ENSINAMENTOS DO RACHA NA BASE BOLSONARISTA -1 DE 2

Carlos Novaes, 12 de setembro de 2021

A minoria que forma a expressiva base propriamente popular de Bolsonaro, os tais 20%, é constituída por segmentos da sociedade civil (base paisana dele) e por segmentos oriundos diretamente do aparelho estatal (notadamente, agentes e ex-agentes das instituições policias, mas não só). Já se tornou trivial observar que a solda entre esses segmentos resulta do conservadorismo reacionário que professam, no qual tem lugar central a religiosidade evangélica. Ainda que sem contestar essa visão geral, parece útil explorar poros nesse organismo de aparência tão inteiriça, e o 7 de setembro nos fornece material útil.

Venho tentando mostrar que o delírio de Bolsonaro por tornar-se ditador, que orienta sua motivação golpista, não tem lastro e acaba sempre por assumir a forma de blefe. Faz tempo que Bolsonaro se acostumou a passar da fanfarronice verbal para o rabo-entre-as-pernas, e, nesse aspecto, não houve novidade: depois da fanfarronice dos discursos do dia 7, tivemos o rabo-entre-as-pernas na carta e no telefonema a Moraes no dia 9. A novidade foi outra, no dia 8.

Depois de antecipar que Bolsonaro faria da manifestação do dia 7 mais um blefe, mostrei como ele próprio antecipou para os seus seguidores que se tratava de um blefe. Entretanto, nem tudo correu como esperado por Bolsonaro (e por mim): embora, como esperado, a PMilícia não tenha posto a cara, parte da base não entendeu (ou não quis aceitar) que se tratava de um blefe, saiu do roteiro e partiu para o bloqueio de estradas. Eis a novidade: essa movimentação obrigou Bolsonaro a um gesto inédito: ao vexame de solicitar diretamente aos seus, já no dia 8, que recuassem na direção do velho normal.

Veja bem leitor: se parte da base não tivesse partido para a ação golpista, se Bolsonaro não tivesse sido obrigado a dar esse vexame, a carta e o telefonema do dia 9 seriam parte da paisagem, pois tanto a base como o chefe teriam se comportado como sempre. A novidade foi a revolta da base. O fato de Bolsonaro ter tentado consertar o estrago com a narrativa de que se trata de uma tática, que obedeceria ao mesmo objetivo estratégico ditatorial, não atenua o revés, mesmo que toda a sua base tivesse se agarrado religiosamente a essa narrativa confortadora (coisa que, sabemos, não ocorreu: houve defecções e nenhum ganho).

Mas isso não é tudo, nem o mais instrutivo a ser extraído dessa novidade do desgarramento de parte da base bolsonarista radicalizada. Observe-se que quem saiu do roteiro não foram os segmentos oriundos do Estado de Direito Autoritário, os quais já fazem parte do jogo das facções e a ele obedecem (esse pessoal da área policial ficou quietinho, e recebeu elogios…); quem não seguiu o roteiro foram segmentos bolsonaristas da sociedade civil, que estão motivados pelo sentimento antissistema. Esse contraste ajuda a ver que o jogo de Bolsonaro é um jogo faccioso (dentro do sistema), não um jogo antissistema. O besta está perfeitamente afinado com seu braço policial/estatal, mas encontra problemas de sintonia com os segmentos civis que o apoiam.

Note bem, leitor: não estou tentando descrever o que se passa dentro da cabeça de Bolsonaro, não estou discutindo as intenções dele, o que ele conscientemente conspira; pelo contrário: estou tentando agarrar a dinâmica da ação dele pelo que ela é, na prática, como resultado da trajetória dele como ator desde sempre integrado ao sistema, isto é, ao Estado de Direito Autoritário, cuja solidez interesseira (oriunda de uma bem manejada e instrutiva luta contra a ditadura) se contrapõe aos delírios ditatoriais do mesmo Bolsonaro, que transitou dos porões da ditadura para o charco congressual, onde ele sempre combinou fanfarronice verbal e rabo-entre-as-pernas. As peças estão em seus lugares, o jogo é o mesmo, só que realizado sob as condições adversas de uma crise de legitimação.

Olhada dessa perspectiva, a fissura na base de Bolsonaro permite ver ainda que enquanto o chefe e as facções estatais que o apoiam estão sendo levados, pelo embate com as facções adversárias, a ver na crise de legitimação (que não entendem, mas vivem como confusão auspiciosa) uma oportunidade para melhorar sua condição dentro do Estado de Direito Autoritário; o segmento bolsonarista da sociedade civil tem a inclinação contrária, e quer tirar todas as consequências da crise de legitimação (que não entende, e só enxerga com base na ideia de derrubar o “sistema”), tentando resolvê-la com um Estado ditatorial, o que esbarra na preferência pela democracia da maioria da sociedade brasileira.

De modo que não há motivo para surpresa quando o desfecho da complexa sequência de eventos dos últimos dias ganha a aparência de um “acordão”.

Não é exatamente que houve um acordão, pois “acordão” sugere um certo modelo de conspiração totalizante, na qual todos os agentes teriam tido voz acerca do que fazer no caso. Não é assim que funciona, até porque a composição das facções não é fixa, pois elas se fazem e refazem no curso do jogo, o que, entre outras coisas, dá margem de manobra para os membros mais poderosos — muitos dos quais sequer participaram dessa rodada, embora estejam plenamente afinados com ela, como Lula (que fala com Temer por música…). Como quer que seja, há grande afinação em torno do objetivo principal das facções: preservar o Estado de Direito Autoritário. Bolsonaro, cujos objetivos, como vimos no artigo anterior, o fazem oscilar alucinadamente, vem tendo diminuído o seu raio de manobra e sendo levado a obedecer a lógica geral do “sistema”, para desagrado da “sociedade civil” dele.

Fica o Registro:

Na Folha de S. Paulo de hoje há um artigo representativo dos caminhos tortuosos a que os últimos acontecimentos levaram os defensores do nosso suposto Estado democrático direito:

“Nos dias 8 e 9, a discussão sobre impeachment avançou aceleradamente, […]. Eram elas, as instituições funcionando, […]

Mas, olhem só que lástima…, um

“acordão impediu que instituições funcionassem“.

Como assim? Quer dizer: quando os agentes institucionais de um suposto Estado democrático de direito atuam de acordo com o que sonha o observador, as instituições estão funcionando; quando eles atuam em outra direção, já não são as instituições… ??! A que contorcionismos constrangedores são levados os que não reconhecem a dinâmica facciosa e a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário!

O arremate dessa “análise” das instituições (que ora estão “em colapso”, ora estão “funcionando” e ora estão “imobilizadas”) só poderia ser um choramingo em tom nostálgico:

se o acordão contra o impeachment prosperar, não teremos de volta nossa democracia saudável de alguns anos atrás“.

Como já não dá para dizer “consolidada”, virou “saudável”… Ainda assim, gostaria muito que alguém me dissesse o que de tão saudável foi tirado da nossa democracia e que estaria a nos fazer tanta falta.

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