O RABO ABANA O CACHORRO — 1 de 2

Carlos Novaes, 05 de setembro de 2015

 

Como todo mundo sabe, a situação orçamentária da União requer, se não as duas, pelo menos uma das seguintes medidas: aumento da arrecadação e/ou corte profundo de despesas. Esse aumento e esse corte podem se dar levando ou não em conta a capacidade contributiva e econômica de cada um: de um ponto de vista estritamente liberal, a sociedade brasileira é formada por indivíduos iguais perante a lei e, então, os custos serão distribuídos per capita; num entendimento contrário, de um ponto de vista não-liberal, a sociedade brasileira é formada por camadas sociais muito desiguais em riqueza e em capacidade de apropriação de renda e, então, os custos tem de ser distribuídos segundo essas capacidades. O mais recente grande erro de Dilma foi não ter  perseverado e enviado ao Congresso a proposta da volta da CPMF, um aumento inconveniente na carga tributária que, não obstante, teria o mérito de distribuir a carga adicional de um modo menos desigualitário: cada um pagaria segundo sua própria movimentação financeira. Ao perseverar, mesmo na quase certeza de que seria derrotada, Dilma teria deixado claro duas coisas: primeiro, que ante a recusa de Temer em fazer a intermediação política ela teria (finalmente) assumido um papel que é seu (ainda que, como digo desde 2008, ela não disponha de liderança para este papel — mas, agora, que ela já dele está investida, não há outro remédio senão ir até o fim, explorando o que de auspicioso para si ainda possa haver na incerteza que a vida política sempre conserva); segundo, que sua opção para vencer a crise inclui uma efetiva preocupação com a desigualdade e com a situação dos mais pobres sob ela. Ao recuar, Dilma perdeu de todo lado e deu mais um passo para se tornar mais um Sarney, ou simplesmente ter de deixar de ser presidente da República.

Como quem muito recua acaba por encontrar o inimigo pelas costas, Temer avançou mais algumas polegadas na sua calculada trajetória de “não-traição”: depois de proclamar que alguém precisava unir o país, ele agora declarou, à platéia de um movimento pró-impedimento com o qual aceitou se reunir, que Dilma não terá condições de continuar presidente sob baixos índices de aprovação popular, não sem acrescentar, com a gravidade empoada de sempre, que nada fez, faz ou fará pela queda dela… Se, num primeiro momento, a reação do p-MDB à proposta da volta da CPMF pôde ser interpretada como mais um passo no controle sobre Dilma, como explorei aqui, agora, depois que ela não enfrentou aquela reação e, simplesmente, recuou, o que há de desafiador na situação é o por quê de Temer ter entendido que substituir seria mais vantajoso do que meramente controlar sarneycamente a presidente. A chave para entender a mudança está, de um lado, no fato de que para os políticos profissionais em condições de chegar ao poder com a ruína de Dilma, o quanto pior, é melhor; e, de outro lado, na pergunta que se faz o empresariado (aquele que conta) acerca de o que é esse pior?: se a queda de Dilma (que vai deixar Lula solto para mobilizar os de baixo contra o governo que se instalar – é bom não subestimar essa variável), ou se a continuação dela, que impõe pactamentos novos com o braço político.

Como a situação econômica se deteriora na exata medida em que se nega à presidente o apoio político profissional necessário para que ela implemente as medidas que, se sabe, devem ser tomadas para conter a crise, e como a piora da situação econômica aumenta a incerteza dos empresários poderosos sobre o que vai resultar da movediça inquietação popular ante os sofrimentos impostos pela mesma crise, as duas faces do establishment, a político profissional e a econômico empresarial entraram em momentânea assimetria: os políticos querem mais crise para resolver a sua “crise” e os empresários querem menos “crise” para equacionar de modo favorável a crise. Ou seja, para o establishment, se não há crise de hegemonia, há “crise” no modo de operar politicamente a hegemonia que, não obstante, não se perdeu. A desarmonia surgiu porque profissionais do p-MDB passaram a enxergar no exercício direto da presidência, via Temer, uma solução não apenas para a “crise”, mas também para implementar com ares de salvadores da pátria a mais conservadora das saídas para a crise. Me explico: como a opinião pública foi convencida tanto de que a situação econômica grave é desesperadora (e não é), quanto de que a culpa é sobretudo de Dilma (e não é — o pacto do Real é que entrou em falência, pois a conta um dia ia chegar), como a opinião pública já foi devidamente embrulhada, eu dizia, o júbilo com o sacrifício de Dilma proporcionará a credibilidade que o novo presidente voltará contra a imensa maioria dos próprios jubilantes: medidas de austeridade que protejam os ricos, penalizem as camadas médias e sacrifiquem os mais pobres. Assim como Itamar proporcionou o lançamento do Real, Temer levaria a cabo o “relançamento” de um plano salvador, via recauchutagem, mas sem as qualidades do plano de FHC. Ainda assim, o que não vai faltar é candidato a ministro da fazenda…

