NENHUMA ESPERANÇA

Carlos Novaes, 4 de outubro de 2014

 

Chegamos ao fim do primeiro turno sem que nenhum candidato nos tenha oferecido uma perspectiva de transformação, embora o esgotamento do modelo atual esteja claro e reclame um caminho novo. O impasse é nítido, especialmente se levarmos em conta que a situação econômica internacional não voltará tão cedo a nos franquear as vias de fluxo favorável que a crise interrompeu, e que foram aproveitadas pelos governos para dobrar a aposta no arranjo incrementalista conservador: oportunidades sem óbice ao enriquecimento dos de cima, estímulo ao consumo sem lastro das camadas médias, com diminuição da pobreza dos que continuam muito lá embaixo, equação que não permite enfrentar nem a desigualdade, nem suas consequências, pois para isso seria necessário se contrapor aos interesses dos muito ricos que nada produzem.

Quando falo de desigualdade tenho em mente a disparidade de renda que premia com o supérfluo do supérfluo uma minoria e condena metade da população à pobreza; quando falo em suas consequências penso sobretudo naqueles que não sendo pobres nem ricos, se vêem condenados a pagar os custos da permanência da desigualdade na forma de uma vida urbana infeliz, que é vivida desorientadoramente como se fosse um caos, quando é o resultado mais do que inteligível e quantificável de uma conta que não pode fechar: sem uma ordem econômica que impeça o luxo e o desperdício dos de cima e libere energia para o resto da pirâmide, não há como diminuir a desigualdade, ali onde ela é adversa aos pobres, sem ao mesmo tempo sonegar recursos para enfrentar as dificuldades vividas pelas camadas médias ali onde essas dificuldades são tarefas propriamente públicas e refletem outra face da mesma desigualdade: transporte humano, saneamento, infra-estrutura logística, etc. Por isso mesmo, a desigualdade não cai e, ainda por cima, a diminuição da pobreza é encarada por boa parte das camadas médias urbanas como algo que se faz às suas custas, no que não deixam de ter razão, embora o reproche deva ser remetido na direção oposta àquela para onde elas alienadamente orientam a sua raiva (contra os pobres).

O modelo em que estamos é tão atrasado que ao invés de enfrentar o “caos” urbano através de políticas públicas, os governos que o implementam largaram o espaço público como terra de ninguém e meteram-se na vida privada das camadas médias, estimulando-as a comprar automóveis e bens de consumo onerosos, conduzindo-as a um endividamento tolo, contraproducente e socialmente ruinoso; tolo porque, através de uma ideologia decadente, mimetiza o consumo ostentatório dos muito ricos, que lhes servem de espelho circense na outra ponta do espectro malsão; contraproducente porque esse endividamento precoce compromete o progresso dessas mesmas famílias; e socialmente ruinoso porque não convida essas camadas menos imersas na ignorância a enfrentarem junto com o poder público os graves entraves propriamente públicos à melhoria da sua qualidade de vida, sofrimento que carro novo nenhum vai permitir deixar para trás — aliás, muito pelo contrário, como os engarrafamentos deixam claro.

De um lado, as pesquisas que acabam de ser publicadas refletem a preferência do eleitor nessas horas finais que o separam da urna; de outro, o último debate entre os candidatos à presidência da República refletiu os candidatos ao final da trajetória que percorreram. Não por acaso, há grande correspondência entre as imagens, pois o desempenho dos candidatos provocou no eleitorado uma reação que corresponde ao impasse descrito mais acima e que, do ponto de vista propriamente eleitoral, pode ser resumido segundo duas limitações: primeiro, o eleitor vem há muito prisioneiro de um realismo rebaixado, onde a palavra de ordem é tolerar o sofrimento para conservar o pouco que foi obtido na batidinha mixa de um incrementalismo que não desafia a ordem estabelecida; segundo, nenhuma das candidaturas ofereceu uma alternativa a essa situação, seja porque postulam tão somente a condição de protagonistas desse pacto conservador, como é o caso de Dilma, Aécio e Marina, seja porque não foram capazes de dialogar com a insegurança do eleitor ao mesmo tempo em que propunham a mudança, como é o caso de Luciana Genro e Eduardo Jorge, cada um a seu modo, como veremos a seguir.

