Arquivo da categoria: ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS

Posts sobre eleições passadas e sobre a que virá, afinal, uma eleição é, também, a reconfiguração da memória da anterior.

LUGAR E OPORTUNIDADE DA OPÇÃO MARINA SILVA PARA PRESIDENTE

Carlos Novaes, setembro de 2009

I. APRESENTAÇÃO – (de 2013)

Entre julho e agosto de 2009, no lufa-lufa dos esforços para colocar de pé uma candidatura presidencial de Marina Silva em 2010, a então senadora solicitou ao autor um texto em que amarrasse as intervenções verbais que ele vinha apresentando sobre o processo transcorrido até então. Reuni, então, reflexões antigas sobre o esgotamento de certos projetos políticos para o Brasil com idéias sobre como iniciar uma nova era para o país. Há anos aquelas reflexões vinham me conduzindo a entender que a chamada questão ambiental passaria a ter lugar decisivo nas busca de novas alternativas de desenvolvimento. A partir de 2006 ficou claro o papel de protagonista eleitoral que Marina Silva poderia ocupar no cenário nacional e, por isso, passei a tratar do tema em meus círculos próximos e, mais adiante, foi natural que me engajasse na articulação de uma possível candidatura de Marina à presidência.

Embora hoje, em 2013, a situação política apresente mudanças significativas, parece oportuno manter sob juízo dos leitores aquela maneira de abordar as questões envolvidas. Cada um dirá quão atuais podem ser aquelas linhas, que se seguem tal como foram apresentadas em 2009.

II. UM PROJETO ESGOTADO

Por mais ruidosa que se faça a refrega PT-PSDB, ela se dá fundamentalmente em razão da troca de turma na gestão do estado brasileiro. A chegada de Lula à presidência interrompeu uma prática acomodatícia na ocupação dos chamados cargos de confiança: pela primeira vez houve uma substituição em massa de seus ocupantes, o que rendeu o alarido em torno de um suposto aparelhamento do estado pelo PT, como se não fosse de esperar que os postos de mando fossem ocupados pelos representantes de uma vitoriosa burocracia organizada e treinada precisamente para exercer o mando. Essa troca de turma causou ruído menos pelo impacto que teve sobre o resultado da ação governativa e mais pelo fato de ter escangalhado um arranjo de compadrio que vinha desde o fim do regime militar – em alguns casos, até de antes.

Ainda que seja difícil a uns e outros admitirem, para além da troca da guarda, os períodos de governo de FHC e de Lula foram modos de realização de um mesmo projeto para o país, projeto este que vem desde Vargas e fôra interrompido com o golpe militar e a ditadura que a ele se seguiu. Quando deu ao seu principal programa de ação governamental o nome de Aceleração do Crescimento, a equipe de Lula deixou claro que se tratava não de inventar um novo modelo, mas de acelerar o veículo do crescimento que já estava em marcha, endossando o crescimentismo herdado do passado, embora melhorando o estado dos assentos destinados à acomodação dos segmentos populares nesse móbile movido a petróleo em via pavimentada pela desigualdade. O PAC desautorizou qualquer verossimilhança para o caráter tático que alguém ainda pudesse atribuir à promessa de continuísmo expressa na Carta aos Brasileiros. A Carta foi pra valer e vem sendo cumprida, para alegria dos donos do dinheiro.

Vivendo de forma insciente a conclusão popularíssima de um projeto que soube representar e para o qual ainda não há alternativa clara, o presidente Lula foi levado a acreditar que poderá ditar em termos precisos a própria sucessão (a tal ponto que se autoatribuiu a potência para redesenhar o perfil da próxima composição do Senado), encarada superficialmente por ele como uma escolha entre o que seu governo realizou e o que o anterior fez de errado ou deixou de fazer. Não ocorre ao presidente e aos seus que as balizas dessa disjuntiva possam ser vicárias (afinal, FHC e Lula se tornaram protagonistas do mesmo projeto) e, muito menos, que o país está desafiado a formular e estabelecer os termos para uma nova era de desenvolvimento. Para destravar o debate e poder iniciar esta nova era, o país precisa se livrar da improdutiva pseudo-oposição entre o PT e o PSDB, verdadeiro teatro do absurdo, que requer o cinismo por figurino e a corrupção por ambiente cenográfico.

Gêmeos bivitelinos herdeiros do projeto de soerguimento nacional do período Vargas-JK (PTB-PSD), PT e PSDB cresceram separados como os irmãos corsos: embora a inserção social e cultural de cada um tenha feito diferença, não degeneraram e, na maturidade, se reencontram com mais semelhanças do que estão dispostos a admitir. Em seus primórdios, o PSDB se apresentou como uma variante da social democracia europeia, só que aclimatada nos trópicos: desprovida de braço sindical e centrada na opinião pública universitária. Quanto ao PT, iniciou sua trajetória sob diáfana inspiração socialista, já aguada pela inflexão nacional e vertida na forma de um trabalhadorismo sem fundamento que, por isso mesmo, virou lulismo. Assim, embora embalados em berços distantes e educados em escolas diferentes, a canção de ninar e o hinário edificante foram os mesmos: o cantochão do Brasil crescimentista. Os caprichos da prática política em um país muito desigual – onde as ambições, recobertas de divergências ideológicas na maior parte das vezes infundadas, cavam fossos onde seria mais rentável elevar pontes – levaram estes dois partidos a se posicionarem de um modo que o eleitor está impedido de reuni-los: em campanha, apresentam-se sempre como alternativas inconciliáveis; no exercício do mando, desorientam pela semelhança que não chega a ser de todo encoberta pela poeira da porfia que cava divergências vãs. Dá-se o paradoxo: metade do que de melhor o país logrou produzir para o exercício do poder político tem sempre de se juntar ao que há de pior para derrotar a sua metade mais semelhante. Não por acaso, as forças do atraso nas quais os gêmeos se apóiam são precisamente aquelas que deram materialidade parlamentar à vida política sob a ditadura. Cada um arregimenta e passa a cevar um pedaço do nefasto passado recente no fito de conduzir como protagonista imperfeito a tardia realização de um projeto inatual, que poderia ter sido levado a cabo com maior proveito se ambos tivessem reunido o que têm de melhor, ao invés de robustecer, com as más companhias, o que têm de pior em suas próprias fileiras .

Esta situação conforma provavelmente o exemplo mais cabal da autonomia da política entre nós. E ela se autonomizou a este grau porque nossa institucionalidade estatal e corporativa, nas três esferas (federal, estadual e municipal), desde sempre faculta a quem “chega lá” acesso a recursos que podem ser alocados sem uma vigilância efetiva por parte da sociedade. Com base neles, nossos quadros politicamente mais ativos são selecionados e cooptados por uma lógica espiralada que lhes permite contornar as dificuldades mais salientes antepostas pela desigualdade (sempre ela), levando-os ao sucesso pessoal que alimenta, com seu engajamento remunerado, uma máquina política oligarquizada já descolada do país real, cujos arranjos asseguram aos mandatários, a cada volta, que o velho não tenha termo e o novo não possa se desatar. A situação que os aninha é tão hostil à mudança que as novidades institucionais que lhes ocorrem como solução para os problemas têm sempre duas preliminares defeituosas: dependem do comportamento virtuoso dos protagonistas cuja condução se questiona e/ou reforçam o poder de quem já o tem (financiamento público de campanhas; voto em listas fechadas; cerceamento da liberdade de opinião, etc).

Além de exemplo de autonomia política indesejável, esse estado de coisas, ante os olhos mais e mais incrédulos e desesperançados da população, tornou-se produtor de pantomimas de legitimação, próprias de quando não se quer reconhecer filiação comum evidente: de um lado, impedido de se opor a si mesmo, o PSDB acusa o PT ora de plágio de suas bandeiras, ora de ser mero continuador de suas políticas; de outro, Lula não pode reconhecer os benefícios da herança recebida, nem a bonança internacional que favoreceu grande parte do seu período de protagonista do projeto comum, uma vez que presume indispensável apresentar como obra sua resultados saídos de uma concatenação de circunstâncias inabarcável aqui, da qual ele e seu PT tomaram parte, mas não são autores. Mesmo a assimilação acomodada dos grandes prejuízos locais procedentes da crise internacional em curso (a tal marolinha), mesmo ela deveria ser reconhecida como tributária do que ambos vêm fazendo há 15 anos: segurança patrimonial, estabilidade monetária, saúde financeira, assistência social, domesticação popular e retomada dos investimentos.

Se alguém conhecer, que apresente ao país figuração mais acabada dessa confusão cínica do que o espetáculo em que a auto-intitulada oposição recebe como vantajosas as confissões de irresponsabilidade do ex-oposicionista Lula, sem se dar conta de que o presidente, ao vilipendiar a sua própria trajetória de opositor, está macunaimicamente a desqualificar a condição de oposicionista enquanto tal, numa pirueta obnubiladora que torna aceitável a transgressão da regra e inócua toda crítica que aceite como parâmetro a régua que os gêmeos compartilham: se o projeto é o mesmo, se se trata apenas de disputar o reles mando político de sua realização, não há mal em desqualificar o mandatário de turno para, na curva seguinte, à sorrelfa, espertamente dar ao eleitor o mesmo que o outro já vinha oferecendo (para bem e para mal), e ainda fazer piada de tudo, reforçando a idéia de que os políticos são todos iguais — nivelamento que não seria de todo impróprio se ficasse restrito aos políticos profissionais.

