Carlos Novaes, 8 de outubro de 2014
Como eu ia dizendo no último capítulo exibido aqui, estamos em tempos propícios à transformação, mas carecemos de um vetor político que a traduza. Rememorando também as cenas do penúltimo capítulo, cuja íntegra pode ser encontrada aqui, o argumento do que vai sendo narrado nestes textos pode ser resumido assim: a desigualdade brasileira, sempre ela, à partir de 1994 deu lugar a um populismo sem uma força propriamente populista, pois a desigualdade é tamanha que a própria classe dominante é agente do populismo. Os nossos capitalistas, nos quais não se pode encontrar uma fibra de apego a ideias (falha de caráter que nos livra de alguns problemas, mas nos impõe outros, talvez ainda piores), como eu dizia, os capitalistas locais não se importam que o Estado ajude um pouco (um pouco) aos muito pobres porque, afinal, fica muito barato e, julgam eles, não há ameaça à ordem ou, na pior das hipóteses, a pouca ameaça que há pode ser resolvida pelo dispositivo paisano-militar cuidadosamente preservado da ditadura, a PM. Essa é a lógica do pacto realizado pelo Real, ao qual sucumbiram todas as forças políticas com possibilidades de protagonizar maiorias eleitorais.
O problema é que como não existe almoço de graça, a conta não fecha, ou melhor, só fecha se, num pequeno arranjo de contabilidade criativa, não entrarem nela duas despesas: a que resulta da degradação ambiental e as mazelas que se alastram pelas vias e enxovias das nossas aglomerações urbanas — enfim, floresta e cidade irmanadas no ar mefítico que respiramos (o que a gente não der conta de respirar haveremos de legar às gerações futuras). Como não poderia deixar de ser, a essa desordem ordenadora na gestão da dimensão material do problema corresponde uma crise na representação dos interesses e esperanças da sociedade que mais e mais afunda no sofrimento resultante, crise esta que retroalimenta a desordem aquela, numa geringonça política que articula um circuito excretor-fonador pelo qual o dizer nefasto aduba o fazer maléfico, e vice-versa (sobretudo), cambalhota por assim dizer linguística pela qual nossos maiores edificam pela primeira vez na história deste planeta uma gramática dedicada não à dimensão culta da língua casta, mas à sua avacalhação, se é que estou me fazendo entender.
Essa gramática avacalhada não é senão outra maneira de escrever o descolamento entre o mundo da vida, onde estamos todos nós, e o mundo dos profissionais da representação e da gestão, que vivem num outro micro-clima. Esses profissionais sequestraram a política, tiraram-na da nossa vida e do controle da nossa vista, e não obstante já tenhamos pago e repago, diariamente, o valor do resgate — cujo cálculo é similar ao da dívida pública: cada parcela paga é variável de cálculo para estipular a próxima parcela, nunca se prestando a reduzir o principal — não obstante todo os pagamentos feitos, dizia eu, eles continuam a seviciar a vítima e a propor reformas que lhe aumentem as amarras, como o fim da reeleição para o executivo, voto distrital ou em lista, mandatos de cinco anos com coincidência eleitoral, financiamento público de campanhas e outras malandragens. Só não se fala em acabar com a reeleição para o legislativo, a mãe e o pai de todos os sequestradores.
À medida que os resultados do primeiro turno vão sendo conhecidos, descobrimos que as coisas vão de mal a pior, pois a representação congressual ficou mais conservadora do que já vinha sendo. O absurdo desse resultado me parece óbvio, afinal, a sociedade brasileira não ficou mais conservadora nos últimos quatro anos. Muito pelo contrário, ela se mobilizou mais, protestou mais e se mostrou menos intolerante com as chamadas minorias, como dá evidência um crescente relaxamento na rigidez dos costumes, também resultado de uma situação demográfica com presença acentuada de jovens. Atenção: não estou aqui apenas deplorando o avanço do conservadorismo no Congresso; não — eu estou sobretudo chamando a sua atenção para a acentuação da crise de representação, pois a uma sociedade que se abre se tem como resposta um sistema político que se fecha. Em outras palavras, há algo errado com nosso sistema de representação, que baseado numa nociva memória de rotinas impede o fluxo do novo para o topo do sistema político.
Essa memória de rotinas fica bastante clara tanto no crescimento das bancadas de evangélicos e de policiais militares, quanto no aumento da representação dinástica, que vai se firmando entre nós à medida que filhos e familiares de políticos tem nessa relação de parentela um ponto de largada vantajoso na corrida por um lugar ao sol, ou melhor, à sombra. O que todos os membros desses agrupamentos tem em comum é o fato de partirem de formas pré-políticas de associação para alavancarem sua condição de representantes políticos, o que é um modo perverso de refletir a falência dos partidos políticos: ser evangélico, polícia ou parente tornou-se uma forma de instrumentalizar esses coletivos para furar, também, quando não principalmente, em causa própria, o bloqueio à ascensão social imposto pela desigualdade, o que é sempre menos difícil do que enfrentá-la como problema coletivo. Digo que essa é uma variante pré-política porque a seleção que se faz dentro desses agrupamentos por assim dizer corporativos não se dá segundo práticas da esfera pública. Eles estão contrabandeando para dentro da dinâmica da representação memórias rígidas, fundadas em afinidades pré-políticas (e, até, anti-políticas) segundo preceitos bíblicos, códigos de conduta hierárquica e interesses familiares restritos, memórias que não estão abertas ao intercâmbio que seria de esperar de uma ação propriamente de representação, destinada a atender aos fluxos emanados da sociedade. Daí o enorme contraste entre a sociedade que se mobilizou em 2013 e a representação que sai das urnas em 2014. É um contraste fabricado pela junção perversa, e a cada dia mais perigosa, do preceito da reeleição infinita para o legislativo, que permite a criação de rotinas (memória) facilitadoras da reiteração de interesses já contemplados, com a ação de grupos de interesse que entenderam o dispositivo inercial embutido nessas rotinas e a elas acoplam as suas próprias memórias reificadas (a “verdade” bíblica, a ordem militar, o bra$ão familiar), em tudo avessas ao fluxo que caracteriza a sociedade, fluxo este que não é outra coisa senão a troca intensa de memórias não reificadas, ora mais, ora menos abertas à mudança, mas sempre em movimento.
A esses grupos enrijecidos por definição, junta-se a não menos granítica bancada ruralista, a mais antiga delas, que aprendeu lá atrás o caminho das pedras, aprendizado que já foi chamado de pemedebismo, como se o que pudesse explicá-la fosse a dinâmica parlamentar e, ainda por cima, tão recente. Mas essa discussão do pemedebismo fica para outro dia, pois a queixa ante o tamanho dos meus textos é quase generalizada. Cumpre acrescentar apenas que as possibilidades de ação concatenada entre essas bancadas de memórias rígidas são tão grandes quanto diminuem as chances de se obter êxito intra muros contra elas. A mais temível delas é a bancada da polícia, porque ela está plantada em todo o território nacional, a cada dia ganha mais articulação (inclusive nas Assembléias estaduais e Câmaras municipais), tem capilaridade urbana miúda, está fundada na hierarquia e, o mais alarmante, reúne grupos internos com uma predileção pelo uso tão indevido quanto “legitimado” da força.
Vivemos uma situação em que não há vetor transformador e nem tudo são cinzas. Há fumaça tênue ao longe. Como ainda não é possível sentir-lhe o cheiro, deixo ao leitor escolher se o material está em chamas ou em mera decomposição.