A variável incerta é Lula. Por isso, busca-se, sem parar, desgastá-lo, explorando todo e qualquer indício de sua participação nos malfeitos, não sendo mesmo crível que ele nada soubesse e de que não tenha tirado proveito para si dos malfeitos. Lula colhe a safrinha do que plantou, adubou e regou. Ainda assim, até que tenham encontrado provas que o incriminem, seus adversários sabem que não podem subestimar sua força, especialmente numa conjuntura em que a saída que querem implementar passa por sacrificar ainda mais a já sacrificada pobreza do país: com Lula na oposição e podendo “voar”, vai haver confusão (e confusão sempre abre brecha para pôr em risco a hegemonia). Os empresários, cuja maior capacidade é fazer conta no longo prazo avaliando a solidez do curto prazo, são mais cautelosos e temem a saída de Dilma; os políticos profissionais, cujas contas sempre incluem ambições de curto prazo, deixando o longo prazo para o “estaremos todos mortos”, estão mais prontos a tomar o lugar de Dilma. Eis uma típica situação de desordem na ordem do mando: o rabo está a abanar o cachorro.

Ou seja, à medida que o tempo passa o acordão telepático que havia praticamente sido alcançado em torno de Dilma vai apresentando essa dissintonia, própria de acordos que não resultam de uma conspiração, mas de leituras de uma realidade complexa, as quais só alcançam convergência de modo indireto e incerto. Por mais oportunistas e nefastos que sejam esses atores que sempre ganham, uma coisa é certa: em última instância, o principais culpados pela situação política adversa ao povo são Lula e o PT: depois de terem assinado o contrato de adesão ao pacto do Real, depois de terem abandonado suas bandeiras originais e se entregado aos êxitos fáceis da condução ruinosa desse pacto não menos ruinoso para os mais pobres e as camadas médias, Lula e seu PT ainda se ajeitaram em torno da candidatura Dilma (imposta pelo primeiro ao segundo), ambos fiados num acordo com o p-MDB que, agora, se posiciona para herdar — e desviar (profissionais que são do tráfico de esperanças) — a energia vital que a sociedade brasileira se vê chamada a despender para sair da crise. Se as coisas se passarem assim, ao fim e ao cabo vamos recolher uma derrota ainda maior do que de início supus, pois esmagado pelo peso que terá pagado para que as elites mais uma vez tenham se safado de uma crise da qual são responsáveis, nosso povo, mais uma vez, vai concluir que de nada adianta lutar. Esse é o maior crime do lulopetismo, pois, por mais medo que, agora, imponha ao “outro” lado, ele não tem a menor condição de tirar da implosão uma variante auspiciosa para o povo. Ou seja, ao fim e ao cabo, a implosão decorrente de uma saída de Dilma não tem nada de incerta: vai sobrar para o povão.

Fica o Registro:

Quando, dias atrás, Alckmin declarou que o importante é varrer o PT, ele não estava visando a luta interna no PSDB, como se interpretou na mídia convencional. Não. Ele estava a reconhecer o adversário em 2018 e, por isso, dava uma resposta ao “voltei a voar” do Lula que, por sua vez, não foi menos arguto na interpretação da ocasião para declarar-se de volta ao jogo: o cai ou não cai de Dilma depende também de o quanto o temam, e o resultado contra si de uma queda dela depende de o quanto ele venha a ser identificado com os erros dela — por isso, depois de passar a voar Lula declarou que Dilma deve suavizar o ajuste. É leitor, a qualquer cochilo se perde o fio.

