Carlos Novaes, 18 de outubro de 2014
Como já pude dizer em um (2009) ou outro (2014) post neste blog, PT e PSDB são duas vias eleitorais de um mesmo projeto, que vem se desdobrando desde 1994, quando o sucesso do plano Real consolidou um pacto incrementalista conservador como “saída” para o impasse em que então se encontrava o país, pacto este ao qual o lulopetismo explicitou sua adesão em 2002, com a obediente Carta aos brasileiros. Se, passados vinte anos, as duas forças ainda se digladiam com denodo é porque a desigualdade brasileira é de tal ordem que a arena política pôde se descolar dos sofrimentos do povo — a ação política organizada se tornou um método dos organizados para escapar a esses sofrimentos, não uma forma de luta contra o sofrimento intolerável enquanto tal: briga-se para estar lá, não para fazer isso ou aquilo, pois o fazer estaria dado, como se houvesse um diagnóstico único e uma receita não menos única. PT e PSDB são forças organizadas que atraem subforças não menos organizadas para ocupar o estado, sobretudo em proveito próprio. O resultado é que os muito ricos, que atendem pelo nome de “mercados”, donos do diagnóstico e da receita, sem deixar o exercício permanente de suas afinidades eletivas (daí, hoje, preferirem Aécio – mas “podem Dilmar”, ou “Marinar”, etc), vivem a situação confortável de ter à mão duas (e até três!) variantes para o exercício de seu domínio, concedendo que se ajude (com moderação, para não acostumá-los mal) os muito pobres a enfrentarem a mais básica das agruras que o ser humano partilha com qualquer forma de vida, a fome (a que ponto chegamos!). Por isso a estupidez inegável de quem quer encontrar na disputa atual um embate entre ricos e pobres. Não é, pois ricos e pobres são os pólos “satisfeitos” ou “atendidos” pelo modelo atual. Aliás, os sinais de esgotamento desse arranjo malsão entre “contrários” estão visíveis nas vias e enxovias urbanas em que nos atravancamos, em meio a sofrimentos cujo potencial de arregimentação política ficou visível nas manifestações de junho de 2013, ainda que elas não tenham apresentado um vetor claro.
Em outras palavras, ficou, permanece e permanecerá indecidido se a ida às ruas indicava um caminho sem volta ou significava uma advertência contornável. Ir às ruas é uma prática cujo sentido é dado por ela mesma. Seja como for, as manifestações colocaram na ordem do dia dessa disputa presidencial de 2014 a ideia de uma terceira via eleitoral que — por contraste (verdadeiro ou não) com as outras duas — sugerisse ao eleitor a possibilidade de um passo num sentido diferente. O trágico desaparecimento de Eduardo Campos introduziu um dado novo, pois alguém com a história de Marina Silva fazia pensar que se abria a possibilidade de que a terceira via eleitoral adquirisse o sentido de uma transformação. Mas como Marina entrou em cena com uma versão neoclássica do mesmo pacto, soldando reação com conservação, as esperanças foram fraudadas, o primeiro turno transcorreu como vimos e, agora, depois que o eleitor entendeu e descartou uma versão neófita especialmente ruim do arranjão, estamos mais uma vez entre as duas vias originais de um mesmo projeto inatual.
Dessa perspectiva, não há como negar nem que Marina conseguiu um lugarzinho no arranjo, ao esbagaçar no meio fio a perspectiva de uma terceira via, aderindo a Aécio (se ele vencer, ela haverá de ser ministra, levando os mais seus e repetindo o velho ciclo de organizar para se safar); nem cabe negar, eu dizia, que, em decorrência até do que precisou fazer consigo mesma para essa conquista pirrônica, Marina é feliz ao celebrar como equivalentes as cartas compromisso de Aécio e Lula. De fato, cada um a seu modo explicitou sua obediência ao plano comum, tendo ambos o cuidado de afagar o lado de onde poderiam advir desconfianças (afinal, infundadas): Lula afiançou aos ricos que não alteraria os mecanismos de acumulação irrefreada e retenção ilimitada da riqueza (e cumpriu); Aécio garante aos muito pobres que não vai interromper o filete que lhes desce pela torneira (é crível, pois o PT “mostrou” que fica barato: basta dar sem mobilizar). Marina escolheu não o protagonismo de quem dá um passo adiante, mas a vanglória de ter sido a única que apoiou as duas cartas, o que orna com seu programa a um só tempo reacionário e conservador.
Esses são o papel e o barbante com que foram embrulhadas as diversificadas e complexas camadas médias, que mais adiante, talvez mais cedo do que se suponha, não poderão deixar de viver toda essa alienação como uma imensa frustração, sejam os mais pobres ou os menos pobres entre elas — haverá para todos: frustraram-se os transformadores, frustraram-se os mudancistas e frustram-se a cada dia eleitores de Dilma e Aécio, pois, se ignorarmos os boçais irrecuperáveis que há em cada “lado”, muito cedo a imensa maioria dos que se dizem partidários desse ou daquele não poderá fugir da constatação de que fez papel de boba nessa pantomima patética.
Marx, retocando Hegel, sugeriu que a história, quando se dá duas vezes, apresenta-se na primeira vez como tragédia e na segunda como farsa. Mas para isso é necessário que, afinal, a história se dê. Quando ela entra em transe, quando o fluxo fica como que em suspenso, o que se tem em cena aberta é a tragédia encenada já como farsa, um ato que ao misturar choro e riso pode levar a platéia participante do espetáculo (nesse teatro em que os bancos sequestraram a agenda e os agentes da cultura) a constatar que é hora de chorar do que ri e de rir do que chora, embalo no qual ela pode reconfigurar a memória de seus sofrimentos intoleráveis e, então, resolver fazer história.
