Carlos Novaes, 06 de setembro de 2018
[com acréscimo às 17:55h, em Fica o Registro]
Geraldo Alckmin é o mais consistente dos candidatos, e o mais daninho, quando se tem em mente o combate à desigualdade na perspectiva de alcançarmos um Estado de Direito Democrático no Brasil.
Desses últimos trinta anos em que a forma política paisana que nos foi legada pela ditadura promoveu essa longa jornada da democracia para dentro da noite, Alckmin emerge como o candidato mais consistente porque concatena os elementos conservadores da cena política num projeto de governo antidemocrático que, sem precisar recorrer aos disparates e vulgaridades eleitoreiras de um Bolsonaro, dá sobrevida ao Estado de Direito Autoritário — fiz aqui a conexão entre o perigo de Alckmin assumir a presidência da República (gestão) e a perniciosa reeleição infinita para o Legislativo (representação).
E é o mais daninho porque deu às facções estatais mais reacionárias, saídas dos dispositivos paisano e militar da ditadura, uma perspectiva de poder desde antes da eleição, sendo que o apoio antecipado do chamado Centrão faz de Alckmin o Cunha que pode dar certo. Alckmin é de saída um projeto presidencial para o exercício faccioso dos poderes institucionais acoplado ao Congresso (privilégios, abusos e mais repressão), e com o objetivo de sempre: manter a desigualdade para benefício dos negócios dos muito ricos e daqueles que os servem via manejo da coisa pública.
O fato de ter sido com a plumagem de tucano que Alckmin chegou aonde está não é desprovido de sentido profundo: como ala dissidente do paisano dispositivo oposicionista da ditadura (o p-MDB), o PSDB não deixou de trazer, misturado à carga de bons tijolos que reuniu para participar da construção da democracia reclamada pela maioria da sociedade, um tanto do barro de que fora feito. O tenaz e paulatino êxito de Alckmin na luta entre os tucanos paulistas e, depois, com a desgraça de Aécio, sua ascensão à presidência do PSDB, dão a medida e permitem ver a trajetória do velho que se revitaliza por dentro do que em dia longínquo pôde parecer ser o novo.
No manejo dos imensos recursos de poder disponíveis ao governador do mais rico estado da federação por longos 15 anos, Alckmin reuniu uma experiência perniciosa no favorecimento dos grandes negócios pelo trato combinado dos dispositivos paisano e militar que a ditadura nos legou: pelo lado paisano, manteve sob restrito controle a Assembléia Legislativa de São Paulo e a politicagem interiorana municipal, de onde ele provem; pelo lado militar, concedeu à PM uma lealdade de mafioso: só dança quem for flagrado de maneira inacobertável, do contrário, pé na tábua que serve de porta e bala para frente, pois São Paulo não pode parar.
Mais recentemente, com a emergência da guerra entre facções estatais, Alckmin vem tendo oportunidade de mostrar suas habilidades no trato com facções e vem singrando o mar revolto mobilizando aliados no Judiciário e recolhendo o que pode da carga de políticos processada pela Lava Jato que ainda boia (segundo ele, os melhores) e assegurando resoluta lealdade aos subordinados caídos, como fez na entrevista que deu ao Jornal Nacional (dias depois, Gilmar Mendes agraciou o subordinado mencionado na entrevista com mais um dos seus habeas corpus a jato).
A devoção ao conservadorismo religioso arruma o perfil de um modo especialmente consistente com os tempos de treva que se anunciam e que os bolsonaristas tanto anseiam, junção que pode ser resumida numa frase de Alckmin, — “quem não reagiu, tá vivo” — proferida para revestir com a legitimação precária do mandatário mais uma ação em que a truculência da PM poderia ter sido evitada se os policiais não viessem sendo treinados para a morte (do outro e deles próprios, vítimas inscientes que também são — exemplo dessa conexão macabra são as simetrias entre o assassinato bárbaro da PM Juliane dos Santos Duarte, em SP, e a execução não menos bárbara da líder Marielle Franco, no Rio).