Chegamos a um limite perigoso, que arma situações perigosas, pois atingimos a última fronteira não ditatorial no prolongar artificialmente uma era que já terminou, um projeto que já se esgotou. Não é ditatorial, mas é sufocante. E a única forma de sair do sufocamento é fazer o que a vida reclama: construir uma alternativa fora da estufa que prepara o plebiscito fajuto entre dois prepostos do mesmo. Um país desigual que reúne portentosos recursos naturais num território continental, que deu à luz uma população miscigenada de 180 milhões de pessoas, e que está desafiado pela descoberta dolorosa de que o planeta é finito, já não pode se abandonar à crença em valores e cálculos remanescentes de um projeto de crescimento nacional orientado pelo mero desejo arrivista de substituir importações pela internalização da produção, mormente quando esta é vista como destinada a fomentar um mercado interno de massas orientadas para o consumo de bens a serem produzidos em abundância e indefinidamente, e com base na extração pura e simples de riquezas naturais tidas por inesgotáveis.

Essa época se foi. E o que ela deu de melhor foi a idéia generosa, mas equívoca, de inclusão (a tradução petista da belíndia formulada pelos tucanos), como se houvesse um país que funciona, ao qual se devesse incluir um contingente que está em outro lugar, como que fora, apartado do que funciona e não fosse, ele próprio, variável intrínseca e fiadora do funcionamento inaceitável vigente. Não poderia haver maior contraste entre o que é necessário e o que fazem e pregam nessa área o governo e sua auto-intitulada oposição: enquanto o PT não tira de seus programas sociais nenhuma resultante política inovadora, a oposição se alterna entre atribuir a si mesma o início dessas compensações à pobreza e a denúncia do uso eleitoreiro do seu sucesso.

É provável que a era Lula (nela incluída a oposição) não venha a oferecer emblema mais acabado de seu ocaso inventivo, do que o estardalhaço patrioteiro em torno do Pré-sal, verdadeira apoteose da campanha varguista de há 50 anos, O Petróleo é Nosso, num tempo em que os esforços da ciência internacional estão voltados não para a extração de combustível de origem fóssil (por mais complicada e rentável que se apresente a monótona tarefa), mas para a produção de energias de origem renovável que ajudem a conter a mudança climática oriunda fundamentalmente da emissão de carbono. Se O Petróleo é Nosso, Nosso CO2 é de Todos. Embora o petróleo venha a ter lugar central num projeto que busque um novo modelo de desenvolvimento — pois temos de tirar proveito do nosso atraso relativo –, não será o caso nem de celebrá-lo cegamente em suas aplicações como combustível, nem de deixar de incluir nos custos e benefícios da sua extração garantias e projetos de orientação socioambiental que permitam, no longo prazo, a transição eficaz do modelo do ouro negro para a economia verde.

Para completar o quadro acabrunhador, e como não poderia deixar de ser, a auto-intitulada oposição não se peja de gastar suas energias a bramir sua revolta contra o uso eleitoral do Pré-sal. Faz sentido: se o projeto é o mesmo, tudo que se pode fazer é espernear contra os benefícios eleitorais que advém para o realizador de turno de mais uma conquista do projeto comum, da qual, por um “azar do destino”, se está momentaneamente apartado e, portanto, impedido de comemorar.

Essa escolha do PSDB é muito ilustrativa de suas limitações de formulação acerca do que realmente interessa, pois despreza o fato de que a Petrobrás é o exemplo mais acabado dessa longa jornada do crescimentismo, agora hegemonizado pelo trabalhadorismo: uma empresa petrolífera de economia mista sob controle estatal em que pela primeira vez na história desse país o poder empresarial e o poder sindical se sobrepõem, situação cujos resultados mais pestilentos ainda estão por vir à tona.

Em suma (1) – Se o projeto se concluiu, a alternativa é mostrar ao Brasil a necessidade de um novo projeto, que se apóie nos resultados do anterior para subverte-lo, impedindo que sua vigência anacrônica nos empurre para trás. A plausibilidade desse entendimento está dada, de um lado, pelo aspecto desinteressante que marcava a armação da disputa eleitoral vindoura na forma de um plebiscito; de outro lado, ela se apóia na falência de nossas instituições políticas, marcadas pelas conseqüências de uma autonomização oligárquica.

III. PRIMEIROS PASSOS DE UMA ALTERNATIVA

Ao observarem o caráter infecundo dessa pseudopolarização entre o PT e o PSDB e inconformados com o contraste entre a sua quase irrelevância na cena política brasileira [nota de 2012: irrelevância para onde voltaram depois que Marina deixou o PV] e o papel de destaque que as credenciais do Brasil podem levá-lo a desempenhar num mundo que veem, cada vez mais, compartilhar com eles a preocupação com a mudança climática e a esperança nas amplas possibilidades que ensejam o uso sustentável do esforço humano, da terra, do sol, da água e dos ventos, dirigentes do Partido Verde decidiram renovar seu projeto e reestruturar o partido no rumo da construção democrática de uma economia verde.

Ao darem notícia da primeira reunião que tiveram com Marina, esses mesmos dirigentes do PV abriram para a imprensa o fato político do ano até aqui e, talvez, de todo ele. Desde aquele 29 de julho de 2009 os desdobramentos políticos se sucederam com rapidez e intensidade nada surpreendentes, mas dignos de registro porque servem tanto de confirmação encorajadora para a percepção dos que entendem que a situação está madura, quanto de elemento de persuasão para os que ainda duvidam. Essa notável aceitação preliminar do nome de Marina no PV deve-se, de um lado, às inegáveis qualidades da senadora e, de outro, ao fato de que essas qualidades vão ao encontro de anseios que repelem as resultantes infecundas da situação dramática mais acima descrita. Uma das evidências mais salientes dessa naturalidade entre situação e personagem se apresenta no fato de que há por todo o país quem atribua a si mesmo a idéia de juntar Marina e PV numa campanha presidencial. Todos têm razão, pois tal como na boa carpintaria romanesca, em política os resultados sólidos estão presentes, in nuc, desde o início da caminhada – e por toda parte.

O processo se apresentou em etapas que se desdobraram com a sucessão própria do que é natural, sendo assim compreendidas pela mídia (e, portanto, pela opinião pública interessada), logrando-se êxitos, a saber:

1. deu-se um período de especulações iniciais via mídia, preparadoras do que viria;
2. a protagonista deixou claro seu “intervalo de reflexão” e, como seria de esperar, não foi desmentida nem pela ação de outros agentes políticos, nem por qualquer descrença da mídia;
3. ao abrir interlocução com o PT, iniciou-a pelo Acre, cepa original de tudo, cenário em que confluem a vida familiar-privada e a vida societal-pública, gesto que reuniu, muito a propósito, afeto e razão política, moral-ética e estratégia;

4. logo a seguir, as conversas da protagonista com as “autoridades petistas” se deram entre exclamações de pesar e perda, atmosfera em tudo favorável a um desfecho auspicioso, que culminou com as declarações de que o mandato da senadora era intocável;
5. a conclusão da primeira fase ocorreu com a desfiliação do PT, desfecho que se deu sem atritos com a base do partido e que não agradou as autoridades petistas por razões que não recomendariam a permanência da protagonista naquele partido;

6. iniciou-se uma segunda fase, em que a protagonista se viu à vontade para explicitar tanto as motivações para a mudança, quanto as condições necessárias para que a mudança se desse na direção do PV, sempre dialogando com o legado petista, que não repudiou;

7. tal como no “intervalo de reflexão”, os agentes políticos e a mídia se comportaram como seria de esperar: se colocaram na posição de quem espera uma decisão, sem dar como certa esta ou aquela opção, configurando-se uma expectativa pública tão autêntica quanto benéfica;
8. beneficiada pela credibilidade que justificadamente suscita, a protagonista pôde construir sua adesão ao PV [bem como a daqueles que a acompanhavam] com base em duas condições tornadas públicas: reorientação programática e reestruturação democrática da agremiação partidária [nota de 2012: meses depois, em desgastes crescentes, essas pré-condições à candidatura foram abandonadas, provocando fratura no grupo antes reunido];
9. encontrando-se o PV já em movimentação interna própria aparentemente afinada com as motivações da protagonista, não se encontrou obstáculos de monta para que fossem estabelecidos os termos do acordo que, se entendia, favorecia a vigência daquelas condições;
10. a segunda fase se concluiu no dia 30 de agosto de 2009 com a filiação da Senadora Marina Silva ao Partido Verde.

Em suma (2) – Como não poderia deixar de ser, a variada e auspiciosa recepção ao nome de Marina como candidata à presidência da República não eleva ninguém à condição de grande estrategista ou visionário, pois de realidades maduras, engendradas pela própria dinâmica do beco quase sem saída em que estamos, não se pode esperar senão a apresentação de caminho que de pronto é reconhecido como natural.

