Carlos Novaes, 23 de agosto de 2021
Com acréscimos na seção Fica o Registro, em 25/08, às 13:05h
Recupere na memória, leitor, toda a trajetória das iniciativas de força de Bolsonaro desde que ele planejou instalar bombas quando era tenente, passando pelo “acabou, porra!” de 2020, até o “sem voto impresso não vai ter eleição”, e me diga: em qual dessas situações Bolsonaro se aproximou do seu objetivo? De qual dessas tentativas de autoafirmação ele saiu mais forte do que entrou? Pois é, de n e n h u m a! A história desse voluntarioso é uma trajetória de fracassos com o enriquecimento que premia os espertos – é também por isso que ele reúne em apoio a si esse vasto contingente de recalcados, mesmo quando endinheirados. O fato de ele ter vencido a eleição presidencial é prova da desorientação brasileira diante de seus desafios, não de supostas qualidades deste imbecil.
Ao se deixar arrastar para mobilização decisiva (mais uma…) da sua minoria , Bolsonaro é o gato que colocou o guizo no próprio pescoço e, de antemão, deu forma de blefe a mais essa tentativa de golpe. Veja bem, leitor: por mais arruaças que venham a fazer no dia 7, o dia seguinte será o do prosseguimento da vida como tem sido. Bolsonaro não reúne nenhuma condição para dar um golpe e derrubar o Estado de Direito Autoritário:
– seria um golpe a favor de quem já ocupa o poder com perda crescente de apoio por sua desastrosa (des)governança. Testado e reprovado, Bolsonaro já nada pode prometer. Quer dizer: está evidente que um Bolsonaro sem encantos quer poderes ilimitados para provocar ainda mais danos;
– seria um golpe contra a preferência da maioria da sociedade brasileira pela democracia;
– seria um golpe contra os interesses das facções que, de costas para a maioria da sociedade, ocupam e atuam com desenvoltura no Estado de Direito Autoritário;
– seria um golpe condenado ao isolamento internacional;
– seria um golpe que atrapalharia a fruição do que as forças de estado armadas já desfrutam. No caso das FFAA, há rotinas e privilégios aos quais um golpe por Bolsonaro não beneficiaria; no caso das PMs, além das rotinas e privilégios de que desfrutam os oficiais (especialmente quando dão baixa…), há a crescente expansão para atividades administrativas (por exemplo: seus soldados são, hoje, os atendentes de telefonia com o treinamento e os custos salariais mais caros do mundo! – obra do Estado de Direito Autoritário que Bolsonaro quer derrubar com um golpe);
Todo o frenesi da movimentação política convencional se orienta não pelo dia 7 de setembro de 2021, mas pelo dia 02 de outubro de 2022. O calendário eleitoral é o horizonte de qualquer político profissional com um entendimento mínimo do que se passa:
– Foi um presente para Dória que um comandante regional da PM de SP tenha feito a tolice de convocar adesão à manifestação de Bolsonaro, pois isso permitiu ao bolsonarista arrependido, que deve sua vitória em 2018 a Bolsonaro, posar de democrata decidido em cima dessa minoria obtusa que não consegue medir o quanto é fraca (o cagaço real em que muitos governadores vivem vem da precariedade que sentem existir em sua própria condição de mando, afinal, eles estão a ocupar um Estado em crise de legitimação);
– Quando Flávio Dino aproveita o isolamento de Bolsonaro para elogiar Mourão, além de exibir cegueira político-ideológica, faz aceno aos milicos e ainda atua de forma oportunista para ajudar Lula a se reaproximar deles e de pelo menos parte do eleitorado afeiçoado a eles;
– Quando diz que o ato do dia 7 será “fogo-de-palha”, Mourão não fala sozinho, e está a investir no isolamento e na desmoralização de Bolsonaro (já há dissonâncias até na facção militar palaciana);
– Quando os governadores pedem reunião de paz com Bolsonaro, estão a jogar o jogo das facções para fazer do isolamento e do inevitável malogro de Bolsoanro uma via de restauração do Estado de Direito Autoritário, cuja crise de legitimação não entendem, mas dela sentem efeitos nos humores da população. Como Bolsonaro é a resultante final da crise de legitimação, eles precisam dele como besta expiatória [nunca é demais explicar: não há conspiração; deveria ser evidente meu entendimento de que os governadores agem assim como digo, mas não pensam assim – o que os conduz é a meta de manter o velho normal em funcionamento, pois foi nesse ambiente que eles construíram suas vidas políticas, com ilusões, espertezas e boas intenções… e é contra essa arrumação que a besta golpista arremete; nem passa pela cabeça desses governadores estarem a se empenhar pela manutenção de um Estado de Direito Autoritário, até porque, assim como muitos, eles estão convencidos de que vivem num Estado democrático de direito];
Enfim, o país está nessa balbúrdia ansiosa porque a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário vive precipitação permanente, na qual tudo que parecia sólido se desmancha no ar: o espectro do golpe não interrompe a sua ronda porque o sistema político profissional não tem condições de oferecer uma alternativa real ao país, tendo por real uma alternativa que faça do combate à desigualdade o eixo articulador do objetivo de alcançar um Estado de Direito Democrático para o Brasil.
Embora Bolsonaro não tenha a mínima chance de se tornar um ditador, as fantasias dele permitem toda sorte de mistificação democrática — mas quando vier o pós-Bolsonaro é que teremos toda a extensão da tragédia, seja pelo legado macabro do besta, seja pela intensificação da guerra das facções na disputa pelo comando — e quando falo em intensificação, tenho em mente a rotina de ilegalidades facciosas a que o país tem sido submetido nessa luta contra a besta, pois uma das evidências de que não vivemos sob um Estado de Direito Democrático é o fato de que nós não poderíamos derrotar Bolsonaro seguindo a letra pétrea da lei (daí que tenhamos de, contraditoriamente, apoiar ações facciosas de um Moraes, de um Gilmar, de um Renan ou de um Alcolumbre quando eles atuam contra a besta — para, mais adiante, recebermos de volta todos os danos desses apoios…). A vida é dura, como há tempos tentei explicar aqui.
Fica o Registro:
25/08 — Hoje mais cedo, presente na solenidade do dia do soldado, Bolsonaro não fez uso da palavra. Como não ver nesse silêncio um recuo típico de quando o besta entra na fase do rabo entre as pernas, depois da fanfarronice da vez? Ele já está a esfriar os ânimos para o 7 de setembro — o silêncio de Bolsonaro num evento que serviria na medida para que ele insuflasse a sua minoria explicita na prática o que foi dito acima analiticamente: a tentativa de golpe tomou a forma de blefe por antecipação!
Ah! o aspirante a ditador também desistiu de pedir o impeachment de Barroso. Precisa analisar?
Professor,
Estamos o tempo todo sendo desmoralizados. Quebrar essa cegueira cognitiva em torno do Estado de Direito Autoritário é um dos pontos cruciais para a lutar contra todo esse sistema, todavia, me parece impossível à médio prazo. Num horizonte de décadas, imaginas uma guerra civil? e será que caminhamos para sermos uma Grécia?