Aquela frase de Alckmin repisa o que sabemos desde Abraão, o patriarca primordial dos implacáveis: os inocentes são sacrificados exatamente para que os algozes possam se exibir como implacáveis. O ex-governador de SP faz da religião lastro para uma implacabilidade que, justamente por ser religiosa, nada tem de republicana e, por isso mesmo, só pode se exibir assim serena porque, facciosamente, é exercida apenas contra os mais fracos — no manejo com os fortes, só mesuras de interiorano devoto.
Não fossem essas práticas tão visíveis, e mesmo que não se soubesse de seu apoio às mais “impopulares” reformas de Temer, a truculência por traz da presumida serenidade de Alckmin seria traída até pelo seu modo de falar: sua mania de expor uma ideia batendo o indicador nos dedos trai a convicção religiosa de quem tem como certo o que é melhor para o interlocutor; um interlocutor a quem ele se dirige não para convencer, muito menos para persuadir, mas para submeter — Alckmin fala como se mastigasse os próprios dentes, como se quisesse triturar o interlocutor.
A junção de religião, truculência policial e grandes negócios faz de Alckmin o presidente dos sonhos da bancada BBB (bíblia+bala+boi), cujos interesses requerem da maioria da sociedade uma submissão bovina aos preceitos reificados da tradição e da ordem — Alckmin propõe um lograr sereno do que Bolsonaro quer arrancar no berro. Uma vitória de Alckmin seria o triunfo da abertura lenta (durou 40 anos), gradual (sempre simulou dar dois passos à frente para dar um atrás) e segura (assegurou que os ricos e seus serviçais não perderiam).
Para azar de Alckmin e, talvez, sorte da maioria de nós, os tempos são de emoção, não de razão — a maioria das pessoas quer expor afetos, não argumentos. Não falo de uma possível “sorte” porque prefira a contraposição afetiva (a motivação fraca) ao racionalismo enganador de Alckmin, que é Bolsonaro. Não. A sorte pode estar em que ao ter de jogar seu imenso tempo de TV num apelo à razão contra seu adversário siamês, pois no segundo turno não há lugar para os dois, Alckmin pode acabar por ajudar a criar condições de conversa que levem a maioria do eleitorado a ponderar motivos para jogar fora a ambos.
Fica o Registro:
- Diante dos salamaleques de Haddad ao p-MDB, Boulos declarou ao UOL que “parece que a relação PT e MDB virou caso de divã, caso de masoquismo. Não é possível, depois de ser golpeado, depois de tudo isso, recompor com essa turma e estar no mesmo palanque”. Diante de uma evidência tão escancarada da vigência profunda do facciosismo que articula o PT com o sistema político velho, a única coisa que resta a Boulos é improvisar uma psicanálise de botequim. É que se ele, para fazer a crítica dessa cena velha, invocasse mesmo que só o marxismo vulgar que costuma manejar, não poderia deixar de escancarar o oportunismo que o levou a alisar o lulopetismo até poucos dias atrás. O eleitorado que mais cresce na campanha do PSOL é o dos que têm saudades da Luciana Genro.
- Embora todos os partidos falem em mudança, o que prevalece mesmo é a repetição do que já está aí, como fica claro quando se observa o uso que os velhos políticos fazem do novo fundo eleitoral, desde o PSOL até o p-MDB, passando pelo Centrão e adjacências: o grosso do nosso dinheiro está sendo distribuído aos que já têm mandato e querem se reeleger. Tudo ao contrário da indispensável renovação do Congresso, como já tratei aqui, aqui, aqui e em outros posts deste blog.
- [17:55h] O esfaqueamento de Bolsonaro no meio da rua, em meio a multidão de apoiadores, é uma barbaridade que de imediato intensifica o emocionalismo da campanha, mas, com o passar dos dias, a depender também das consequências do ferimento e de uma criteriosa apuração dos fatos, pode fazer pensar, até mesmo ao próprio Bolsonaro, que no passado defendeu “matar uns 30 mil” e outro dia atualizava esse ânimo belicoso falando em “metralhar petralhas”, além de defender a prática da tortura, que atinge a integridade física e psíquica de pessoas já despojadas de meios de se defender.