IV. IMPACTO NA, E OPORTUNIDADES DA, CENA POLÍTICA

A única força política que pode livrar o país dos erros dessa armadilha improdutiva em que se comprazem a situação e sua auto-intitulada oposição é aquela que propuser um projeto alternativo inovador e aposte no discernimento do eleitor, que vive como impasse simbólico aporias que nascem das agruras da vida material e não está disposto a se deixar embalar no sono proposto pelos realistas com a canção de ninar dos pragmáticos, mesmo que a monotonia da ausência de sonhos seja supostamente compensada pela quase ausência dos pesadelos outrora recorrentes: a inflação e a miséria desvalida. A juventude brasileira quer um projeto pelo qual lutar, quer metas pelas quais sonhar, ocupando-se de dar origem às suas próprias alternativas, assim como a inescapáveis novas deformações.

A entrada de Marina Silva-PV nesse tabuleiro pré-sucessão presidencial promoveu uma troca de jogo: vinha-se jogando damas e passou-se a jogar xadrez. Houve uma diferenciação no movimento das peças e o jogo ganhou complexidade. Como se sabia, cogitar Marina-PV na sucessão leva ao fim, por revelar a sua irrelevância, o plebiscito Lula-FHC e favorece a multiplicação das opções, pelas seguintes razões:

– aparece um terceiro cuja viabilidade, por si só, deve ser considerada;
– o terceiro é egresso do projeto superado e dinamiza a problematização das escolhas feitas por este, mormente nas áreas em que o governo foi mais atrasado;

– a presença de terceiro torna inócuo o sacrifício de outros pretendentes, que se haviam retirado da disputa sob pressão, para configurar o plebiscito;

– já não é o caso de considerar apenas a escolha de “mais do mesmo”, abrindo-se o leque de alternativas à preferência do eleitor.

A viabilidade de Marina-PV nasce da convergência entre os novos desafios mundiais acerca da viabilidade do planeta como plataforma para o conforto humano, por um lado, e o impasse da vida política nacional antes descrito, por outro. Gigante pela própria natureza, o Brasil é visto de fora, e olha a si mesmo, como um viveiro de alternativas socioambientais e de energias limpas com que se pode enfrentar as dificuldades do nosso tempo. Marina é a liderança brasileira mais sintonizada com esse novo lugar do Brasil na cena mundial. Ao mesmo tempo, esse país para o qual todos olham como uma esperança de futuro é o mesmo do desarranjo antigo mais acima descrito, que só se resolverá pela reunião, em torno de um novo projeto liderado pela mesma Marina, do que de melhor há no PT e no PSDB, conjunto que poderá atrair para uma nova dinâmica política os melhores quadros de outros partidos, com destaque para PSB e PDT. Como já disse em outro lugar, não por acaso Marina é aquela cuja atuação demarcou os limites da era Lula, cuja trajetória simboliza o que deve haver de continuidade com o caráter popular dessa mesma era e cuja visão de mundo está em consonância anímica com a perspectiva transformadora que nos remete para além dessa era.

Ao ter o governo Lula como “ponto de partida” para o que propõe, Ciro Gomes (a quem só o gesto de Marina recolocou no campo de jogo – ou seja, ele não era, e não é, alternativa autêntica, que pudesse se apresentar de moto próprio, sem pedir licença, como Marina) faz de si mesmo uma opção a mais para a continuação do esgotado projeto lulista. Como sua menoridade política o impede de criticar o governo Lula enquanto tal, Ciro se refugia no questionamento do arranjo político em torno de Dilma, como a dizer que se trata de continuar, mas com outro tipo de coalizão. A formulação é imaginosa, pois se apóia num temor real do eleitor: Lula não estará lá para conter os apetites. Aliás, o cerne do que há de aventureiro na alternativa Dilma está nisso: ela não tem recursos próprios (até os votos receberá por empréstimo, com carência de quatro anos) para conter a avidez das máquinas do PT e do PMDB.

Preocupado em não criticar o que parece estar dando certo, Ciro não compreendeu que Lula é ponto de chegada, não de partida. Com Lula se encerra um projeto, que terá de receber críticas; com Marina é que se abre um projeto novo. Lula do ABC, que deixou a sua terra e se tornou importante, Lula das montadoras, Lula que se orgulha de ter sido o primeiro dos irmãos a comprar geladeira e carro, Lula, filho e homem de sua época, Lula, o metalúrgico resistente aos desafios socioambientais, encerra tardiamente um projeto antigo (e não por culpa sua, afinal, fez o que pôde e foi além do que seria de exigir), cuja herança teremos de trabalhar. Para sucedê-lo, Marina, que saiu da floresta para se engajar lucidamente na luta brava da cidade, Marina, a que fez importante para o mundo a luta da sua terra, Marina, a filha de seringueiro que se orgulha de ter estudado, Marina, a professora que compreendeu e ensina que não há desenvolvimento sem respeito às fontes da vida.

A humanidade experimenta uma convergência inédita: os interesses da ciência de ponta com os desejos da juventude. Em geral avessos às limitações do aprendizado de rotinas, base de todo conhecimento, contrapondo a elas a vigorosa experimentação dos corpos, os jovens enquanto massa estão pressionados pelos limites socioambientais à expansão dos modos de vida ultrapassados em que se acham semiperdidos, a alternar sentimentos de repulsa, engajamento e abandono, e se vêem desafiados a ampliar seus conhecimentos sobre, afinal, o que se passa com o planeta . Mas esse interesse não é mera reposição juvenil da tensão velha de milênios entre Homem e Natureza, uma vez que aquilo que está sob investigação é a própria ação do homem, que reconfigurou aquela dicotomia primeira na forma atual de Natureza-Homem-Natureza’ (N-H-N’). Esse processo reflexionante cria novas possibilidades para a legitimação racional do revigoramento de energias utópicas, que se esvaeceram ao longo do penoso percurso em que o trabalho perdeu a centralidade que permitira prefigurar-se, na segunda metade do século XIX, um datado sujeito histórico da transformação.

A terceira fase da entrada de Marina em cena termina em 30 de setembro de 2009, quando se encerra o prazo para as filiações propriamente eleitorais. Em outubro inicia-se a pré-campanha, cuja primeira fase se encerrará em fevereiro de 2010. De março a junho teremos a segunda fase da pré-campanha. De julho a outubro dar-se-á a campanha propriamente dita.

Em suma (3) – Quando o fim do apelo motivacional do socialismo internacional e a rotinização oligárquica da política nacional pareciam ter nos conduzido a um inescapável marasmo político, as urgências socioambientais do crescimentismo incauto e o descalabro político emergem como desafio emblemático de velhos problemas em busca de liderança unificadora para alternativas novas. Marina é a pessoa certa, no lugar certo e no tempo certo.

V. DESAFIOS PRELIMINARES

Há que ultrapassar o ambientalismo. Marina é candidata a presidenta do Brasil, não a símbolo internacional com prestígio local. Não se deve desconsiderar que a aceitação preliminar do nome de Marina deriva também da junção perigosa de suas credenciais de liderança com a comodidade de recebê-la como alerta, não como alternativa. Dá-se com o Meio Ambiente algo semelhante ao que sucede com a Reforma Agrária: ninguém é contra porque parece não haver custo em ser a favor – o tranco vai se dar alhures e em terras alheias. É nessa recepção naife da sustentabilidade que vêm surfando as candidaturas concorrentes, que ao incluírem a sustentabilidade em seus projetos, matam três coelhos com uma só cajadada: mostram-se atualizados, reafirmam o caráter de apêndice complementar da questão ambiental e reforçam o confinamento de Marina na posição respeitável, mas atenuada, de portadora de um alerta.

Mas o Desenvolvimento Sustentável contém um alerta ambiental e uma proposição desenvolvimentista. O alerta já foi dado, falta consolidar a proposição desenvolvimentista, fazer as propostas para que o país conheça um novo ciclo de desenvolvimento, que gere riqueza de um modo diferente, e que essa diferença, orientada pelo respeito ao caráter finito e ao equilíbrio delicado da natureza, seja agregadora de valor e mais eficaz para gerar soluções para os problemas vividos pela população. O mais alto requisito moral desse novo padrão de eficácia é o respeito ao direito à vida das gerações futuras; a viabilidade de sua aceitação depende de ele não ser recebido como um obstáculo à fruição da vida pelos que labutam no presente.

Nessa mesma ordem de idéias, a difusão repetida da notícia de que os prazos para que apareçam os resultados das medidas de contenção da emissão de gazes provocadores do efeito estufa são contados em períodos que ultrapassam mais de uma geração gera um tipo novo de cálculo social, pelo qual aquele que se ocupa da tarefa entende de antemão que não se beneficiará do resultado. Esse entendimento é fundamental para que o eleitor se abra às formulações acerca da sustentabilidade. Na contramão, outro desafio da campanha de Marina será não cair na armadilha de pretender relacionar explicitamente toda e qualquer política a ser proposta com a questão socioambiental. Além de sugerir unilateralismo, a onipresença do socioambientalismo conferiria a tudo um ar de invencionice. Em muitos temas, a associação, se ocorrer, deverá ser deixada a cargo do eleitor, sendo de preferir que a aceitação se dê pelas vantagens materiais que ele antecipe no projeto, do que pelo valor moral contido nele.

