Areia nos olhos do cidadão

Carlos Novaes, maio de 2011

A pilastra do chamado “financiamento público” é pura areia e surpreende que os bem intencionados ainda não se tenham dado conta: tudo se passa como se as campanhas eleitorais fossem caras, corruptas e desiguais porque o dinheiro legal que entra nelas é privado, não público. Ora, o problema não é o dinheiro legal, escriturado, contabilizado, doado por empresas e por cidadãos, mas sim o dinheiro ilegal, o do caixa dois. Logo, proibir a doação legal  de empresas e indivíduos, substituindo esse dinheiro pelo dinheiro do tesouro, dos nossos impostos, é uma troca que, em si mesma, nada altera da realidade imposta pelo caixa dois: campanhas caras, corruptas e desiguais. Ou seja, defender que o financiamento público acaba com o caixa dois e com os problemas derivados dele é o mesmo que dizer que os crimes de assassinato vão acabar se substituirmos a lei que proíbe o cidadão de matar por outra que diga que só o agente público em serviço pode matar.

A falácia é tão flagrante que até um político sério como Tarso Genro, ao defender o financiamento público se vê na obrigação de acrescentar “desde que com fiscalização e punição rigorosas dos infratores”. Ora, a legislação atual já determina essa “fiscalização e punição rigorosas” e, não obstante, o caixa dois impera. Por que deveríamos acreditar em “fiscalização e punição rigorosas dos infratores” no cenário do financiamento público? Em suma, o financiamento público troca a origem do dinheiro legal (de privado, para público), mas nada pode contra o dinheiro ilegal, do caixa dois. Acabar com o caixa dois não depende de mudança na legislação eleitoral, depende de fazer valer os mecanismos institucionais que já existem!

A pilastra do chamado “voto em lista fechada” é a reunião, sem cimento, de quatro areias: a grossa, a média, a fina e a extrafina: a besteira grossa é a idéia de que os partidos políticos brasileiros são fracos; a besteira média está em imaginar que as dificuldades de obter maioria para a governança resultam do mecanismo pelo qual o eleitor escolhe, não do comportamento dos políticos posteriormente à escolha ajuizada do eleitor; a besteira fina é supor que é mais fácil controlar e cobrar agrupamentos impessoais de políticos do que políticos individuais; a besteira extrafina é supor que lista fechada torna as coisas “mais programáticas”.

Ser forte significa poder fazer valer seus interesses, se fazer ouvir, ser levado em conta. Que dúvida pode haver de que os partidos políticos brasileiros têm sido fortes para conseguir quase tudo o que lhes interessa, sobretudo poder, dinheiro e imunidade? Nas instituições em que se fazem representar, distribuem livremente os cargos de provimento disponíveis; quando algum dos seus é apanhado em maus feitos com dinheiro e benesses indevidas, fecham-se em torno deles numa defesa de matilha treinada, freqüentemente eficaz; a legislação lhes confere total autonomia nas lides internas – enfim, que a luz da razão nos proteja de dar ainda mais poder a eles!

As dificuldades de obter maioria para a governança decorrem do fato de que, sendo fortes, os partidos impõem seu preço para dar apoio aos governantes. Essa realidade nada deve ao fato de o eleitor votar em indivíduos, precisamente porque esses indivíduos estão submetidos à dinâmica dirigente dos partidos fortes antes descrita (eles são fortes precisamente porque podem submeter, premiar e proteger os seus indivíduos). O voto em lista fechada tira poder do eleitor e dá mais poder aos dirigentes dos partidos, sem tornar mais fácil a vida dos governantes que querem obter maiorias – quem ganha com a lista fechada é quem já manda no sistema político partidário, pois fica ainda mais forte para evitar mudanças que ameacem esse seu domínio (com a tal lista o eleitor perde o poder de interferir na composição individual do feixe de forças que constituí a representação política).

A que servem, então, o financiamento público e o voto em lista?

Há séculos os políticos se empenham numa tarefa animal: construírem para si mesmos o meio ambiente mais confortável possível. O diabo é que há um elemento hostil: tu, eleitor, a necessidade de obter o teu apoio e o teu voto, que são individuais. O pesadelo de todo político é o período eleitoral – depois disso, se eleito, ele pode ir em busca do céu na terra: se livrar da fonte de dissabores que, para ele, o eleitor representa. É do que eles estão tratando agora, antes de 2014, quando terão de fazer nova campanha para o Congresso… O financiamento público é mais uma medida para facilitar a vida dos políticos em seu almejado micro-clima, longe de nós, indivíduos cidadãos. No devaneio musical sob o tilintar das moedas em que dança o político profissional, esse “financiamento público” é como uma daquelas antigas e plácidas reservas aristocráticas de caça: torna coisa certa, favas contadas, o dinheiro para as despesas básicas da campanha eleitoral e, melhor, sem impedir a obtenção de recursos extras por baixo do pano. É quase o céu!

O que falta para alcançar definitivamente o sonhado mundinho à parte? Ah, depois de se livrar de ter de pedir a ti dinheiro legal para a campanha dele (vai arranca-lo através de um, digamos, imposto para campanhas políticas), só falta ao político escapar dos compromissos que advém de ter de pedir para si mesmo o teu voto. Para isso surgiu a idéia do “voto em lista fechada”. Como essa solução terminal encontrou resistência relevante na opinião pública, apareceu, claro, a mágica: o “voto misto”, com base no ardil de que, por definição, toda mistura resulta em coisa boa (“um pouco de bom de uma coisa e da outra, manja?”).

Essa é a origem da proposta de dois votos ao eleitor para a escolha deputados e vereadores: um na lista, um em indivíduos. Tirar do eleitor o direito de eleger indivíduos para a metade das vagas de representação significa amputar pela metade seu já diminuto poder de provocar alguma mudança.

Que mudanças seriam oportunas?

No financiamento das campanhas eleitorais, o caminho a ser seguido é o inverso do proposto: obrigar os políticos a buscarem apoio nos cidadãos, estabelecendo um teto para a contribuição individual/empresarial legal de, digamos, 100 mil reais. Se houver contra o caixa dois a fiscalização e a punição rigorosas que todos declaram defender, essa medida baratearia as campanhas de pronto, obrigando os políticos a um verdadeiro esforço de persuasão junto aos eleitores (aí, sim, com algum ganho “programático” para todo aquele que tem essa exigência). Ou seja: apoio individual para indivíduos candidatos, com os vínculos claros decorrentes, permitindo responsabilização posterior.

No sistema eleitoral, o ideal seria a adoção de três votos para deputados e vereadores, mas os três votos seriam dados em indivíduos, em listas abertas, como é hoje. Os vencedores sairiam da soma simples dos votos recebidos, não havendo hierarquia entre as três opções, que o eleitor deveria efetivar sempre em candidatos de mesmo partido. Em outro texto explico melhor essa ideia, acho.

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