Dilma, 40%, 40%, 44% – a candidata aparece solidamente instalada num patamar que parece ser o seu máximo, o que corresponde inteiramente ao seu desempenho no debate: aparou com destreza amestrada os golpes sofridos precisamente porque eles não passaram disso, golpes, troca de chumbo. Nenhum de seus adversários a confrontou com o óbvio: as perdas e os riscos da absoluta ausência de imaginação dessa sua insistência em conservar um modelo cujas evidências de fadiga não podem ser escondidas. Mas como seus principais dois adversários querem apenas lhe tirar o lugar, estão impedidos de mostrar que não há lugar a ocupar, o desafio é convidar a sociedade para um outro lugar. Foi precisamente a condição de alvo que deu a Dilma a oportunidade de plantar-se e rebater com o binômio do fiz e vou fazer mais. A condição de alvo foi conveniente porque Dilma não fez um governo aquém dos de Lula por ser menos capaz do que ele, mas porque o modelo conservador, que vem de muito antes, já não pode conviver com as contradições que se acumulam, seja na esfera dos assuntos e equipamentos públicos, seja na vida privada, especialmente quando os astros internacionais já não se alinham de um modo favorável. Mas para ir além de Dilma, deixando o alvo para trás, seria necessário criticar o modelo e atacar sua fragilidade central: a intocabilidade dos interesses dos muito ricos improdutivos. Ninguém se habilitou e, então, ela chega ao segundo turno para, com novas imagens, repetir tudo de novo e tentar convencer mais alguns de que o mais seguro é não trocar a gerente e continuar marchando no pátio.

Aécio, 19%, 21%, 26% – Determinado a recuperar para os tucanos o posto de protagonista do modelo que viu escapar para as mãos do lulopetismo, Aécio fez na campanha e no último debate o que seus antecessores deixaram de fazer: disputou um legado que também é seu, ainda que sem explorar seu veio mais fecundo, isto é, a dimensão propriamente política do Real, que mais do que somente um plano de estabilização da moeda, foi, e é, um método conservador de pactuação política negociada, através do qual se debelou a inflação, matriz de grande sofrimento para os setores populares, ao mesmo tempo em que se deu estabilidade a um arranjo de partição da riqueza que não alterou o fluxo dela para cima. Cegos para as possibilidades de encenação que esse modelo ofereceu para dar verossimilhança ilusória a um, digamos assim, Real da saúde, um Real da educação, etc, os tucanos desperdiçaram potência combatendo defeitos supostamente socialistas que os governos petistas jamais tiveram, continuidade que são dos próprios governos tucanos anteriores. A recuperação de Aécio nas pesquisas, contra-face da queda final de Marina, mostra que na ausência de uma proposta transformadora a disputa foi gradualmente voltando ao trilho inicial, movimento que restaura a disjuntiva improdutiva e fajuta, que opõe PT e PSDB como se eles não fossem manifestações políticas de um mesmo projeto de manutenção da ordem. Se Aécio for mesmo ao segundo turno, suas chances não serão pequenas, pois como vimos no seu desempenho no último debate, ele está a altura de canalizar em favor da sua postulação de ser o próximo gerente as insatisfações com o modelo, que a ignorância de muitos dos eleitores aporrinhados debita indevidamente na conta da governança da gerente de plantão, alvo que convenientemente escamoteia desordem mais profunda.