No Brasil, em razão de nossa longeva, cruenta, populosa e recente escravidão, os apelos a valores elevados são sempre recebidos com desconfiança nos agrupamentos populares: afinal, a hipocrisia moral atingiu por aqui níveis desumanos. A audiência que prestamos individualmente à prédica edificante, quando prestamos, não fala ao que somos (e, muito menos, ao que fomos), mas ao que supomos que deve ser tido como bom. Esse vínculo frágil com o elevado não resiste ao látego das urgências materiais, mormente quando os indivíduos edificados têm de confabular uns com os outros. No curso da interlocução, as boas intenções são escrutinadas e trituradas sob a mó dos interesses, ocultos ou não.

Pesquisas realizadas pelo autor mostram que o voto entre nós, brasileiros, conhece duas motivações. A motivação moral/afetiva, chamada de fraca, e a motivação racional/instrumental, chamada de forte. Embora coexistam no eleitor, em geral essas motivações afloram à predominância em momentos diferentes da campanha. A primeira motivação é chamada de fraca porque se dá a conhecer na fase da campanha em que os eleitores ainda não estão voltados para a eleição. É um período em que o eleitor experimenta como extemporânea a solicitação de opinião acerca do tema, ocupado que está com as lides cotidianas. Provocado, ele até fala do assunto, mas o faz a partir de repertório muito pessoal, imediato, mobilizado à força, que ainda não recebeu os influxos das trocas interpares. Por isso mesmo, externa suas preferências com base em valores que são pronta, fácil e epidermicamente mobilizáveis, mormente quando há escassa memória acerca das “realizações” do candidato.

A segunda motivação, a racional/intrumental, é chamada de forte porque resulta da formação coletiva da preferência. Ela entra em cena depois que a campanha seguiu seu curso e já se presta ao escrutínio coletivo. Desvinculada da vida cotidiana pela via da especialização profissional, a política só ocupa o eleitor médio quando ele sente que está muito próximo do dia em que terá de fazer a sua escolha. É quando a campanha vira assunto público e as pessoas se vêem exigidas a terem opinião. Dão-se as conversas no trabalho, nos ônibus, em casa, na escola e tem-se a formação compartilhada da preferência. Nessa fase, vêm à tona as carências e necessidades materiais, faz-se o cálculo do que está em jogo e, então, a motivação para o voto muda e, no embalo dela, muitas vezes muda também a preferência, que passa de um para outro candidato, segundo ele tenha propostas claras e persuasivas.

Em suma (4) – Diante da conclusão de um projeto bem sucedido, não obstante criticável em suas limitações, é necessário contrapor um modelo novo em que os elementos de descontinuidade possam aparecer como plausíveis e rentáveis. O melhor é que eles surjam nas áreas mais críticas: saúde, violência/segurança, educação, produção e energia poluente (termoelétricas).

VI. O SOBREVALORIZADO PARÂMETRO OBAMA

As eleições presidenciais americanas de 2008 se deram no contexto originado do 11 de setembro de 2001, dia a partir do qual os EUA vieram dando cabeçadas. A pretexto de dar resposta à ferida inesperada, foram arrastados a uma guerra cruenta e prolongada, cuja aprovação foi obtida com base numa mentira presidencial internacionalmente divulgada e desmascarada: as armas de destruição em massa do Iraque. Seguiu-se um período em que o antiamericanismo conheceu um alastramento e intensidade nunca imaginados (que dirá vividos), sentimento hostil que se somou à crise econômico-financeira, carga penosa que jogou no chão a auto-imagem do americano médio que, até então, se sentira poderoso e inexpugnável. O presidente George W. Bush passou a simbolizar esse fracasso e não foi necessário muito trabalho para transformá-lo no espantalho a ser batido: mentiroso, belicista e incompetente.

Obama pôde dialogar com o conservadorismo norte americano porque soube mobilizar um passado mítico em prol de um renascimento, não de uma transformação. Obama falou do futuro promissor tendo o cuidado de avisar que ele se distanciaria do presente ruim, mas para se assemelhar a um reconfortante passado idealizado. A invocação de valores morais e a mobilização dos afetos vieram assentados na dimensão material e palpável da crise, permitindo a Obama apresentar-se como líder de um projeto de mudança que foi habilmente encenado como um resgate de valores recorrentemente sobrevalorizados: o eldorado perdido que pode ser recuperado. Uma conservadora volta ao passado como credencial para um seguir adiante liberal. Essa equação formidável só foi possível porque os norte-americanos há muito se habituaram a se sentirem superiores, vivenciaram um longo experimento histórico que lhes “confirmou” essa superioridade e estavam em uma crise de auto-imagem sem precedentes em razão de reveses internos e externos. A essas circunstâncias se somaram as qualidades pessoais de um homem cuja experiência de vida pôde ser posta em harmonia com a propaganda  de que os EUA são a terra das oportunidades para os diferentes: Obama apareceu como a própria confirmação da possibilidade de vigência do passado venturoso que momentâneos dias maus encobriram.

Para os propósitos destas linhas, não chegam a fazer falta os conhecimentos de que o autor não dispõe acerca da realidade norte-americana. O quadro abaixo esquematiza a situação que se pretende sintetizar, no singelo objetivo de relativizar a importância da campanha eleitoral do fenômeno político Obama para o planejamento da empreitada eleitoral de Marina.

[ENTRA AQUI A FIGURA 1]

O quadro acima deixa claro que a situação dos EUA era propícia a uma proposta de mudança centrada na propaganda de valores e afetos. Obama pôde falar tanto em valores porque havia base material para o cálculo das perdas de uma classe média empobrecida. Em outras palavras, se as chamadas materialidades e institucionalidades fossem positivas, não haveria nem lugar para um apelo ao passado redentor, nem toda aquela disposição para ouvir a pregação de valores.

Ora, no Brasil em que transcorre o período eleitoral, o quadro é bem outro. Não só Lula não é visto como Bush, mas não o é não por força de algum sortilégio do marketing, senão porque, de fato, está associado a um efetivo, embora contraditório, renascimento do país.
Tendo em mente o que se acaba de discutir, completemos o quadro acima incluindo uma coluna para a realidade do Brasil, fazendo a comparação.

[ENTRA AQUI A FIGURA 2]

Assim classificadas e arrumadas, as realidades dos dois países não deixam muita margem a dúvidas sobre a impertinência de uma campanha centrada em valores quando se está, como nós, diante de uma sociedade cujos pobres alegremente imaginam mover-se na direção da classe média. Observe-se que as três células verdes da coluna dos EUA se harmonizam perfeitamente contra as mazelas das suas células vermelhas. No caso brasileiro, as qualidades da candidata terão de encontrar tradução direta no combate aos problemas do plano material tendo que rediscutir o que se reivindica como êxito e, ainda por cima, sem poder invocar um passado sagrado que houvesse sido profanado. Muito pelo contrário, o nosso passado é mais do que nunca repudiado, mormente ali onde se identifica que ele perdura, agarrado às instituições políticas (o que não deixa de ser um gancho).

Em suma (5) – A inspiradora campanha de Obama não deve ser para nós mais do que um exemplo de técnicas de arregimentação e persuasão. Seria um desastre se tentássemos realizar uma campanha centrada em valores de ordem moral e/ou afetiva. Nosso desafio é fazer da chancela moral de que desfruta a candidata uma janela aberta nas consciências para a aceitação das nossas propostas, que devem estar voltadas à solução dos problemas materiais da população.

SERRA, MAIS UMA VEZ, CANDIDATO DE SI MESMO

 Carlos Novaes, setembro de 2013

Mesmo arrastando evidências que se acumulam no transcurso dos últimos 11 anos, desde quando perdeu o tira-teima geracional, político-social e programático contra Lula, na disputa presidencial de 2002, Serra insiste em se auto-iludir com pretensões presidenciais, obstinado em  não reconhecer que é titular de uma trajetória política que já se cumpriu, tenha ela, ou não, os méritos que supõem.

Ainda que ele pudesse ter ignorado o significado explícito do resultado de 2002 e toda a dimensão simbólica dele decorrente, não poderia deixar de tirar da derrota na disputa pela prefeitura de São Paulo em 2012 a lição inescapável de que quem o derrotou não foi Haddad, mas seu próprio anacronismo: mesmo sem ter para onde correr, o eleitor não-petista (e até anti-PT) que participa daquele contingente sujeito a mudanças na preferência, próprias das campanhas eleitorais paulistanas, mesmo esse eleitor, na hora H, evitou a aventura com Russomano, mas não foi na direção de Serra, preferindo o “desconhecido” Haddad. Deveria ter sido o bastante, pois foi assim que outro obcecado reconheceu que o tempo dele passara: ao não se dar por vencido depois da derrota óbvia para Covas na disputa estadual de 1998, Maluf acabou por desistir quando foi derrotado por Marta na disputa para a prefeitura, em 2000.

