Carlos Novaes, 06 de setembro de 2015
Lá no início de novembro do ano passado, quando o desastre que seria Eduardo Cunha alcançar a presidência da Câmara era ainda uma possibilidade, eu disse aqui que:
Não é segredo para ninguém medianamente informado que se Eduardo Cunha chegar à presidência da Câmara dos Deputados toda pessoa de bem logo sentirá as mais sinceras e pungentes saudades de Inocêncio de Oliveira e Severino Cavalcanti. No âmbito congressual da lógica de palácio e em nome do projeto gradualista comum, Dilma deveria chamar Aécio a um entendimento para que as duas forças, ainda que mantendo suas hostilidades institucionais, somassem esforços para que o Senado fosse presidido pelo PSDB e a Câmara pelo PT (ou vice versa), cabendo ao p-MDB de Temer as devidas compensações em ministérios — um típico toma-lá-dá-cá. Um arranjo assim permitiria conter o ímpeto das forças mais nocivas à democracia pactada em que vivemos (ruim com ela, pior sem ela), daria parâmetros mais seguros para algum desenvolvimento, sem desmanchar a polarização fajuta de que os dois partidos julgam se beneficiar, e abriria perspectivas para que nosso povo pudesse se informar em prol de uma alternativa melhor no curso dos próximos anos, o que poderia incluir uma segmentação mais clara na lógica da rua.
E, adiante, acrescentava:
– Dilma não tem escolha: ou derrota Eduardo Cunha ou será derrotada por ele. Por isso, se vierem a apresentá-lo na presidência da Câmara como resultado de qualquer coisa que se assemelhe a um acerto, podemos dar tudo por perdido – mesmo.
Naquela altura eu não tinha em mente, evidentemente, o impedimento da presidente, mas a sarneyzação do seu governo, pois todos sabemos o que Cunha almeja num acordo com o poder executivo. Se, agora, no calor da “crise”, retomo o tema do acordo que outrora temi, não é em razão da sarneyzação em curso, mas da ameaça do impeachment. O que mudou de ontem para hoje foram os desdobramentos dos últimos passos de Temer, que dá sinais seguidos de que está mesmo desembarcando do governo. Como disse no post de ontem, Temer atua na crise sobretudo para não perder o controle do p-MDB, onde vem sendo desafiado por Cunha, que viu uma oportunidade nas ruínas do lulopetismo e vem abrindo caminho em meio à “desmoralização” das bandeiras que essa autointitulada esquerda fingia defender. Com o protagonismo de Cunha, associado ao desaparecimento do PT, criou-se um ambiente novo para o oportunismo do p-MDB, que passou a contar com opções, o que sempre dá ocasião a alguma cisão: enquanto o lado mais antigo do mando (Renan e Temer) viu na situação uma oportunidade para a tradicional sarneyzação pura e simples do governo Dilma; o lado emergente, liderado por Cunha, passou a atiçar uma latência minoritária antiga, sempre neutralizada pelo adesismo puro e simples, que, pressionando esse adesismo, sonhava em ver o p-MDB alçar vôo próprio, embora com a mesma orientação fisiológica.
Pelas razões já exploradas aqui e em outros posts recentes, o empresariado grosso fez a opção de ficar com Dilma, reforçando o p-MDB tradicional, de Temer e Renan, e sacrificando o protagonismo de Cunha, danoso aos seus interesses imediatos na estabilização da “crise” política para, então, poder enfrentar a crise econômica. A complexidade da situação, porém, não dá trégua e, como não há espaço para conspiração pura e simples, os lábeis acertos vão sendo feitos, e desfeitos, no curso vertiginoso dos fatos. Dispostos a ficar com Dilma, evitando enfrentar um Lula de volta às ruas fazendo oposição em tempos de crise, mas com Cunha a acossá-los pelos flancos, Temer e Renan vêm jogando nas duas pontas: ora acodem Dilma, ora sopram as brasas do impeachment, dando uma ponta de chama ao que parecia estar a morrer e, com isso, contrariando o empresariado, a cujos interesses, entretanto, não vão deixar de contemplar: trata-se apenas de uma dissonância acerca da melhor maneira de fazê-lo. É que para os empresários é mais simples, pois querem tão somente que reine a paz para os negócios, seja com quem for; já para o seu braço político, estar no comando é o que define o acesso aos negócios e, então, Cunha é vivido como uma ameaça por Temer e Renan.
Dito isto, fica claro que, em razão da desorientação geral, a sorte de Dilma depende cada vez mais de como a velha guarda do p-MDB vier a resolver o dilema que, desde sempre, a desafia: qual a melhor combinação para manter o partido no poder e sob seu controle?. Em outras palavras, como continuar no governo e, ao mesmo tempo, neutralizar Cunha?
Se for assim, a recente tentativa de Dilma de se acertar com Cunha pode ter sido um impulso para o avanço de Temer na direção do impeachment. Afinal, ao distinguir Cunha com um chamado ao Planalto, a presidente torpedeou o acordão no qual o empresariado tinha se empenhado (segundo o qual Cunha seria sacrificado), e passou a serrar o galho do p-MDB em que ainda se apóia (cujos protagonistas estão ameaçados pela ação do mesmo Cunha)… Em outras palavras, nos últimos dias, Dilma deu a impressão de que escolheu dar as costas aos “amigos” para abraçar o inimigo, operação desastrada que, porém, também resulta do fato de que em seu jogo ambíguo Temer se retirou da negociação política na Câmara, empurrando Dilma a fazê-la (e para a qual ela não tem perfil, não obstane não tenha escolha!!). Para complicar o cenário, a existência de trechos da delação premiada de um empreiteiro envolvendo Lula no cerne da Lava Jato, informação só vinda a público no final da tarde de ontem, pode muito bem ser a razão de Temer estar a seguir o impulso sugerido pela ação desastrada de Dilma na direção de Cunha. Especulemos:
Diante de sinais de que já não haveria um Lula a recear, seria só correr para o abraço: com Lula fora das ruas o empresariado ficaria seguro para embarcar no impeachment, Temer assumiria a presidência, consolidando seu poder no p-MDB sem frustrar a ala que almeja ver o partido correndo em faixa própria, reincorporando Cunha de um modo subalterno. Seria o melhor desfecho para os que cavalgam a nossa desigualdade e a consagração de uma derrota histórica para quem a combate, não havendo ocasião sequer para celebrar o tão venenoso quanto amargo encontro com a verdade sobre a farsa que foi o lulopetismo: superando a “crise” pela via mais conservadora, o establishiment teria tudo para implementar, sem freios, sua solução ótima para a crise e, pior, estaria em condições de passar a impor o retrocesso mais amplo que Cunha almeja protagonizar, ainda que, talvez, sem ele como líder.
Mas como ainda há algum jogo para que esse pior não se configure, vamos ver como caminham o p-MDB e a Lava Jato que, além de Lula, ainda pode implicar outros nomes, até do p-MDB. A situação é sinistra.
Fica o Registro:
– Dilma não falar no feriado da Independência do Brasil é uma decisão estapafúrdia, de uma covardia sem paralelo.
Nesse cenário qual seria a capacidade das forças que se auto intitulam de esquerda se contrapor ao impeachment e como se comportariam as forças transformadoras diante de um governo que seria pior que o atual?
O impeachment pode ocorrer de forma golpista, sem que haja provas do envolvimento da presidente em atos ilícitos?