Resposta à Pergunta de um amigo:
Pergunta: – Novaes, afinal o que está acontecendo?
Resposta:
O que está acontecendo é mais ou menos o seguinte, suponho eu:1. Como o pacto conservador gradualista supõe não mexer em cima e atender minimamente lá embaixo, Aécio aparece mesmo como uma versão do Lula – daí que seu documento se parece mesmo com a Carta do Lula : são versões de um MESMO projeto. Essa é a moldura em que se move a preferência do eleitor, tenha ele consciência dela ou não. Logo, a questão é escolher o melhor para fazer a mesma coisa, como o “conteúdo” das campanhas e dos debates deixa ver e martela diariamente – como não poderia deixar de ser, pois a moldura para os candidatos é a mesma que constrange o juízo do eleitor. A isso se chamava antigamente “ideologia dominante”.1.1. Aécio não está mentindo quando diz que vai continuar o BF e o MCMV – sai barato;2. Dilma se aferrou à defesa dos grandes números desses seus programas sociais – isso é uma armadilha porque:2.1. ela só fala disso e, assim, na maior parte do tempo não fala com o miolão da “pirâmide”, que é pobre, mas não tão pobre a ponto de ser assistido pelo MCMV ou pelo BF — ou seja, Dilma não está falando com um mundão de gente;2.2. os não assistidos ficam à espera de uma alternativa e, aí, Aécio surfa sem precisar dizer muito – basta ser a mudança;3. Vai ser difícil derrotar o Aécio, mas não é impossível, pois a máquina tem muita força na hora H.Um abraço.
Esse movimento tem que vir das ruas e não de partidos. Sobretudo estudantes, pensadores antes passivos, críticos, cientistas políticos. O povo, que possui o poder originário, deve fazer valer sua soberania. Ou seremos uma utopia futurística em uma realidade que beirará os povos africanos. Entretanto Novaes, sou pessimista. O capitalismo chegou a tal ponto que sua influência é esquizofrênica e sua raiz vai buscar desda criança, desdos mais profundos anseios de consumo e alienação. Nos tornamos a sociedade do espetáculo, vivemos em 1984, vivemos um imperialismo conceitual de dominação.
Peço desculpas pelo erro na ortografia do seu nome.
Então, fazermos a pressão necessária para movê-los nessa direção mas pelas vias institucionais?
Sr Novaes.
Acredita que Luciana Genro poderia e pode ser esta terceira via?
A questão é: Como a tal 3ªV irá resolver de fora para dentro as questões de governabilidade e reformas, sendo que, o mercado é quem regula e elege seu mandatário.
Não necessariamente a Luciana, propriamente, mas o PSOL, com uma profunda mudança, abandonando o resto de marxismo ruim que carrega (o da imprecisa “luta de classes”, que só gera confusão) e livrando-se definitivamente do “revolucionarismo”, poderia, sim, ser o núcleo eleitoral de uma transformação. Mas não sou otimista, pois mesmo para esse pleito de 2014 eles pretenderam uma aliança com o PSTU…
Bem, se eu tivesse uma fórmula já a teria publicado. Meu esforço é o de encontrar nos nossos sofrimentos urbano-ambientais, digamos assim, os dínamos para agregar gente voltada a uma transformação. Minha proposta do fim da reeleição para o legislativo busca dialogar com esses sofrimentos no plano político mais amplo. É uma proposta radical, mas exequível, pois as pessoas podem chegar até ela partindo de diferentes níveis de compreensão. Em tempo, minha proposta não tem nada que ver com esse movimento recente, de abaixo-assinado, cuja inclinação conservadora e anti-política é clara – eles conseguem pegar uma ideia fecunda a fazer tudo errado: propõem o fim da reeleição para o Executivo (sou contra, acho que vale manter com uma reeleição) e deixam ao legislativo uma reeleição, o que ofende a inteligência conceitual da questão.
Sr. Novais,
Como se daria essa reforma para o legislativo? Não são os tais deputados/senadores reeleitos eternamente que teriam que aprovar tal reforma? Pelo que podemos intuir, esses nossos “representantes” jamais deixariam passar uma reforma que lhes cortasse as raízes fincadas no poder.
Meu nome é NovaEs.
Bem, não pode depender da vontade deles, claro. Teria de haver uma massiva mobilização popular CONTRA ELES para que algo assim viesse a ser adotado, seja aqui, seja em qualquer outro país. O que proponho é uma luta político-social, não um abaixo-assinado.
Gostaria que Marina viabilizasse uma terceira via em 2018. Pelo visto, com ela é que não será. E o chamado “choque de gestão”, que os tucanos consideram a salvação da lavoura, não é grande coisa, dado o que escreveu o Rogério Cerqueira Leite na Folha. Como dizia aquela música que a molecada gostava de ouvir: “Tá tudo dominado”.
PS. Novaes,
Quando você fala em transformação, uma proposta é a da taxação de grandes fortunas, como quer o PSOL? O Giannotti não acredita nisso, diz que o Brasil precisa criar mais riqueza para poder continuar a distribuir. Qual seria o caminho?
Esqueça a Marina.
Pois é, o Giannotti se fez discípulo tardio do Delfin de antanho. Acho que a desigualdade explica que um economista que serviu de mentor e arrecadador à ditadura se torne, em idade provecta, o filósofo político de plantão no país.
Sim, temos que taxar as grandes fortunas, mas não só.