa ordem estatal que acabo de sumariar. O golpe levou ao Planalto o chefe da outra metade da quadrilha, dando ocasião a toda sorte de desdobramentos inesperados; a Lava-Jato se tornou teatro de operações de uma luta entre facções, cujos desdobramentos levaram a essa conflagração do Estado de direito, nas quais se exibem toda sorte de alinhamentos e rupturas que, transversais aos três poderes, deram ocasião à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário.

Foi em favor desse Estado de Direito Autoritário, defendido como um implausível Estado democrático de direito, que se organizaram, ainda que em linhas de defesa diferentes e eleitoralmente adversárias entre si, todas as candidaturas presidenciais relevantes, exceto a de Bolsonaro, um político profissional que jamais assumiu compromisso com Estado de direito algum, oriundo e adepto que é do Estado ditatorial.

Apoiando um pé na realidade e outro na inverossimilhança dos adversários, Bolsonaro erigiu seu próprio castelo macabro, que tem quatro pilares:

  • primeiro, ao se apresentar  contra tudo que aí está, disse a realidade atual contrária a uma suposta ordem natural (Deus, família, disciplina, certo-errado, propriedade) — os vetores da ameaça a essa suposta ordem natural seriam a homoafetividade, a relativização do papel estruturante das distinções de gênero e a bandidagem, tanto a de rua quanto a de palácio;
  • segundo, criou um passado mítico, a ser resgatado para restaurar essa ordem natural, uma suposta época de ouro, o período da ditadura paisano-militar;
  • terceiro, como não pode enfrentar a urgência social, trouxe de volta um espectro que já não ronda parte alguma do planeta, dizendo comunista quem quer que se lhe oponha, do MST à Globo, passando pela Folha de S.Paulo e pelo PSDB, todos com algum grau de compromisso com o PT;
  • quarto, se favorecendo precisamente do que há de implausível nos três passos anteriores, veio deixando no ar a ideia de que “não é bem assim”, de modo a diluir (em meio às acerbas emoções despertadas) a evidência racional de que essas fantasias nem podem ser resposta à realidade adversa que elas simulam combater, nem, muito menos, podem deixar de despertar forças aniquiladoras das franquias democráticas ainda existentes, forças essas que atualizam tudo de antidemocrático que Bolsonaro sempre disse e, agora, pretende disfarçar como coisa do passado.

A argamassa empregada na construção desse castelo saiu da fusão de ressentimentos particulares com incertezas coletivas, como se fosse possível fazer do país uma fortaleza contra um mundo em transformação, no qual tudo que parecia sólido se desmancha no ar, levando a uma redistribuição de papéis aturdidora: homem vira mulher e mulher vira homem e, como se não bastasse, as mulheres ainda se insurgem contra a dominação dos homens; o bandido que mata é tão vítima quanto aquele a quem ele mata; religiosos se revelam estupradores; policiais se parecem cada vez mais com bandidos; quem busca trabalho na iniciativa privada não encontra, quem não busca tem bolsa pública; pressões migratórias põem a nu a fragilidade e a arbitrariedade das fronteiras nacionais; a profusão ininterrupta de novos bens materiais disponíveis esmaga a autoestima de quem não pode comprá-los; as crianças têm cada vez mais direitos sem que se tenha os meios para ensinar-lhes os deveres correspondentes; a hipertrofia das relações horizontais aplasta hierarquias que parecem imprescindíveis à ordem; países que se fizeram ricos explorando suas riquezas naturais pretendem impor restrições ambientais àqueles que buscam sair do atraso; cotas são estabelecidas às custas de quem nunca descriminou ninguém; etc.

Na trilha dessa desorientação, a maioria do eleitorado está a votar num candidato que propõe:

  • a militarização do ensino (já em curso em alguns Estados, onde escolas foram entregues à PM), em marcha contrária ao que recomendam a ciência e as iniciativas de ponta, onde a abertura ao conhecimento e o estímulo à inovação dependem justamente da pluralidade e da flexibilidade com que se estimulam crianças e jovens;
  • a fusão de órgãos ambientais com os de fomento ao agronegócio, sob a determinação de “liberar os produtores de qualquer entrave”, uma medida que contraria toda a experiência nacional e internacional recente, num mundo desafiado pelas mudanças climáticas;
  • combater todo ativismo de quem pensa diferente como “inimigo da pátria”, como se fosse possível definir nitidamente o que é propício ou impropício à Pátria, como se o propício não tivesse que incluir necessariamente a controvérsia sobre o que é melhor;
  • estancar a demarcação de terras para populações vulneráveis e rever as já demarcadas, indiferente aos sofrimentos que essas providências acarretarão;
  • estabelecer alíquota única para o Imposto de Renda, não apenas indiferente à já absurda desigualdade brasileira, mas ao contrário do que ensina toda a experiência mundial na matéria;
  • liberar o uso de armas de fogo ao cidadão, aumentando o poder de provocar danos de quem já está disposto ao emprego da força, como dão exemplo seus seguidores mais extremados que, ainda desarmados, já correm as ruas a agredir violentamente quem pensa, age e vive de maneira diferente.

Bolsonaro é a saída regressiva para uma crise de legitimação do Estado associada à desorientação da maioria da sociedade, que foi chamada às urnas para escolher entre candidaturas que não encararam nenhum dos problemas reais do país. Ao não ser apresentada a uma proposta de como ir adiante, a maioria da sociedade engatou a marcha-a-ré, um recuo defensivo em que ao lulopetismo foi dado um papel que ele não tem como recusar: o de espantalho.

Diante da proposta desesperada de Kátia Abreu (a renúncia de Haddad em favor de Ciro), à qual, embora inviável, a gravidade da hora impede simplesmente desconsiderar, Lula disse não passar de “maluquice”, acrescentando que a política é assim mesmo, que “o tsunami vai e volta”, deixando ver que já absorveu a derrota e dando prova do realismo com que se orienta, um realismo de chefe de facção, no qual o cinismo de quem se habituou a explorar os sonhos alheios apagou qualquer centelha de sonho inspirador e impede enxergar a extensão da tragédia em curso, não obstante a mencione, como que seguro de que, ao fim e ao cabo, sempre será possível arrumar uma prancha e tirar proveito dela.

Nunca foi tão difícil votar em alguém, e nunca foi tão necessário fazê-lo.