Carlos Novaes, 03 de outubro de 2015
Embora ainda haja um ou outro fio desencapado a provocar faíscas, o circuito que concatena os braços político e econômico do establishment foi restaurado, normalização que sequer precisou obedecer à lei conservadora de que “é preciso que tudo mude para que tudo fique como está”; afinal, a máxima de Lampedusa descreve soluções fajutas para crises verdadeiras… — como nossa “crise” política é fajuta ela mesma, não foi necessário mudar nada para que tudo ficasse como vinha sendo, por mais que curtos-circuitos secundários tenham atingido a sociedade, que deles não fez caso porque não quer a trabalheira transformadora que imporia a si mesma se viesse a se fazer acordar com os choques. Por isso mesmo, e até porque está sempre pronta a se satisfazer com um arremedo de ordem que lhe garanta o fetiche do desfrute das miçangas tecnológicas que o mercado oferece, essa sociedade acomodada recebe as soldas com que o p-MDB remenda a velha placa política do seu domínio institucional como se a desordem saída dele se abatesse alhures, e não sobre ela mesma, na forma de corrupção, doença, sucateamento urbano, degradação ambiental, ignorância e violência (seja a violência “ordeira”, seja a “desordeira”, ambas fruto da desordem produzida pelo apego perverso a um tão velho quanto inviável ideal de ordem).
Tudo o que vimos chamando de “crise”, e que a mídia convencional alardeou como crise política, não foi senão o intenso e turbulento azáfama em que, concatenados por música (sem conspiração cabal), o sistema político profissional, a Corte máxima do judiciário (que lhe atende às prerrogativas) e o grande capital se empenharam, usando a crise econômica real como cortina de fumaça, para absorver, e vencer, a energia de mudança desencadeada por um pequeno mas vigoroso dínamo inesperadamente ligado ao circuito principal desde lá da primeira instância do Judiciário: a Lava Jato. Não nos enganemos, a Lava Jato foi, enfim, contida, e não irá até onde poderia ir, por mais positivos que tenham sido os resultados pontuais alcançados. O último malfeitor graúdo a ser ainda neutralizado haverá de ser Eduardo Cunha, não por acaso o fio desencapado que tentou fazer da queima de fusíveis uma oportunidade para ligações heterodoxas na velha placa do p-MDB, fabricada pelos militares em 1965 — os custos foram altos para o país, a “crise” foi muito além do que teria sido necessário para uma reacomodação da ordem do mando profissional em tempos de desmanche do pacto do Real, mas Temer e Renan acabaram conseguindo reconectar os cabos institucionais de um modo ainda mais favorável para si, se entendermos por favorável reunir poder para fazer o dinheiro que, na volta seguinte, gera o prazer que leva ao circuito infinito de mais poder para ainda mais dinheiro.
É dessa ordem atravessada pelo prazer gerado pelos imãs do poder e do dinheiro que os políticos profissionais retiram ânimo para, em meio à “crise” em que se exibem esfalfados, reinterpretar a Constituição ali onde ela coíbe o abuso do poder econômico na política: eles vão tornar barragem o que nela foi erigido como barreira, de modo a poder receber na boca da usina, e sem chave de contenção, a energia firme produzida pelos grandes interesses econômicos. Como já foi dito aqui, o sonho dos políticos profissionais é ganhar eleições sem precisarem pedir ao eleitor nem dinheiro, nem voto. Essa reforma eleitoral que fazem aprovar em meio à “crise” por eles mesmos fabricada os deixa mais próximos do paraíso: removerão a barreira ao dinheiro empresarial* e já reduziram o tempo de campanha, isto é, encurtaram o período em que deveriam se empenhar pela participação do eleitor; além disso, diminuíram o tempo de TV, isto é, como nada têm a propor, atendem aos interesses das emissoras e, ao mesmo tempo, retiram às minorias que tem algo a dizer o pouco tempo de que dispunham. No âmbito da inércia que a caracteriza, a sociedade premia com júbilo néscio esse cinismo dos profissionais da política, interpretando como um ganho o tempo em que não vai precisar ouvi-los nas ruas, no rádio e na TV, insciente de que ao aprovarem essas barbaridades eles estavam exatamente a contar com essa alienação dela, pois tudo o que almejam é conseguir mandar sem precisar prestar contas — passa-se na política o mesmo que acontece nas delegacias de polícia de todo o país: sem reputação a nutrir ou defender (cuidam apenas de não serem apanhados em malfeitos ou prevaricação), os agentes do poder incumbente (no caso, políticos e policiais) fazem questão de tratar mal ao contribuinte, a quem não escondem nem descaso, nem cinismo, de modo a diminuir a demanda, pois a inércia do status quo lhes é favorável e o salário sempre pinga no final do mês.