No fim da carreira, Serra se comporta como se fosse disputar a primeira eleição, só que sem o pudor do novato, que esconde a certeza íntima de que é um predestinado: o tucano exibe a crença de que o destino lhe reserva um posto que a história insiste em mostrar a todos que ele jamais alcançará. Por isso mesmo, aparece isolado, no papel de profeta de si mesmo, como uma cartomante a colocar cartas e fazer amarrações para, em data certa, trazer de volta a pessoa amada que ela própria perdeu.

Uma candidatura presidencial pelo PPS, dando as costas ao PSDB precisamente porque os tucanos entenderam que o tempo de Serra já passou, só irá ampliar uma imagem que todos já conhecem: um Serra inconformado porque a vida lhe negou a realização do maior desejo.

Seria necessário que o país conhecesse uma crise sem precedentes (que não está no horizonte) e, diante dela, se configurasse um quadro ainda mais remoto: Lula insistir em pedir votos não para si, mas para Dilma; só numa situação assim, propícia à irracionalidade, e plena dela, com a ordem política de ponta cabeça, é que Serra poderia sonhar com uma remotíssima chance de chegar à presidência. Sem uma desordem dessas, o eleitor só dará um voto presidencial a ele por piedade.

2014 precede 2010

Carlos Novaes, Junho de 2009

A situação da política brasileira de nossos dias é de tal ordem que já não é o caso de só reclamarmos que ela se faça sem a participação de militâncias partidárias ou mesmo sem o engajamento dos cidadãos; se nada fizermos, um dia desses nos acharemos lamentando que ela se dê sem fazer caso sequer da tênue e quase inaudível opinião pública. Estamos mais e mais submetidos a um jogo oligárquico cujo tabuleiro foi posto além do nosso juízo e cujas regras, além de não nos darem a conhecer, têm sua vigência sujeita ao correr do jogo. Esse estado de coisas compõe o cenário despojado de encantos à imaginação criadora que emoldura projetos sem contraste, ornamentos para uma mesmice de candidaturas que desanima até as plateias arrebanhadas para consagrá-las.

Essa mesmice que prepara uma disputa inercial para 2010 – e que nasce da oligarquização do processo político – repousa sobre análises e alternativas econômicas cujas linhas gerais foram pensadas nos anos 50 do século passado e, já então, embaladas por matrizes teóricas desenvolvidas no século retrasado: crescimento industrial mais ou menos induzido ou dirigido pelo Estado, com uma distribuição do excedente que variaria segundo este fosse mais ou menos controlado por um de dois pólos da disputa então reconhecida como a mais promissora para estruturar as escolhas de dias melhores – empresários e trabalhadores.

Como a ditadura militar interrompeu aquele processo, a luta pela redemocratização do Brasil e os anos que se seguiram a ela não puderam escapar das aporias postas por aquela interrupção, notadamente porque foi no período ditatorial que a chamada questão social, simbolizada na desigualdade, conheceu sua fermentação máxima. Lula e Serra, homens da mesma geração, representam as duas pontas da força que a ditadura por assim dizer dividiu: os do exílio (que voltaram para reatar a luta) e os de dentro (que ficaram travando a luta); a classe média preparada e com compromisso com os de baixo e os trabalhadores que descobriram a própria força. Serra representa aquela metade da geração a quem a ditadura removeu do proscênio e, ao voltar, encontrou seus pares de geração já imantados pelo metalúrgico que protagonizara mais uma volta no parafuso da história.

Nessa ordem de idéias, no encontro-disputa de 2002 Lula estava à frente de Serra porque sua liderança emergiu do pólo mais dinâmico e mais moderno do processo então em curso: a massa trabalhadora. E emergiu de forma orgânica (era um deles) e numa perspectiva de enfrentar o problema da desigualdade tendo escolhido resoluta e incontrastavelmente o lado que sempre perdera. Naquela altura, Lula representava de maneira cabal a oportunidade de realização de um projeto para a qual Serra fora levado a chegar atrasado ao encontro. Com os governos de Lula, o projeto truncado em 64 se cumpriu, deu-se o envelhecimento inapelável das propostas políticas arranjadas no período e o país deve entrar em uma nova era.

Se for assim, a vitória de Lula em 2002, e os governos que realizou, tornariam por si sós anacrônica a presença de Serra na disputa de 2010, não fosse o fato de o presidente ter optado por uma forma de escolha do seu candidato a sucessor que é em si mesma a materialização do atraso, pois não só contraria o que seria de esperar de um processo político institucionalizado, como agride a percepção que se tem da trajetória do próprio Lula. Ao escolher por vontade pessoal e fazer essa escolha recair em personagem desprovido de luz própria que, quando muito, não pode propor senão mais do mesmo, o presidente impõe a si mesmo como o limite a que o país pode chegar, confundindo o fim do projeto que tão bem representou com o fim da história que, nesse equívoco, já não precisaria respeitar cronologias: o ano de 2014 precede 2010 e já estaria, nos sonhos lulianos, condenado a repetir a consagração de 2006.

Não é por outra razão que a polarização Serra-Dilma aparece a um só tempo tão inescapável quanto desestimulante. Inescapável porque o brilho do presidente ofusca a opinião pública e reduz artificialmente o espectro do que está em disputa (nesse trilho, as chances de Serra estão menos em ele se mostrar uma alternativa e mais em ele se apresentar como melhor continuador de Lula do que Dilma); desestimulante porque mesmo o menos atento dos observadores recebe com frieza e desconforto esse congelamento da ação política (o desempenho de uma Heloísa Helena nas pesquisas traduz essa ânsia por mudança que ainda não encontrou lastro).

Esse arranjo, a um só tempo autoritário e popular, tem levado alguns críticos a dizer que Lula repete Putin, o todo poderoso ex-presidente da Rússia. Embora a história política das duas sociedades se preste cada vez mais a comparações iluminadoras (escravidão até a segunda metade do século XIX, tentativa autocrática para sair do atraso, populismo presidencialista, oligarquização política corrupta, etc), Putin impôs Medvedev com duas diferenças fundamentais: primeiro, a condição explícita de que o próprio Putin continuaria em cena, e em primeiro plano, agora na figura de primeiro-ministro fortalecido com poderes subtraídos da presidência; segundo, uma maioria governista quase pétrea, sem contraste, no legislativo russo. Ou seja, como já não vai estar lá, Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja, Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o PMDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.

Na verdade, isolando-se apenas os aspectos formais, a candidatura Dilma tem menos semelhança com a de Medvedev na Rússia distante do que repete frágil experimento local recente, proposto em São Paulo em 1996: um governante muito bem avaliado nas pesquisas, mas impossibilitado de se reeleger e cioso do seu capital político (Lula e Maluf), escolhe alguém desconhecido, sem histórico político-eleitoral, moldado para “continuar na mesma enquanto eu vou ali e já volto” (Dilma e Pitta). Para compensar a falta de lastro público próprio, o nome escolhido deve trazer em si mesmo evidência óbvia e inegável que permita dialogar com nossa cultura política de massas vibrando a corda sensível da reparação (Mulher e Negro), e a ele se atribui com estardalhaço um programa governamental tão visível quanto controvertido (PAC e CINGAPURA). Em suma, Dilma é o Pitta de Lula. Para completar, se não fizer o recuo que a lógica exposta acima impõe, caberá mais uma vez a José Serra disputar com o preposto em seu próprio campo e, claro, mais uma vez caberá aos transformadores alargar o espaço que há para uma alternativa a essas duas versões do mesmo. Não será de surpreender se este espaço se revelar maior do que a atual paleta de tintas sugere.

À luz de suas realizações desiguais, e até contraditórias, o período Lula aparece a um só tempo como progressista, continuista, conservador e reacionário: progressista em políticas sociais compensatórias, continuista em política econômica e desenvolvimento, conservador na dimensão institucional-democrática e reacionário em meio ambiente e telecomunicações.

Uma política orientada para a transformação não pode deixar de propor uma reformação política antioligárquica, que valorize a democracia. Uma política orientada para a transformação deve encarar o desafio do nosso desenvolvimento entendendo que ele é bifronte: de um lado, dotar o país de um projeto de desenvolvimento que promova condições sociais, ambientais, energéticas, culturais e industriais mais propícias ao bem estar do nosso povo; de outro lado, um modelo de desenvolvimento em consonância com o potencial do Brasil para ser um dos protagonistas de dias melhores para a humanidade.

Não é a primeira vez na era moderna que um país ainda atrasado em seu desenvolvimento interno descobre que o melhor caminho da mudança para si é aquele que também serve de dispositivo para fazer avançar a luta planetária pela solução das aporias de sua época. A história nos mostra que os passos de quem recua ante a tarefa mais longínqua esmagam as possibilidades de realização da mais próxima. Insistir numa concepção anacrônica de crescimento nacional que contraria as exigências para o desenvolvimento da humanidade em seu conjunto comprometerá nosso próprio futuro como nação ao permitir que interesses apequenados se interponham entre o nosso próprio povo e os benefícios que ele pode receber de um projeto de desenvolvimento sustentável que tenha implicações diretas na transformação do modo de vida de todos os povos.