– Repito: não se pense que Lula está amarrado à marca PT. Se necessário, sacrificar-se-á a marca e ele voltará, no vetor de uma “frente popular de oposição à saída da crise em favor dos pobres”, encabeçando um movimento popular que por certo reunirá muita gente boa aos burocráticos e oligárquicos movimentos sociais. E tudo recomeçará, mais uma vez em torno da luta de classes, esse eixo que, partido desde a segunda década do século XX, continua a ser manipulado em vão.

O racha no p-MDB tem importância central na ação de Temer: sem força para decapitar Cunha (cujo poder de articulação fora do parlamento vem se mostrando maior do que se supunha – em mais uma demonstração da decadência de nossa ordem política), o vice-presidente se vê empurrado a fugir para a frente, reunindo mais poder para recolocar a casa, o p-MDB, em ordem. Para Temer, se houver mudança de rota no partido, que seja sob o comando dele, não de Cunha.

– O que explica esse racha no p-MDB é o fato de que o ambicioso e atrevido Cunha viu, e está a explorar, a brecha para um projeto próprio que a ruína do PT abriu para o seu partido. Ele quer liderar o p-MDB para uma nova fase, que rompa com a história subalterna da legenda, que vem desde 1965, surfando na onda, a um só tempo conservadora e mudancista, que está a se abrir.

– Ia esquecendo: a “proposta” do Abílio Diniz é tão primitiva quanto ele. Deixando de lado a complexidade da situação, que venho buscando discutir em seguidos posts e que já não comporta “soluções” desse tipo, de onde ele tirou que FHC toparia se trancar com Lula em algum lugar!!???

4 pensou em “O RABO ABANA O CACHORRO — 1 de 2

  1. Daniel Reis

    Duas observações em relação ao excelente comentário: 1. na análise dos “políticos profissionais”há uma perda de sutileza, ponto forte do autor. A rigor, toma-se no comentário a parte pelo todo, quando se afirma que os políticos profissionais querem o “quanto pior, melhor”. Ora, o quanto pior, melhor, faz parte da agenda de Cunha e suas bases (a serem melhor esclarecidas, explicadas e interpretadas), mas não faz parte, até agora, da agenda de muitos políticos. Mesmo no PSDB, há nuanças a este respeito. Renan também vacila em entrar neste jogo perigoso. E os demais partidos de políticos profissionais da famosa base do governo (que, volta e meia, vira suco), também ainda não entraram neste jogo. O que quero dizer: não dá para generalizar – o comportamento de Cunha e suas bases AINDA não dá a tônica do comportamento dos políticos profissionais (categoria, de resto, meio abstrata);
    2. Há uma flutuação no artigo. Ora, sopra, parecendo sugerir que a aposta em Dilma parece viável, do ponto de vista das camadas populares. Ora, morde, assinalando suas – de Dilma – debilidades e inconsequências, chegando mesmo a contemplar sua saída antecipada do poder. Penso que Dilma e o PT perderam, a médio prazo, qualquer condição de liderar uma alternativa popular e de esquerda à crise. Dizê-lo, alto e bom som, é muito importante para favorecer a emergência deste tipo de alternativa – se não vier a tempo, corre o risco de apodrecer.
    Quanto a Lula, tem razão o Autor de dizer que se trata de uma variável instável e ainda não plenamente elucidada. Mas uma coisa é certa – se não for criada uma alternativa de esquerda e popular, com força própria, Lula não sairá de onde está – o muro.
    Daniel Reis

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    1. Carlos Novaes

      Daniel,
      1. tenho feito um uso deliberado da expressão “políticos profissionais” em geral. Para me fazer mais claro, rogo que os leitores leiam os posts do Blog classificados na “Categoria” REPRESENTAÇÃO NÃO É PROFISSÃO. De toda maneira, esclareço apenas que:
      a. político profissional é uma categoria que nada tem de vaga neste blog: para mim, político profissional é todo aquele que está no exercício de mandato eletivo legislativo e inclui entre seus objetivos continuar eleger-se para novo mandato legislativo na próxima eleição;
      b. como para o autor deste Blog reprsentação não é uma profissão, não há porque fazer diferença, sob este registro, entre os políticos profissionais: ao fim e ao cabo, todos estão a serviço da mesma ordem que nos infelicita, aqui e nas chamadas democracias ocidentais;
      c. as nuances não me interessam, pois elas não tem QUALQUER potencial transformador – enquanto admitirmos a reelição para o legislativo e/ou que este poder se preste à construção de CARREIRAS POLÍTICAS, não haverá mudança substancial – SOBRE ISSO LEIA-SE MEU POST DE FUNDAMENTAÇÃO: A POLÍTICA ENTRE A MEMÓRIA E O FLUXO;
      d. logo, não estou generalizando o comportamento de Cunha e suas bases: para o foco em que estou agora, as diferenças não interessam, embora possam ser relevantes em outro contexto, quanto o foco não é a transformação, mas o retrocesso. Pano para outros posts.

