Carlos Novaes, 28 de fevereiro de 2018
Por tudo aquilo que simboliza em termos políticos, sociais, territoriais e demográficos, o Rio passou a sintetizar a crise de legitimação desse Estado de Direito Autoritário vigente no Brasil desde o fim da ditadura paisano-militar. Com o pretexto de combater o chamado crime organizado, espraiaram o exército pelas ruas, quando não é nelas que está organizado o crime; afinal, o chamado crime organizado é organizado não porque domine territórios na sociedade, pelo contrário, ele é organizado precisamente porque fez da sua aderência ao Estado um meio de se organizar, no que seguiu o exemplo dos mariscos das facções político-institucionais que nos infelicitam. Tanto as facções do crime quanto as facções do exercício faccioso dos poderes institucionais têm seus chefes atuando ao abrigo do Estado (prisões, polícias, Legislativo, Executivo, Judiciário) para tirar vantagem dos sofrimentos que impõem à maioria da sociedade.
Veja bem, leitor: assim como o político profissional, custodiando o Estado, faz uso faccioso da estrutura representacional estatal para reunir poder e dinheiro; assim como o hierarca do serviço público, custodiando o Estado, faz uso da estrutura institucional estatal para reunir poder e dinheiro, também o criminoso encarcerado, sob custódia do Estado, faz uso faccioso da estrutura penitenciária estatal para reunir poder e dinheiro – nos três casos, quem provê os meios é o Estado de Direito Autoritário, que funciona segundo os poderes do dinheiro e da força de arregimentação, vicariamente lastreado no dispositivo democrático do voto. Em outras palavras, a emergente organização estatal das nossas facções de bandidos é uma mimetização da secular organização estatal das nossas facções político-institucionais; daí a enorme semelhança entre elas, inclusive na indiferença ao sofrimento alheio.
Quando ainda não havia a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, tanto uns quanto outros se ajeitavam no âmbito do Estado, disputando perdas, ganhos e danos, mas arbitrando ambições sem rupturas (bandidos nas penitenciárias, obtendo estiletes, eletrônicos e regalias; políticos e hierarcas nas instituições, obtendo dinheiro, cargos e vantagens); todos fazendo da sociedade teatro aberto às suas respectivas disputas, os bandidos pela força do dinheiro e das armas, os políticos profissionais e os hierarcas pela força do dinheiro, do voto e dos cargos – nos três casos a sociedade era vítima das ambições e dos acertos respectivos entre eles. Com a crise de legitimação do Estado, as facções não tiveram escolha e quebraram seus acordos consuetudinários, se conflagraram: bandidos nas prisões; políticos profissionais e hierarcas nas instituições – o resultado é essa desordem que abisma a maioria da sociedade.
Assim como o nosso problema institucional não está na democracia, mas no Estado de Direito (como explicado no post anterior); a desordem também não está na sociedade, mas no Estado, pois a desordem resulta da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que nos foi legado pela ditadura paisano-militar – logo, dessa perspectiva, fica claro que:
- Não faz nenhum sentido encarar a volta do protagonismo militar como solução para essa desordem – muito pelo contrário.
- A facção político-institucional majoritária, chefiada pelo p-MDB, chamou os militares de volta precisamente porque se esgotou a engenhoca de mando que o mesmíssimo p-MDB havia chefiado no fim da ditadura paisano-militar (circuito de retorno que já explorei aqui, aqui, aqui e aqui). Trata-se, literalmente, de uma marcha à ré.
Em post dos mais recentes, ainda antes dessa intervenção no Rio, tratei da chamada questão militar e procurei me distanciar de elucubrações conspiratórias. Como disse então:
Ora, a questão, naturalmente, não é saber acerca de em que a FFAA estão “interessadas”, mas sim de antecipar que tipo de interesses elas podem passar a ter depois de experimentarem certas práticas, especialmente quando se considera o ambiente faccional em que estamos. Afinal, nada garante que o interesse marqueteiro que orientou os políticos tenha mantido a sua vigência depois de um uso tão prolongado e cada vez mais amiúde da prática de convocar as FFAA, uma vez que os militares não estão aí para obedecerem ao papel de figurantes em peças de propaganda… Por outro lado, essas novas práticas estão a mostrar que as FFAA podem aumentar seu grau de tutela sem propriamente uma intervenção e, nesse caso, pode ser até muito mais confortável, para elas e para o establishment, que se conserve a rotina eleitoral para a escolha de governos civis.
Ora, parece claro que eles aprendem numa velocidade que desmente estarem a desempenhar a função a contragosto, pois em declaração de ontem o general interventor, depois de colocar a si próprio no mesmo nível hierárquico do ministro de Estado que deveria chefiá-lo, passou a falar no Rio como um “laboratório para o Brasil”, ideia que denuncia uma medonha falta de imaginação: a sociedade brasileira já teve bastante desse laboratório entre 1964 e 1989 e sabe muito bem o que esperar dele.
A natureza da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário pôs abaixo, entre outras, a ideia de que a ordem a ser obtida com o combate à desordem é um pré-requisito para a busca da justiça social. Isso é balela, afinal, essa crise resulta, em última instância (olha ela de volta) da desigualdade sem paralelo que caracteriza a sociedade brasileira, uma desigualdade que joga a desordem contra a democracia. De novo, nosso problema não é a democracia, mas nossa ordem estatal, nosso Estado de Direito, que abriga direitos e práticas que estão em conflito aberto com o bem comum, arranjo que resulta da escolha deliberada por manter a desigualdade. Ou seja, uma nova ordem benfazeja só poderá ser alcançada se for construída segundo práticas de combate à desigualdade, o que orientaria o Estado de Direito no sentido da consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático – exatamente o contrário do que está em marcha: na versão menos ruim, um reforço do Estado de Direito Autoritário; na pior, o fim do Estado de direito.
[Acréscimo às 18:54]:
Fica o Registro:
- O general comandante do exército pediu nessa tarde mudança legal que permita aos soldados atirarem em qualquer um que porte uma arma nas ruas, e alega, num português trôpego, que “essa empreitada que [sic] nós estamos participando, realizando, ela tem que dar certo. É uma das últimas oportunidades de que o Estado brasileiro está buscando [sic] para superar esse problema que é o que mais aflige a nossa sociedade”. Uma ideia incivilizada com base em “argumentos” falsos. A ideia é incivilizada porque, se posta em prática, nos levará de uma equivocada “guerra às drogas” para uma ainda mais equivocada “caça ao traficante”, fazendo o exército passar de uma corporação de enfrentamento para uma turba imperita de caça; fazendo as favelas passarem de local de moradia dos pobres para reserva de caça em favor dos muito ricos. A violência brutal dos bandidos será legitimada pela violência sórdida do Estado, tudo contra o povo pobre. Todas as alegações são falsas: nem a operação tem como dar certo, se se considera o bem comum; nem pode ser vista como uma oportunidade de solução, uma vez que passa ao largo do problema real, a desigualdade; nem o problema é o que mais aflige a maioria da sociedade (e, mesmo se fosse, o Rio está longe de ser o caso mais grave no país).