Marina, 30%, 27%, 24% – O desempenho de Marina no debate foi a tradução da desorientação que marcou a sua campanha: em marcante contraste com Aécio, as câmeras a captaram atrapalhada, imprecisa, sem rumo. Não poderia ser diferente para quem se deixou arrastar para uma condição de postulação em que só poderia figurar como neófita: a gerência retrógrada de um projeto conservador que, até onde se soubesse, nunca fora seu. Ficou nítido que brigavam dentro dela duas forças: a da floresta, que chamava aos compromissos originais; e a da conversão recente, que impõe os constrangimentos do que há de imexível (esse é o termo) em nossa ordem conservadora. No confronto com Luciana Genro, foi triste ver Marina rogando por uma semelhança programática que quem leu os dois programas não seria capaz de encontrar; na esgrima com Dilma e Aécio, foi frustrante vê-la ora se limitar a um toma-lá-dá-cá atrapalhado de mensalões ou subalternos corruptos (e, como em 2010, sem dar resposta à altura); ora deixar de descortinar uma orientação nova para o enfrentamento da desigualdade ou para projetos como o pré-sal ou fontes de energia renovável. Marina gastou o seu tempo repetindo-se, refugiando-se em atender exata e literalmente às perguntas que lhe foram feitas, não aproveitando, nem criando, nenhum gancho para, afinal, dizer a que veio. Se não for ao segundo turno, como é o mais provável, Marina estará colhendo o resultado tóxico das sementes daninhas que plantou com financiamento e adubo dos reacionários; se lá chegar, irá enfrentar Dilma em condição ainda pior do que a de Aécio, pois enquanto ele reivindica retomar a condução de um projeto de pactuação conservadora que também é seu, Marina se apresenta como um retrocesso, de que dão exemplo propostas como a que neutraliza o que ainda inibe a avidez dos de cima (independência legal do Banco Central), ou a que aumenta a desenvoltura danosa do sistema político (mandatos de cinco anos, com unificação do calendário eleitoral).

Luciana Genro – 1% – O desempenho de Luciana no último debate foi o melhor que ela poderia fazer no âmbito daquelas limitações que ela escolheu por si mesma, e daquelas que lhe impõe o próprio projeto: de um lado, encarou como tarefa enfrentar aos adversários, não aquilo que eles representam, desperdiçando parte da potência de sua valentia lúcida; de outro, refugiou-se em temas de direitos humanos, uma vez que, assim como o enfrentamento da espinhosa questão da desigualdade exige um projeto para combatê-la, também a nossa crise de representação requer mais do que uma alteração no modo de apresentar candidatos ou apelos vagos a uma participação cidadã, cujo anseio está longe de ter sido demonstrado, equívoco que ela partilha com Marina. As cordas de um projeto revolucionário inatual já não estão propriamente a amarrar Luciana, mas elas retém nossa guerreira num emaranhado do qual ela ainda não logrou livrar-se, estando, assim, liberta, mas impedida de ganhar o mar alto que uma proposta transformadora requer. O principal limitador ao êxito eleitoral de Luciana (êxito, não vitória, o que já seria pedir demais) está na visão geral traduzida em seu programa de governo: não se faz ali distinções de grau entre os adversários responsáveis pela ordem reinante, o que permitiria pensar em alianças contra esse ou aquele setor. Luciana, embora sem arrastar a mesma cadeia conceitual, atravessou a eleição olhando o cenário do mesmo ponto de vista que Zé Maria e Rui Pimenta partilham: o combate não é ao incrementalismo conservador, mas à própria ordem do capital. Não sabem a diferença entre sofrimento intolerável e sofrimento insuportável.

Eduardo Jorge, 1% – O último debate nos trouxe mais uma vez a atitude boa-praça e o espírito aberto de Eduardo Jorge, características simpáticas que são também o calcanhar de Aquiles do nosso sereno combatente, afinal, para a imensa maioria de nós, o exercício do poder requer algum ímpeto de enfrentamento, pois, em política, mesmo o chamado consenso é algo que se constrói contra alguém. Embora, assim como Luciana, tenha tratado de temas da maior importância, Eduardo sempre o fez da perspectiva de quem está pregando, não daquela de quem está se propondo a partir para a ação. Provavelmente em razão de uma impertinente certeza íntima de que não passaria ao segundo turno, o candidato jamais deixou de transmitir um certo alheamento, impressão reforçada por muitos dos seus programas eleitorais, em que aparecia num arremedo de repórter de causas nobres, mas periféricas. A relação entre sua visão de mundo sofisticada e o exercício da presidência da República jamais se desenhou. A modéstia de Eduardo, aliada ao seu detalhismo, o impediu de enxergar e, sobretudo, de sentir, que a seriedade e a atualidade das questões para as quais ele procurou chamar a atenção do eleitor são tão estruturais na busca de uma saída para a encrenca em que estamos metidos, que não havia motivo algum para ele afastar por completo a possibilidade de ir adiante na disputa – se tempo de TV fosse determinante, Marina não teria ido até lá de onde acabou por ter de voltar.