As evidências dessa concatenação auspiciosa entre o local e o internacional renovam oportunidades de luta pela mudança porque elas já não chegam a nós apenas pela pregação dos mais interessados, ou pela via indireta da Internet, da TV ou dos jornais, antes fazem parte da nossa experiência sensível mais básica, pela vivência de intempéries surpreendentes, de cujas consequências a ninguém é dado escapar, seja pobre ou rico; mulher ou homem; amarelo, negro, branco, mulato ou índio: são calores súbitos, chuvas torrenciais, cheias inusitadas, ventos impetuosos, degelos continentais, secas abrasadoras, mares amotinados. Uma natureza que até bem pouco tempo o homem insciente celebrava como a seu dispor põe desafios à existência humana em razão de técnicas humanas adversas a maltratar todo o globo.

Se o Brasil, gigante pela própria natureza, faz por si só diferença no curso da vida mundial, nós, os brasileiros, muito teremos de pensar e lutar se não quisermos abrir mão de fazer diferença na definição sobre c o m o nosso país participará das escolhas mundiais. Mas não poderá oferecer alternativas de ordem geral quem não souber fazer as escolhas locais para superar seu nanismo político, a começar por aquelas que tornem seu próprio povo um protagonista autônomo.

Nossos valiosos cabedais humanos vêm sendo subvalorizados, subutilizados ou simplesmente malbaratados. Os talentos da nossa gente se dissipam numa escolarização tão precária que ao não contribuir para aliviar a faina cotidiana leva a uma depreciação crescente do próprio conhecimento; nossa má distribuição alimentar e nossas redes mambembes de saúde e saneamento abandonam no desvalimento e na doença um enorme potencial humano de criação; nossa produção cultural aparta da fruição, pelo preço, justamente aqueles que são a sua inspiração e que mais carecem dela; nosso desenvolvimento centrado num crescimento submetido a forças deletérias do mercado frustra nossa gente no momento da vida em que cada um tem mais para oferecer como trabalhador e empreendedor; nosso modo corrupto de fazer política exaure antes do desabrochar o ânimo transformador de uma juventude numerosa como nunca antes; nosso jeito excludente de tocar a inovação tecnológica vem colonizando via propriedade material o que é próprio do mundo virtual livre; nosso modelo de produção agropecuária contraditoriamente repele o homem e maltrata a terra; nosso sistema político oligarquizado desdenha a participação de muitos e remunera a obediência de poucos.

Parte considerável das nossas riquezas naturais ou tem sido gasta com o desperdício que a abundância franquia aos incautos, ou se esvai numa avidez danosa que o estado brasileiro não tem querido conter ou jaz adormecida em seu amazônico potencial restaurador e inovador para nós e para toda a humanidade. A extração ruinosa da madeira de nossas matas tem baixa produtividade e acarreta danos ambientais para todos, sem que os empregos locais que gera possam servir de consolo, uma vez que são de qualidade tão baixa que chegam à escravidão e colocam o Brasil na companhia dos que pior tratam seu próprio povo trabalhador. Escolhas governamentais feitas sob a pressão dos negócios têm cimentado nossa matriz energética em modelos cujos ganhos privados não se realizam sem prejuízos públicos, que se avolumam em estragos ambientais progressivos e degradação continuada da qualidade da vida humana. Custos crescentes empurram uma infraestrutura viária voltada para o uso do automóvel à sua própria inviabilidade, cuja paisagem é a de uma paradoxal imobilidade urbana fumegante pela queima de combustíveis fósseis de obtenção e uso cada vez mais onerosos. Nosso imenso potencial para a produção de energia de origem renovável inicia sua realização já limitado pela miopia que os sempre mesmos interesses privados de curto prazo produzem.

É hora de descortinar uma alternativa política inovadora para o Brasil. Devemos buscar reunir todos aqueles que continuam a perseguir a transformação da vida brasileira e gostem da idéia, e queiram partilhar de igual para igual a alegria, de trabalhar na elaboração de uma proposta de Reformação Política e de um projeto de Desenvolvimento Sustentável para o Brasil. Que seja desenvolvimento não pelas obras vistosas que venha a erguer, mas, sobretudo, porque ofereça possibilidades de uma vida menos cansada, mais saudável e prazerosa para o nosso povo. Que seja sustentável não para alimentar em nós brasileiros a ilusão de que é possível virar as costas ao mundo e sustentar-se por si mesmo; mas porque, ao contrário, estimule com o exemplo brasileiro a luta mundial animada pela convicção de que só é realmente possível ir adiante quando se tem em conta o bem estar de toda a humanidade.

O nome para liderar esse projeto e representa-lo na oportunidade única ensejada pela disputa presidencial de 2010 é o da Senadora Marina Silva, não por acaso aquela cuja atuação demarcou os limites da era Lula, cuja trajetória simboliza o que deve haver de continuidade com o caráter popular dessa mesma era e cuja visão de mundo está em consonância anímica com a perspectiva transformadora que nos remete para além dessa era.

NOTA DE 2009 – Este texto resulta da fusão, com cortes e acréscimos, de dois outros, escritos pelo autor entre novembro de 2008 e janeiro de 2009. O de 2008 tratava apenas da candidatura Dilma e foi enviado à Folha, que não o publicou. O de 2009 foi enviado a amigos tempos depois de escrito, quando o autor imaginou que uma candidatura de Marina em 2010 estava, como continua, sendo imprudentemente negligenciada.

A FRAQUEZA DA PRESIDENTA, QUE PARECE FORTE

Carlos Novaes, abril de 2013

A presidenta Dilma almeja a reeleição. A lei dá a ela o direito de pleitear um segundo mandato e seu trabalho como governante vem sendo crescentemente bem avaliado pelo eleitorado ouvido em pesquisas confiáveis. Entretanto, ninguém pode dar como certa a sua candidatura em 2014 e a razão é uma só: Lula pode querer ser candidato.

Ou seja, numa situação inédita, a titular do mais alto posto político do país não é senhora da própria vontade quando se trata de disputá-lo uma segunda vez. Deixemos claro esse ineditismo: todo o poder dela se dissipa ante a vontade de uma outra pessoa, pois se Lula disser que quer ser candidato a presidente em 2014 a presidenta Dilma não terá como sê-lo — ela nem teria como enfrentá-lo nas urnas, e muito menos poderia disputar com ele a indicação partidária do PT.

Exceto problemas intransponíveis de ordem pessoal, nada pode impedir Lula de querer voltar a ser presidente já em 2014. Ele pode não querer, mas não há indicações disso, pelo contrário: no transcurso do tempo Lula tem dado declarações que em nada desencorajam o “volta Lula”, ora quando se recusa a “prever o futuro”; logo adiante quando se diz pronto a fazer política na ruas; mais recentemente quando se faz fotografar em reunião de trabalho com o prefeito de São Paulo recém empossado, ambos acompanhados de seus respectivos ministeriáveis e secretários;  ou ainda quando se declara dedicado a costurar o arco de alianças partidárias para a disputa presidencial de 2014. Vistos de longe, esses gestos aparecem como uma sucessão de estacas cuidadosamente fincadas na demarcação do caminho de volta.

Cada nova declaração ou situação criada por ele enfraquece a condição da presidenta como candidata. Em resposta, na sua aparição recente em cadeia nacional, a presidenta fez dois pronunciamentos dentro de um. No primeiro, Dilma tratou da diminuição do preço da energia elétrica; no segundo, ela explicitou toda a fragilidade da sua condição de candidata, pois se empenhou sobretudo em afastar o fantasma do “volta Lula” num texto que só os ingênuos enxergaram como de combate à oposição. A enumeração do que o petismo encara como feitos de sua era presidencial, por contraste com “aqueles do contra”, apenas subalternamente visou a oposição  — o que se buscou ali foi sobretudo fazer de Dilma a titular em exercício de todo o presumido legado dos últimos 10 anos, para ocupar terreno contra o “volta Lula” dentro do próprio petismo e na opinião pública mais geral. As chances de sucesso são pequenas.

Eduardo Campos e Sergio Cabral em apuros

 Carlos Novaes, fevereiro de 2013

Nem todo mundo deve lembrar, mas Lula na presidência adulava Cabral e Campos com frases como “esses meninos tiram de mim o que querem”. E eles acreditaram. O problema é que só se tira do Lula o que ele quer que tirem dele. Bem aos pouquinhos, tanto Campos como Cabral vão se dando conta de que os meninos do Lula são Haddad e Lindenberg. Comecemos do início.

Os desdobramentos do chamado mensalão e do caso dos “aloprados” removeram da sucessão presidencial vários nomes da geração sênior do PT, tendo restado apenas dois políticos com envergadura para a presidência: Tarso Genro e Marta Suplicy. Nenhum dos dois, porém, com possibilidades de conseguir emplacar na cabeça de chapa: Tarso Genro, pelas suas qualidades, sempre se viu barrado pela burocracia petista, a quem desagradou ainda mais com as posições republicanas que assumiu no caso do mensalão ; Marta porque se deixou enredar pelas ambições precipitadas de parte da burocracia petista paulistana, travestidas, como sempre, num ardiloso ultra petismo, e escanteou o PMDB paulista, no que acabou por colidir com os interesses de Lula na presidência, que buscava consolidar a hoje consagrada parceria com o mesmo PMDB, que tem em Cabral um dos quadros que mais foi mimado por Lula.

