Carlos Novaes, 07 de outubro de 2014
Pondo lenha amiga na fogueira das vaidades inofensivas entre Rio e SP, assinalo que vem delas os dois resultados eleitorais mais formidáveis para quem está farto do menu cartesiano que nos obriga a escolher entre a corrupção evidente, a violenta ordem dos moralistas de vitrine e os projetos retilíneos que não levam a lugar nenhum. A diferença entre as duas capitais em que nossa gente faz, em cada uma à sua maneira, a síntese do país, é que enquanto em São Paulo haja a aspiração elitista incubada de ser New York, o Rio parece mais coeso na inclinação de não ser senão ele mesmo, ainda que vez ou outra apareça um Lacerda ou um Eike encontrando paspalhos a lhes dar ouvidos para projetos de impor contornos de Miami à Cidade Maravilhosa.
Não vá o leitor imaginar que na comparação anterior pretenda eu diminuir SP. Longe de mim. Se faço a comparação naqueles termos é para antecipar que o exemplo alvissareiro vindo de SP nesta eleição é ainda mais radical do que o do Rio, ou não…? Afinal, se em Piratininga as contradições são vividas de maneira mais aguda, talvez porque não haja a amplidão dissipadora do mar, tinha de ser de lá, do solo bandeirante, que mais uma vez saísse em direção a Brasília (eca!) um Tiririca turbinado por mais de um milhão de votos, os votos de uma resistência mais do que debochada, e é o alcance desse mais que tem escapado à crônica convencional em torno do fenômeno, que está para além de ser apenas um palhaço a ilustrar a palhaçada brasiliense.
Convido o leitor a assistir pelo menos parte deste vídeo aqui, que traz uma performance do Tiririca clássico, ainda sem as cotas de baixeza e banalidade que o mercado humorístico sempre acaba por impor. Veja esse nosso impagável semelhante em conhecido programa de entrevistas a se mostrar tão fora de esquadro quanto a gente brasileira. A primeira coisa a notar é que a figura nordestina transpira saúde e vitalidade. Mas o detalhe sardônico é que esse vigor físico está contido em estado de potência desconfortável, retesado no que sugere uma urgência miccional, compondo uma metáfora ultra refinada da tensão permanente em que vivemos, especialmente quando em SP. Note que não estou me referindo à tensão da violência, em parte inventada pelo alarido da imprensa para fazer medo a toda gente. Não. Estou chamando a atenção para aquela tensão que nasce da aplicação unilateral e malsã da nossa energia vital, desperdício cujo alcance Tiririca catapulta, porque a ela associa uma cabeça de coruja que, ao se fazer de abestada, a um só tempo ironiza a ave noturna de Minerva e provoca em nós o riso iluminador e nervoso em torno do quanto de sem-sentido há dentro da expectativa pelo sentido que em vão buscamos ali — o efeito é maravilhoso, e não há quem não o partilhe e sinta, especialmente quem não se ocupa de explicá-lo, como eu estou tolamente tentando fazer aqui.
Mas eu insisto. Observe que Tiririca faz uma pseudo encenação do contraste batido entre vigor físico e cérebro de ameba, e digo pseudo porque a ameba é falsa. A aguda inteligência intuitiva do personagem está em que a real e efetiva ausência de sentido se dá precisamente ali onde ela não se completa, porque cada um dos que a assiste sente-se duplamente impelido a socorrê-la: de um lado, rindo, e, de outro, não deixando de registrar que no fiapo de busca de sentido em que nos agarramos está toda a possibilidade de uma outra vida, uma outra realidade, com que então o riso explode numa gargalhada conjunta contra nós mesmos e contra todo o absurdo da existência organizada em que vivemos, qua organizada. Tiririca dá mais no que pensar do que toda a filosofia da USP — e não digo isso para menoscabar o sério e profícuo esforço uspiano, mas para dar ideia do quão sensíveis, e mesmo sábios, foram aqueles que reconduziram esse nosso semelhante aos salões do Congresso. Parabéns SP! Salve Tiririca!
Mas o Rio não ficou atrás e, de certa forma, foi mais longe, pois escolheu o Senado para aprontar. Observe leitor que ao passo que em SP a ausência de válvulas de escape fez com que o apronte se desse na linha do escracho; no Rio, a mesma vontade de aprontar se fez conduzir com a leveza serena dos velhos sambas. Quem assistiu à propaganda eleitoral no Rio teve um exemplo raro do contraste entre o Brasil presumido dos doutores e a ginga libertadora, ainda que problemática, dos diferenciados. Quanto mais César Maia se esforçava para advertir a nós, os néscios, da enorme responsabilidade que é escolher um Senador da República, mais Romário percorria as ruas do Rio como quem faz uma visita ao estádio em que um dia foi feliz. Enquanto Maia mobilizou todo o arsenal disponível da razão convencional para se mostrar conhecedor do estado e da sua metrópole, na ilusão de que o eleitor pudesse levar a sério o vínculo que o doutor pretendeu vender entre a sua eleição e a realização dos seus alegados propósitos; o baixinho se apresentava como alguém do pedaço, que conhecia não os problemas, mas a sua gente, que trazia não exatamente soluções bem pensadas sobre como o Rio se dar bem na disputa federativa, mas antes chamava a atenção para a dimensão humana da nossa miséria comum.
Candidato da desordem disfarçada em ordem que infelicita o Rio, o ex-prefeito assistiu impotente Romário ultrapassar sua gravidade emprestada com o convite a uma ordem aberta à invenção, sem a violência da disciplina própria dos campos de confinamento, embora fantasiada de pacificação. Vai lá, Romário! Valeu Rio!
Tiririca no picadeiro, sem palhaçada; Romário em campo, sem concentração. Isso pode dar samba, o que não deixa de ser uma deixa de (re)começo.