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Com este post completo 49 dias e 23 textos acompanhando a disputa. Busquei tratar com justiça aos candidatos, partidos e forças políticas de que me ocupei, progredindo como o viajante noturno que abre caminho imerso na escuridão, ciente dos perigos impostos pelos limites estreitos em que se move, ladeado que vai das exigências da objetividade e das armadilhas de suas próprias preferências. Gosto de supor que ao avançar tive sucesso tanto em evitar a prédica, sempre indesejável, sem afetar neutralidade que não almejo; quanto em refrear toda indignação bem antes de vê-la revestir-se do sempre detestável moralismo. Jogo jogado, e amanhã teremos luz plena sobre o resultado do primeiro trecho vencido. Declaro todo o meu reconhecimento àqueles que, em conversas pessoais, ou por telefone, e-mail, e no próprio Blog, me honraram com suas observações sobre aquilo que fui propondo à discussão.

6 pensou em “NENHUMA ESPERANÇA

  1. Alexandre

    Prezado Sr. Carlos Novaes,

    Em primeiro lugar grato por suas análises e reflexões sobre este processo eleitoral, importantíssimas no esclarecimento sobre os conservadorismos e anacronismos que insistem em permear o conjunto do debate.

    Gostaria se possível que quando o sr. julgar oportuno abordasse um pouco mais sobre o tema da “diferença entre sofrimento intolerável e sofrimento insuportável.” fiquei ‘ensimesmado’ com a expressão.

    Atenciosamente,
    Alexandre

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  2. Paulo Luna

    Carlos Novaes,
    Bom dia,
    Brilhante seu comentário, compartilho com seu pensamento sempre falo que os candidatos sempre falam em desenvolvimento para ganhar as eleições e nunca falam realmente de problemas que realmente afeta a humanidade, pois não sei o motivo ou a limitação do eleitorado os leva a isto ou o motivo ou a limitação dos políticos alinhado a um sistema ultrapassado capitalista e que também não vê saída no socialismo de Luciana Genro. Marina em 2010 encampou o que Eduardo Jorge faz hoje, mas de maneira mais eficaz. Mas hoje quando se viu na possibilidade de ganhar as eleições preferiu se alinhar com forças políticas tradicionais o que a impediu de chegar próxima ao povo e desprezou seu capital político conseguido em 2010. Considero que esta será a última tentativa de Marina e arrisco dizer que talvez também a última de Dilma.

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  3. Flávio Pezzi

    O que faltou para que a legítima indgnação das jornadas de junho de 2013 se viabilizasse como força política nessas eleições?
    A principio pensei que o PSOL pudesse avançar e ter uma votação bem mais expressiva do que se verifica ou mesmo a Marina, pela sua história.
    O PSOL talvez tenha errado no discurso muito honesto, mais que criado no seculo XIX adentra o século XX e não convense muito no século XXI referências da época do “manifesto comunista”.
    E a marina tinha tudo para ser e não foi, desconstruida por sí mesma não chega ao segundo turno.
    E as manifestações de junho? Como ficam?

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  4. Rodrigo

    No segundo turno, a disputa entre Dilma x Aécio, se confirmada amanhã, me levará a anular o voto pela primeira vez. De Dilma não se espera nada, quanto a Aécio, já li que ele amordaçou a imprensa mineira. De moderno não tem nada.

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  5. Rodrigo

    Encontrei neste blog uma análise do processo eleitoral que guarda distância tanto do triunfalismo petista quanto da direita boçal que cresce nas redes sociais. Mas fica a pergunta: Marina seria ouvida, ou melhor, ela ganharia a eleição se rejeitasse a manutenção da ordem? Nenhuma esperança, portanto?

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  6. eder

    Sou do estado do lulecio, da dilmasia, da aliança pimentel e aecio em torno de lacerda em bh.Numa cidade perto daqui,congonhas, o ex prefeito petista, hoje candidato a deputado estadual, Anderson Cabido, apoiou um tucano para sua sucessao na prefeitura, quanta diferença, nao?
    A diferença entre pt e psdb e na dosagem de anestesia social aplicada nas dores historicas e nas novas dores do povo. No proprio receituario neoliberal ja se previa bolsas familias. O papa da igreja mercado, Friedman, admitia.O que o pt fez foi aumentar a dose de anestesia, o que nao e ruim para quem recebeu chicotadas a vida inteira.

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