Resultados da situação sumariada acima foram a escolha de Dilma-Themer para suceder Lula e a constatação de que o PT não dispunha de uma geração intermediária com possibilidades eleitorais para a presidência. Até as eleições de 2012 a movimentação de Eduardo Campos deve ser observada com esse cenário de fundo: cumprisse um ou dois mandatos, Dilma significava o marco a partir do qual Campos desataria as próprias ambições. Se Dilma viesse a dar lugar a Lula em 2014, Campos buscaria a condição de vice de Lula no sonho de sucede-lo já em 2018, sonho esse embalado pela benevolência esperta com que o líder máximo do PT sempre o mimoseou. Se Dilma buscasse a reeleição, Campos disputaria em 2018 na condição de titular da posição de protagonista da nova geração, pois o PT não disporia de rival nacional viável.

Os apuros do governador de PE começaram quando Lula viu que precisava contornar o mensalão e agiu para preencher o vazio geracional na esfera nacional petista lançando Haddad e Porchman como candidatos a prefeito em São Paulo e Campinas em 2012. O PSB de SP resistiu o quanto pôde a apoiar Haddad, e muitos viram nisso uma ação local. Nada mais ingênuo: a resistência era nacional, pois não pode haver escapado a Eduardo Campos que Haddad eleito em SP significaria o sepultamento de seus sonhos de contar com Lula e seu PT, quer em 2014, 2018, 2022… Como sempre, Lula cortejou Campos até conseguir o apoio a Haddad, mas agora o neto de Arraes sabia que estava a receber um abraço de urso. Vem dessas circunstâncias a tranqüilidade com que o PSB acolheu a atribulada e danosa decisão de Luiza Erundina de deixar a condição de vice na chapa de Haddad: o que Campos mais queria era criar problemas para uma vitória do petista.

Haddad prefeito da maior cidade do país tem tudo para ser o candidato a presidente do PT em 2018 e Campos precisa redefinir seu jogo, pois 2018 ficou longe demais. O problema é que Lula, pelo qual, assim como seu partidário Ciro, ele se deixara levar, está sempre um passo à frente. Ao antecipar o início da campanha de 2014  Lula aperta os parafusos a ponto de faze-los cantar: Eduardo Campos terminou por se dar conta de que se quiser a presidência terá de a disputar contra a força do metalúrgico astuto – fim de tango.

Sergio Cabral, cujas ambições são regionais, até porque seu peso partidário nacional é pequeno, começa a ver o que lhe deveria ter estado claro há muito tempo: o que Lula fez — só até conseguir o PMDB paulista e, com ele, o nacional — não foi domesticar o PT do Rio, mas apenas procrastinar o desabrochar de uma ambição local que o PMDB fluminense ajudou a incubar. Ao obter êxitos junto ao eleitorado popular da baixada fluminense através de Lindenberg e ao dividir o ninho carioca com o PMDB, o PT como que superou seus problemas na populosa zona oeste da capital e já não há como barrar (e seria a terceira vez!) uma postulação custosa mas viável ao governo do estado. As reações ventríloquas de parte do PMDB do Rio à movimentação de Lindenberg têm sido tão impertinentes que o ajudam, pois obrigam setores minoritários do próprio PT a defenderem publicamente o direito a uma candidatura própria que não almejam, de olho que estão na vice do até aqui competitivo Pezão. Dessa vez o Rio terá um forte candidato do PT ao governo do Estado e Cabral verá que os arrulhos vão se tornando um rufar de tambores.

Nem mensalão, nem Getúlio – só Lula impede Lula candidato a presidente em 2014

Carlos Novaes, junho de 2013

O que impediria  Lula de ser candidato a presidente em 2014 é sua recusa pessoal a entrar na disputa, situação que, entre outras coisas, expõe a fraqueza de Dilma como eventual candidata: ela jamais teve, tem ou teria qualquer condição de impedir uma candidatura de Lula em substituição à sua própria. Essa menoridade da presidente não escapa a ninguém – agora ela é o nosso Medvedev.

Se é assim, porque acreditar que não será Lula o candidato do PT em 2014?

Dentre as razões para que alguém acredite que Lula efetivará a recusa de que tem falado estão o apego dele à palavra dada, ou seja, o fato de ter dito que a candidata é Dilma; a saúde, ou seja, a condição de quem venceu um câncer e sofreu seus efeitos conexos; o cansaço/inapetência, ou seja, ele estaria farto da ação política; o cálculo, ou seja, ele avaliaria que a situação não parece favorável a um bom desempenho na disputa pela presidência.

Nenhuma delas resiste ao exame mais simples: desde sempre sabemos que não há político cuja palavra dada não possa ser revista sob argumentos como “se é para o bem de todos e felicidade geral da nação”; a saúde de Lula é, hoje, provavelmente melhor do que em 2006, pois com o susto adotou cuidados jamais experimentados antes; melhor atestado disso são suas viagens pelo país e suas aparições na TV, que indicam, aliás, não haver sombra de inapetência pela ação política exaustiva; finalmente, por mais preocupantes que sejam os números da realidade econômico-social brasileira, eles sempre poderão ser atribuídos pelo petismo justamente ao fato de que Lula não é o presidente…

Há ainda uma razão, que deriva do cenário circunscrito pelas anteriores, para que Lula venha a ser candidato a presidente em 2014: em 2010 o eleitor que queria Lula na presidência votou em Dilma não apenas porque Lula pediu, mas também porque entendeu que Lula estava impedido constitucionalmente de disputar um terceiro mandato seguido. Ora, como Lula vai solicitar ao eleitor que transfira para Dilma o voto que quer dar a ele em 2014, quando reúne todas as condições de ser ele mesmo o candidato? Essa inconsistência contrariaria o eleitor petista e abriria uma janela de incerteza na cabeça do eleitor não petista que quer Lula de volta.

Mesmo diante desses argumentos, em conversa com amigos alguém sugeriu uma razão diferente, de ordem, digamos, místico-psicológica: Lula não seria candidato por temer repetir Getúlio Vargas, que voltou à presidência em 1951 depois de um intervalo de quatro anos (período para o qual o Brasil elegeu presidente, com apoio de Vargas, o Marechal Eurico Gaspar Dutra – 1947-1950) e se viu enredado numa “maldição de segundo mandato” tropical que lhe custou a vida para preservar parte da excelente imagem pública de que desfrutava até e eclosão do, por assim dizer, “mensalão” da época.

O argumento é interessante, mas ultrapassado. Interessante porque todos sabemos que Lula tem Vargas na cabeça, a tal ponto que ao ser reeleito em 2006 começou a providenciar o seu próprio Dutra, ou seja, alguém que, desprovido de personalidade política própria, pudesse sucede-lo sem despoja-lo do controle das variáveis para a eleição presidencial seguinte (1950 e 2014). Tal como Vargas, que adotou Dutra, Lula indicou Dilma.

Se algum dia houve razões para que o trauma vivido por Vargas pudesse ser empecilho pessoal à postulação de Lula em 2014, o próprio Lula acaba de deixar claro que as superou: em declaração recente, comparou o mau momento vivido no estouro do mensalão em 2005 precisamente com a situação que levou Vargas ao suicídio em 1954, deixando claro que, ao contrário de Vargas, derrotou as elites perniciosas de sempre. Lula tem para si que já superou a “maldição”, uma vez que já voltou à presidência, num segundo mandato concluído com muito êxito na opinião pública depois de um escândalo que poderia ter lhe custado os favores dela. Ou seja, livre do mensalão e de Getúlio, nada há de sólido no caminho de Lula para ser candidato a presidente em 2014, salvo ele mesmo.

IMPROVISO AUTORITÁRIO

ATENÇÃO:  Carlos Novaes, junho de 2009

O texto abaixo deve ser lido junto com este aqui, da mesma época. As primeiras versões destes dois textos foram escritas entre o final de 2008 e o início de 2009. Em meados de 2009 eles foram modificados, enviados a vários interlocutores e publicados no site do então Movimento Marina Silva. O compromisso explicativo deste blog (cabe ao leitor avaliar se proveitoso ou não) me leva a indicar a leitura deles, pois minha maneira de avaliar a conjuntura atual segue parâmetros que vêm de longe, o que me dá um conforto duplo: me protege de ter surpresas infundadas e facilita o comentário dos fatos.

Ao longo dos 13 anos em que fez a disputa para levar Lula à presidência (1989-2002), o PT sempre se empenhou em oferecer à sociedade brasileira o que de melhor pôde produzir como projeto, seja no diagnóstico, seja nas propostas de mudança. Mas, já na reeleição de 2006, embora fosse natural que a lógica de governo tivesse peso importante na discussão sobre como prosseguir, afinal buscava-se reconduzir Lula, um partido fragilizado pelos acontecimentos de 2005 acabou por não desempenhar o papel que outrora desempenhara no desenho de um projeto inovador, que contribuísse para liberar o segundo mandato de certas amarras do primeiro. Deu-se o contrário, ganhou força, ao invés de perde-la, uma dimensão do passado que não quer passar e que se infiltra não apenas ali onde a podemos identificar como má, mas também na forma como se passou a conceber o que deve ser celebrado como bom.

