Carlos Novaes, 14 de dezembro de 2017
A luta de facções — em que se abismou o nosso Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação em razão do prolongado exercício faccioso dos poderes institucionais contra a maioria da sociedade — vai assumindo um jeitão de insânia. Do lado da sociedade, a insânia está em que não obstante tenha claro, viva na pele, a deterioração deste Estado ilegítimo, ela nada faz (isso quando não choraminga por uma solução via facção militar). Quanto ao Estado, ele tragou para si mesmo o exercício faccioso dos poderes institucionais e o fez ferramenta das disputas entre as mais altas autoridades da República que, diante da mencionada inércia da sociedade, estão insanamente a embriagar-se da própria autonomia, perdendo a noção de qualquer entrave à exibição de seu despreparo, avidez, cinismo e boçalidade. Tudo virou parte da paisagem, que não cessa de incorporar monstrengos, ao sabor do remanchar de interesses que vão da religião à mineração, numa marcha de feitiçaria e degradação.
Já explorei em vários textos deste blog o papel que PSDB e PT tiveram na construção dessa nossa derrota lenta (durou trinta anos), gradual (foi engolindo as forças “progressistas” uma de cada vez) e segura (assegurou a manutenção e, agora, o aprofundamento da desigualdade), uma derrota tão terrível que a maioria de nós se recusa a enxergar, preferindo refugiar-se no conforto recalcado da polarização fajuta que não cessa de provocar danos.
Pois bem, a Folha de S. Paulo publica hoje um artigo notável e aterrador. Notável pela lucidez e oportunidade, aterrador pela seriedade do que denuncia. Lúcido porque vai ao ponto, oportuno porque nos empurra a enxergar o que não queremos. Seus autores e subscritores são profissionais da saúde mental que prestaram serviços públicos relevantes em sua área de atuação em ao menos um dos governos saídos da conquista da eleição direta para presidente: de Collor a Dilma, passando por Itamar, FHC e Lula.
Depois de sumariarem a progressão do cuidado à saúde mental no curso dos diferentes governos de que participaram, os autores denunciam mais uma canetada facciosa do governo golpista destinada a remover conquista dos últimos trinta anos, desta vez para drenar recursos do SUS em favor das empresas privadas de saúde mental crente$ no confinamento, ferindo de morte a política de livrar o doente da internação via inserção social, elogiada em todo o mundo e estudada com interesse pelos países mais desenvolvidos.
A trajetória pelo serviço público dos médicos e da psicóloga que assinam o artigo nos oferece um fio condutor para identificarmos o que está no cerne da nossa recusa insana em reconhecer a derrota reapontada mais acima: eles fizeram parte da construção conflitada do pouco de bom que informou nossas ilusões acerca da construção de uma democracia e dão testemunho de quão frágil era o avanço que imaginávamos ter alcançado nessa matéria.
Em outras palavras, tenham eles pensado ou não nisso, seu artigo nos faz um alerta muito particular acerca do malogro da democracia que supúnhamos ter sido conquistada, pois os facciosos de plantão estão a desmontar até mesmo políticas cuja seriedade transpôs as polarizações fajutas dos últimos trinta anos – ou seja, a daninha marcha do desmonte chegou a um ponto em que já não precisa se alimentar das polarizações fajutas e pisoteia até mesmo as políticas de Estado fruto de entendimentos entre os que queriam, apesar de todas as desavenças entre os políticos profissionais, alguma mudança civilizatória.
É bem o caso de dizer, ou repetir, que devemos ter em mente que o grau de civilização de um país também se mede pela maneira como ele cuida dos seus doentes mentais – até porque, leitor, amanhã o louco pode ser você.
Só não compreendo como a polarização possa ser tão fajuta. Ao menos neste momento. Você acredita que a polarização não se desloque, enquanto tal, para dentro da arena facciosa? É que talvez seja uma ingenuidade da minha parte, mas, enxergo na polarização os contrários em relação a redução da desigualdade. Percebo nitidamente, tanto mais nítido conforme a situação política “avança em seu marasmo”, que há um polo de viés reacionário englobando as facções não interessadas na redução da desigualdade. Por outro lado, vejo um polo de viés progressista, detentor ainda de alguma crença na capacidade do Estado Nacional realizar as reparações fundamentais para erradicação da nefanda desigualdade brasileira.
Insisto, na sua avaliação, a polarização atual (rumo ao processo eleitoral), ainda que travestida de um “remake” PT x PSDB, ou, PT x Antipetismo, ou mesmo se quisermos pensar em uma versão “Populismo” x “Outsider” etc., permaneceria fajuta? O processo eleitoral (caso não haja maiores rupturas e considerado dentro de suas contradições institucionais) não torna a polarização mais autêntica? Ou uma polarização verdadeira estaria apontando seu norte para uma Assembleia Constituinte, como forma de superar nosso legado de Estado de Direito Autoritário?
Uma polarização PTXanti-PT seria o ápice da fajutice, afinal, não só o PT não significou nenhuma transformação no nosso padrão de desigualdade (ficaram no governo administrando a desigualdade e a neutralização do povo); como Lula tem feito questão de declarar que vai perdoar os golpistas, fazer as mesmas alianças e tudo o mais que foi, é e será o cerne da sua proposta política acomodatícia, voltada ao mero êxito eleitoral, que atende aos seus, mas que nos trouxe à situação atual, e só fará piorar se ele voltar. Sociedades por vezes se metem em becos quase sem saída, é o que, acho eu, está a se passar no Brasil — terá de haver muita imaginação política e não pouca disposição de luta para sairmos dessa sem uma prolongada regressão autoritária (pois regressão, com autoritarismo,sem dúvida, vai haver).
Qual a contribuição dada pelo Estado de direito autoritário para chegamos a esse estado das coisas em que antes os pobres não tinham o devido processo legal assegurado, hoje, por sua vez, são parcelas da burguesia que são alvo desse autoritarismo?.
Mesmo atropelando o devido processo legal a lava jato tem algo de bom?
Chico, já falei longa e detidamente sobre a conexão entre desigualdade, Estado de Direito Autoritário e a situação política atual. Faz tempo que falei sobre como a Lava Jato deixou de ser uma mera operação, a ser elogiada ou criticada, tendo se tornado um teatro de operações, no qual se dá uma luta de facções. As respostas às suas perguntas estão em posts que você pode conhecer seguindo os links que estão no próprio texto que você comentou.