Carlos Novaes, 06 maio de 2017
Chegamos a um estado de coisas quase inimaginável: a sociedade brasileira assiste, inerte, ao desmanche do pouco de civilização que conquistou no curso da sua história, marcada pelo autoritarismo e fundada na desigualdade. Só lutam aqueles que estão no âmbito do Estado, do qual fazem teatro de uma luta aberta entre facções, desordem de que já não fazem segredo nem os juízes do Supremo, cujos conflitos escancaram também no STF o jogo faccioso de maiorias e minorias de ocasião, de que já tratei aqui em mais de um artigo.
No episódio mais recente, Lewandowski, o lulista, e Gilmar, o anti-Lula, somaram forças com Tofolli, o antigo assessor direto de José Dirceu, e fizeram maioria na Segunda Turma do STF pela soltura do ex-ministro da Casa Civil de Lula, contra os votos de Fachin e Celso de Melo. O que explica essa maioria, senão a ocasião? E a ocasião é a seguinte: no teatro de operações da Lava Jato, como a facção paranaense, em aliança com a PGR, não dá mostras de que vá parar a sangria, é urgente refrear as delações negociadas, providência que interessa aos petistas, aos não-petistas e aos anti-petistas, ou seja, a todo o sistema político profissional (quem diria, de parâmetro para contraste ideológico na grande política, o PT se fez o espantalho em torno do qual se monta a farsa das polarizações do jogo político profissional). Deixo a você, leitor, escolher lado no debate soltaXnão-solta Dirceu, o relevante é entender que o ex-ministro foi feito pivô de uma guerra no âmbito das instituições do nosso Estado de Direito Autoritário.
Tirar Dirceu da cadeia é mais um lance no lento processo em que as forças do status quo tentam, no âmbito da Lava Jato, minimizar danos ao seu domínio . Percebendo a coesão da facção majoritária da Segunda Turma, o ministro Fachin indeferiu o pedido de habeas corpus para Palocci e, num lance não menos faccioso do que o dos seus adversários no momento, remeteu ao plenário o juízo final da questão. Foi uma manobra esperta, combinada com a presidente do STF, Carmen Lúcia, pois num só lance se oferece ocasião para resolver dois problemas: primeiro, o caso de Palocci em si; segundo, e muito mais importante, conhecer o lado para o qual, neste momento, pende a balança sustentada pelo braço federal da Lava Jato.
Ao preferir assistir, esperando por um desfecho milagrosamente favorável da situação e , por isso mesmo, em se deixando “representar” pelos contendores dessa polarização fajuta entre petistas e anti-petistas, a maioria de nós se recusa a entender que o inimigo avança, pois eles estão vendo na crise não apenas dificuldades, mas, e sobretudo, oportunidades. Os corruptos podem vencer.
A nossa inércia permite que o governo Temer tire forças da própria ilegitimidade — e, por isso mesmo, mantenha um ministério anti-povo, lastreado numa maioria congressual não menos anti-povo, precisamente porque essa maioria é contemplada com políticas anti-povo — não se fazendo de rogado em servir aos inimigos da civilização brasileira (sim, leitor, é a nossa civilização que está em jogo): no interesse dos rentistas, segue dogmas econômicos e promove um “ajuste” unilateral que só faz aumentar a desigualdade; no interesse do agronegócio, liberou o uso de agrotóxico cancerígeno proibido em todo o mundo civilizado; no interesse dos grandes empregadores de mão-de-obra, promove reformas trabalhistas “impopulares” que irão afetar para pior a vida dos mais fracos e mais pobres; sem enfrentar os privilégios previdenciários dos que trabalham ao abrigo do Estado, realiza uma reforma previdenciária terrível contra os pobres, sem nenhuma ação que obrigue os mais ricos a pagarem parte do custo do ajuste; na questão indígena, indo além do abandono por omissão, que marcou os governos anteriores, o governo do vice de Dilma passou a marchar ao lado dos grandes proprietários de terra e dos esbulhadores dos direitos fundiários dos índios (negar terra aos índios para favorecer o agronegócio e as mineradoras vai tornar o Brasil mais pobre, não mais rico).
Enquanto isso, os políticos profissionais seguem em busca de um novo patamar seguro para encenar suas “polarizações”, teatro no qual voltam a falar em entendimentos entre Lula e FHC (sobre isso, tratei detidamente aqui, numa análise que entendo pertinente, mesmo com a mudança do cenário). Não é de surpreender que desse caldo venha saindo a polarização eleitoreira Lula-Bolsonaro, desde logo infecunda para uma transformação, mas que será o esterco ideal para que se viabilize a saída de sempre: um nome novo dentre os muitos que se oferecem como mudança para que tudo fique como está. Gramsci disse que, quando o velho não morre e o novo não tem forças para nascer, tendem a surgir situações monstruosas — o Brasil vem sendo a prova de que o monstruoso pode se fazer permanente.
Fica o Registro:
– Novidade boa: gostei muito deste programa do Duvivier na HBO. O ponto alto é a didática explicação sobre a iniciativa privada como pilar da corrupção. Ainda que Duvivier insista no equívoco de que a motivação da corrupção seria obter dinheiro para campanhas caras, ele vai ao ponto quando mostra o entendimento de que a corrupção não é vivida como um peso pelas empresas, antes pelo contrário, é uma forma de multiplicar lucros. REPITO: As campanhas são pretexto, o caixa2 é, por incrível que pareça, um álibi, para esconder a distribuição dos dinheiros que enriqueceram, e enriquecem, os participantes do esquema. Não é que campanhas cada vez mais caras deram causa a uma corrupção cada vez maior; pelo contrário, as campanhas foram encarecendo porque havia cada vez mais dinheiro disponível vindo da corrupção. Só enaltece a iniciativa privada quem não conhece a corrupção das empresas entre si, não apenas com o Estado ou com as estatais — assunto para outra hora.
Com relação ao depoimento do Lula com o Moro, vc acredita nas respostas do Lula?
Novaes, para mim ainda não está claro qual sua posição sobre o braço paranaense da Lava Jato.
Gosto muito das suas análises.
Novaes, você pode comentar sobre o significado das duas possíveis decisões do STF sobre o Palocci?