Embora muitos tenham previsto o apocalipse, a crise econômica não gerou colapso algum e, agora, resta conte-la num outro patamar de desigualdade (sempre ela), o que será feito pelo governo do p-MDB, com ou sem Dilma, embora o mais provável seja que ela fique, pois esse respeito acertado à Constituição é útil à farsa de que há, na ordem política profissional, algo de sólido para além dos interesses do poder e do dinheiro. A única vantagem de tirar Dilma seria avançar sobre os cargos que o PT ainda mantém no governo, mas ao preço de atiçar as incertezas da rua com o lulopetismo, gerando uma fissura no “bloco de poder” que não interessa ao braço econômico do establishment — afinal, que grande mudança adviria da troca do PT pelo PSDB como ator coadjuvante num governo do p-MDB se, ainda por cima, a troca daria ao p-emedebista Temer um poder de arbitragem que certamente geraria novos curtos-circuitos na placa-mãe de todos os vícios? Nem em pesadelos eu poderia imaginar cenário mais favorável, e terrível, para escancarar que PT e PSDB são a mesma coisa!
* – Sou favorável à participação das empresas no financiamento eleitoral, desde que exclusivo (para um só partido) e obedecendo a um teto nominal igual ao da contribuição individual, sem relação com o faturamento delas. Tudo ao contrário do que eles vêm tentando aprovar.
Fica o Registro:
– O silêncio de FHC diante da situação insustentável de Eduardo Cunha, depois de ter se mostrado tão loquaz quando o alvo foi Dilma, diz mais do que se ele tivesse aberto a boca.
– E ainda há quem insista em ver Dilma como a principal responsável pela “crise”…
– Mesmo o menos trouxa dos coxinhas que foram à ruas vai precisar de muito tempo para entender a embrulhada em que se deixou enredar. Talvez só depois do horror de descobrir que não existe, há mais de vinte anos, o PT “stalinista”, “comunista”, “socialista”, “pró-Cuba” que, inspirado no Jabor, ele supõe combater: desde o final dos anos 1980 poder e dinheiro deixaram de ser motores para uma causa, tendo se tornado a própria causa da burocracia oligarquizada do lulopetismo (coisa que o Hélio Bicudo acabou de descobrir e, então, se aliou aos tucanos!…). Como tem essa mesma causa, o PSDB vê no PT um rival, pois na burocracia estatal não há lugar para todo mundo; o que não deixa de ser um spotlight adicional a iluminar as contradições da nossa desigualdade: sem um modelo sustentável de desenvolvimento produtor de riqueza e renda partilháveis, o estado ficou pequeno para atender aos grupos que lograram se organizar justamente para fugir das agruras da desigualdade pendurando-se nele. Nossa chamada sociedade civil organizada é, na verdade, uma sociedade civil controlada, como se pode observar no fato de que os sindicatos e os chamados movimentos sociais, que mimetizam a estrutura da representação profissional, têm direções mais estáveis, poderosas e longevas do que as das próprias empresas — é desse conjunto que saiu a explosão de direitos sem deveres em que estamos metidos. Melhor parar por aqui, não sem dizer que ontem li uma faixa que proclamava: “envelhecer com dignidade é um direito!”