ONDE ESTAMOS?
Carlos Novaes, 07 de junho de 2016
Uma sociedade está em crise quando vive sua situação como intolerável e não encontra nas instituições disponíveis os meios de transpor de modo auspicioso o que lhe parece intolerável. Em uma sociedade em crise, a atividade política, seja ela profissional ou não, torna-se uma disputa pela narrativa da crise, e isso porque “definir” a crise já é uma maneira de principiar a escolher uma saída dela – sair de uma crise sempre exige arbitrar perdas, e ninguém quer perder. Por isso mesmo, ou seja, como desenhar a crise é uma disputa, nem sempre as sociedades alcançam os fundamentos da crise em que vivem e, então, os sofrimentos ganham intensidade e/ou se prolongam na medida em que aqueles que vinham tirando vantagem do arranjo que desembocou na crise conservam poder para defini-la e dar-lhe “solução”.
A sociedade brasileira está em crise porque a insistência em manter uma desigualdade tão extrema — que premia assim regiamente os brasileiros ricos, enquanto desfavorece os brasileiros remediados e pune os brasileiros pobres — engendrou uma situação social e uma ordem político-institucional que são vividas como intoleráveis pela maioria da população. A situação social é vivida como intolerável porque já ninguém escapa das consequências de suas flagrantes inutilidade, injustiça e desperdício. Ela é flagrantemente inútil porque a expansão da riqueza dos ricos em nada aproveita ao desenvolvimento do país; ela é flagrantemente injusta porque se dá numa escala na qual o que se contrapõe à reiterada miséria de muitos e à escalonada penúria de tantos é o luxo em expansão de muito poucos; e ela é um desperdício porque há um abismo não menos flagrante entre as potencialidades do país e de seu povo e as condições de vida a que o modelo vigente condena esse mesmo povo. A ordem político-institucional é, por sua vez, vivida como intolerável porque já somos maioria os que nos vemos maltratados pelo exercício faccioso dos poderes institucionais, marcados por violência, arbitrariedade e ineficácia. Ela é violenta na ação e inação seletivas de seus efetivos policiais; ela é arbitrária nas decisões assimétricas de suas burocracias interessadas; e ela é ineficaz também porque tem na corrupção um motivo de planejamento, empregando-a ainda para premiar adesões e obter obediência.
Conclusão 1: o custo Brasil é a desigualdade, não a legislação e os programas que, sem enfrenta-la, mitigam defeituosamente seus efeitos danosos sobre os mais pobres, como o SUS, o Minha Casa Minha Vida, a Escola Pública e Universal, o Bolsa Família e a Previdência Social. Instituições assim abrigam distorções precisamente porque vivemos sob um Estado de Direito Autoritário, que combina democracia eleitoral e exercício faccioso dos poderes institucionais: facções lutam pelo manejo (fechado) do orçamento e pela chancela eleitoral (aberta) dessas instituições, o que faz delas ambiente para a combinação de corrupção com encenação populista, o que só pode gerar ineficácia, que é a mãe do desperdício.
Não obstante, desde que a crise eclodiu, a minoria numerosa e poderosa que tem ganho com esse arranjo condenado, e controla instituições e meios de comunicação de prestígio, vem conseguindo tanger a opinião pública, fazendo-a acreditar nas três seguintes fantasias: primeiro, que há (ou havia) uma crise política entre Executivo e Legislativo; como se a crise de representação decorrente da autonomia que a desigualdade extrema proporcionou aos políticos profissionais não engolfasse todo o sistema político e pudesse ser resolvida com essa encenação que sazonalmente contrapõe o Congresso à presidência da República — resultado: as ruas se dividiram improdutivamente em torno do impeachment de Dilma, quando o problema é o sistema político enquanto tal.
Segundo, a fantasia de que vivemos uma crise econômica decorrente principalmente da má gestão da presidente afastada no curso da encenação anterior; como se o malabarismo necessário à manutenção da desigualdade extrema não nos condenasse a crises econômicas uma atrás da outra, mesmo que por vezes o malabarismo se mostre engenhoso, dê certo e adie problemas, como o foi no caso do Real ou, em grau menor, no caso das receitas do Lula contra a “marolinha” — resultado: as ruas se dividiram improdutivamente entre os defensores da via tucana e os defensores da via lulopetista, quando nenhuma dessas duas vias leva ao enfrentamento da desigualdade precisamente porque se deixaram fazer instrumento da sua conservação.
Terceiro, a fantasia de que vivemos uma crise moral; como se a corrupção generalizada fosse um mero desvio de conduta e não o próprio modo de operar de todo o sistema institucional voltado a manter a desigualdade extrema através do exercício faccioso dos poderes institucionais — resultado: as ruas se dividiram hipocrita e improdutivamente em grupos que se acusam uns aos outros de “desvio”, cada um fingindo não ver seus próprios corruptos e todos contribuindo para o disparate de que a corrupção generalizada no sistema político “representaria” uma suposta cultura brasileira de corrupção, como se a corrupção não fosse exatamente o dispositivo que, aliado à reeleição legislativa, permitiu que nossos “representantes” nos dessem as costas, ganhando a autonomia que lhes permite fazerem-se ferramentas de quem lhes paga para representarem interesses contrários aos nossos.
Conclusão 2: embora com dificuldades crescentes para legitimar o Estado de Direito Autoritário que os beneficia, os titulares do exercício faccioso dos poderes institucionais lograram, até aqui, esconder a extensão e a profundidade da crise, e a luta social mais estridente tornou-se uma caricatura das disputas entre eles: os grupos que vão à rua comportam-se como facções que anulam uma à outra e, assim, o ânimo democrático da sociedade não converge para um projeto de transformação e a energia social voltada à mudança é dissipada em hostilidades vis.