      ATENÇÃO: é justamente em razão de questionamentos como este do Daniel que sempre faço remissões internas (links) de um para outros posts do Blog. De algum modo, tenho que partir de que o leitor JÁ CONHECE os fundamentos do que penso. Este blog não é jornalístico, nele eu tento oferecer uma concepção geral da política, com o máximo de clareza e coerência de que sou capaz.

      2. Não há morde e assopra: estou a fazer, a quente, a análise de uma situação complexa, cuja complexidade tento agarrar e entregar ao leitor num ponto mais avançado, para a sua reflexão. O pano de fundo dessa análise, a minha preferência orientadora, digamos assim, é o compromisso contra a desigualdade e a busca do melhor diagnóstico da realidade em que a luta contra ela se dá, explorando, quando há, alguma alternativa. No momento, entendo que enquanto não houver elementos formais que envolvam Dilma em crime, ela não deve ser removida da presidência. Além disso, num passo seguinte, mas não necessário, entendo que ela na presidência AINDA é uma garantia contra o pior, entendendo como pior a adoção, pelo executivo, de um rol de medidas ainda mais desinibidamente anti-povo do que as que ela vem dando mostras de aceitar. Qualquer outro que a substitua vai fazer pior (leia-se, a esse respeito, os 4 ou 5 posts mais recentes). Nada disso pode ser confundido com a análise da situação objetiva dela enquanto ente capaz ou incapaz (do meu ponto de vista, incapaz – e faz tempo que digo isso), ou com a avaliação das chances dela de permanecer no cargo, que depende mais dos outros do que dela, ainda que ela jogue um papel nisso, claro (penso que essa complexidade tem ficado clara nos meus posts, não?).

      3. Para mim não HÁ, NEM JAMAIS haverá, “saída de esquerda para a crise”, pois não há mais esquerda. Isso acabou faz tempo e quem insiste nisso atrasa a luta pela transformação. O fim da esquerda acompanha o fim do ferramental básico empregado por ela para ajuizar a realidade e buscar transformá-la. Há que reinventar a luta. Agora, não se deve subestimar o papel que as autointituladas forças de esquerda ainda jogam, infelizmente. Lula, se nada provarem contra ele na Lava Jato ou em qualquer outra lavação, ainda vai dar muito trabalho (inclusive a nós que queremos transformar o Brasil…). Assim, embora não veja senão derrota para nós numa eventual queda de Dilma (que ainda considero o resultado menos provável da conjuntura), não subestimo o quanto Lula poderá se fortalecer com essa queda e, então voltar em 2018. Quem é do ramo está preocupado (Alckmin). Já eu estou preocupado é com ter de escolher entre Lula e Alckmin para presidente: de uma lado, um caudilho inconfiável manipulador da pobreza; de outro, um reacionário que daria plenas condições a uma articulação nacional da veia autoritária de religiosidade com PM.

      Ah! sim: no caso específico do “quanto pior melhor”, falei dos políticos profissionais que querem e estão em condições de chegar ao poder com a queda de Dilma, o que exclui toda a “esquerda”, tão cara ao Daniel e, ainda, setores de outros partidos…, no que, então, estamos de acordo, eu e Daniel…

      Responder
    2. Roberto

      Olá Daniel,
      Como repete o Carlos Novaes, ele tem o cuidado de nos remeter a seus textos anteriores para ajudar-nos entender as leituras que ele faz do nosso contexto político. Acho muito útil e sempre uso os hyperlinks (obrigado!) que ele adiciona sobre termos ou ideais importantes para seguir o seu raciocínio.

      Responder

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