Deixemos aos estudiosos buscar se há precedência e, em havendo, se o que veio primeiro foi o abandono do projeto ou a negação das práticas inovadoras. Seja como for, faz 20 anos o PT escolheu pela primeira vez um candidato para representá-lo na disputa pela presidência da República. Naquela, como em todas as eleições presidenciais seguintes, quem era do PT decidiu pelo nome de Lula com o entusiasmo de quem foi chamado a participar. Mesmo quando foi o caso de escolher entre a amplamente majoritária opção Lula e o senador Suplicy, cada um dos petistas, tivesse a preferência que tivesse, se sentiu respeitado e contemplado tanto no método empregado para a escolha quanto na decisão final pelo nome de Lula, pois ela se deu reafirmando a tradição de consulta às bases.

Em 2010, em razão das regras do jogo democrático brasileiro, o petista não poderá contar com uma candidatura Lula à presidência — é imperativo mudar. Mas a exigência era para que se mudasse de candidato, não de método. Para os petistas tratava-se, agora, da experiência inédita de escolher um nome entre vários possíveis. Em política, cada um de nós tem a sua preferência pessoal e ela não vale mais do que a de qualquer outro. Só se sabe o quanto nossa vontade coincide com a do companheiro do lado ou distante quando há um movimento aberto de debate, consulta, p a r t i c i p a ç ã o, reafirmando um padrão democrático que lança um facho de luz contra a prática dos coronéis dos partidos convencionais.

Mesmo diante da notória, ainda que calada, insatisfação de grande parte de seus militantes, filiados e simpatizantes, a direção do PT se rendeu a um outro método de escolha: a chancela pura e simples de uma vontade pessoal, com as mesuras cênicas, e até cínicas, que vão se tornando praxe no arremedar a participação que ontem fez grande aquele que hoje faz uso da força a si confiada para impor. A canga imobilizadora em que obsequiosamente a direção do PT acomodou sua vontade repele o entusiasmo daqueles que driblam as rotinas cotidianas abrindo espaços para lutar, precisamente porque jamais aceitaram delegar aos profissionais da política a decisão sobre os nossos destinos naquilo que têm de comum, de público. Se os petistas deixarem, essa direção os aquartelará no quintal da obediência, em tudo desfavorável à realização da democracia ampla pela qual se tem lutado, pautados por valorizar em cada um a vontade pessoal e intransferível de fazer as escolhas que resultam em mudanças, deitando fora métodos saídos do populismo, expressão de massas da dimensão autoritária da nossa cultura política.

Mas, afinal, por que o presidente Lula escolheu uma neo-petista neófita em urnas como sua preferida para a sucessão presidencial e recebeu a aceitação do PT e do petismo para a imposição da ministra Dilma Roussef como candidata?

A preferência de Lula decorre de duas limitações: da natureza instrumental do seu vínculo com o PT e, dela, de sua inclinação por substituir o petismo pelo lulismo; e da tendência, pode-se dizer natural, de ver a si mesmo como o limite a que a esquerda brasileira pode atingir.

A rendição do PT se dá pela natureza de seu vínculo com o Estado, que se baseia, antes de tudo, na busca pela primazia de nomear ou se fazer nomear.
Quanto ao petismo – desapetrechado de imaginário que revigore energias utópicas, distraído de propostas institucionais inovadoras, não obstante abrigue quem as faça –, vem se deixando reduzir à condição de dragão produtor de fumaça para encobrir o castelo em ruínas até que se resolva o clinch entre o carisma e a burocracia interessada.

Desde muito cedo Lula compreendeu que o PT era uma ferramenta necessária, mas não suficientemente manejável. Como já tive oportunidade de dizer em outro texto – na linha weberiana de que líderes carismáticos querem liberdade para agir e burocracias querem rotinas para controlar –, como resultado dos aprendizados da disputa de 1989, Lula montou o Governo Paralelo como uma burocracia a serviço do carisma, paralela não a Collor, mas ao PT, que crescia longe do seu controle. Tanto que jamais participou senão ritualmente (discursos de abertura e encerramento) dos Encontros e Congressos do partido, embora tenha dado detida atenção ao seu Instituto Cidadania, saído do Governo Paralelo.

Essa relação entre o carisma e a burocracia partidária encontrava expressão plástica cabal no tabuleiro armado ao longo dos anos em que Lula (o carisma) se candidatava a presidente em campanhas organizadas por Dirceu (a máquina). Esse arranjo continha um tenso dispositivo de amarração de interesses: a candidatura do próprio Dirceu à sucessão da almejada presidência Lula. O carisma abriria caminho para o nome da máquina desprovido de apelo eleitoral amplo, e só um acontecimento externo alteraria o curso arquitetado por Dirceu e vivido com desconforto por Lula – salvaguardada a estatura de cada personagem, foi mais ou menos o que Ruy Falcão tentou arrancar como vice de Marta na disputa para a prefeitura de SP em 2004: o desprezo insciente pela natureza não-petista do êxito de Marta em 2000, somado à precipitação de ambições em que a prefeita se deixou arrastar (Lula sempre soube que a vitória dele não foi petista e jamais teria aceitado Dirceu como seu vice) levaram à derrocada previsível, evidente para alguns só quando da tentativa atabalhoada de voltar atrás em 2008, quando Marta buscou, em vão, atrair o Quércia preterido na disputa de quatro anos antes por um Falcão agora em submersão tática. O alijamento do grupo de Marta do governo Lula provém dessas escolhas e dos erros conexos. Agora, no açodamento imprudente (e impudente) de mais uma vez cortar caminho, os parceiros de Marta a empurraram em sua ruidosa, e com ares de primeiros da fila, adesão à opção Dilma. Voltemos.

O episódio do mensalão deu a Lula ocasião para um passo largo na solução de um problema antigo: submeter o PT. A demissão com cassação que fez de José Dirceu uma assombração política abriu um horizonte novo para Lula, que passou a dispor de uma liberdade de movimentos inédita, pois, de um só golpe, removera-se Dirceu do governo, da direção do partido e do calendário eleitoral. Nessa ordem de idéias, o episódio de Belo Horizonte em 2008 (aliança entre Pimentel-PT e Aécio-PSDB), foi ilustrativo de como, desde a derrocada de Dirceu, o carisma se sobrepôs à dinâmica partidária institucional: Lula se posicionou ao lado da solução não-partidária, o partido esperneou dando sinais, pela primeira vez desde 2005, de que pretendia preservar uma zona de autonomia na relação com o carisma, mas acabou cedendo. Daí para impor Dilma foi um pulo nos gráficos das pesquisas de avaliação do governo. Para Lula, a ministra se encaixa à perfeição como silhueta exclusiva de seu facho de luz: o carisma abrindo caminho para uma candidatura lunar, sem apelo eleitoral próprio, desamarrada da máquina partidária e sem afinidades com o petismo (o carismático Vargas fez parecido quando escolheu eleger o anódino general Eurico Dutra em 1946, para acabar voltando em 1950…).

Mas, se estavam claras a falta de trânsito de Dilma na máquina partidária, sua condição de oferecer, no máximo, mais do mesmo e a fragilidade política de sua investidura, o que teria impedido o PT de apresentar um ou mais nomes alternativos à preferência pessoal do presidente?
O que tolheu a direção do PT é sua acomodação ao retorno político que proporciona a desigualdade brasileira, fundada na ausência de habilitação educacional formal da imensa maioria do povo. Nessas condições, toda ação coletiva institucionalizante via recrutamento dos de baixo acaba por se tornar ela própria instrumento de ascensão social. A máquina vira instrumento para contornar as agruras impostas pela desigualdade. Fazer parte dela possibilita ganhos e salários que a simples “luta brava na cidade” não ofereceria, pela razão também simples de que a “cidade” está organizada para manter embaixo os de baixo. Pela acomodação, as possibilidades de avanço social generalizado ficam tão remotas, as perspectivas de transformação assumem talhe tão quimérico, que as melhores e mais aguerridas intenções têm soçobrado no jogo miúdo dos mandatos, contratos e nomeações que se teme perder ao enfrentar o dono da caneta respectiva. Como é próprio dos que se dão prazos largos para ocupação do poder (os 20 anos de Sérgio Mota e de Zé Dirceu), o PT vai se restringindo ao papel de instrumento a serviço de uma, e apenas uma, geração.

Dessa perspectiva, quando se olha não para as nomeações, mas para as políticas públicas em si, vê-se que o PT não está retirando dos programas sociais do governo, com relevo para o Bolsa-família, as conclusões políticas mais profícuas para uma esquerda que não abandonou pensar o longo prazo para além da biografia de quem pensa: esses programas sociais deveriam ser valorizados politicamente não só, nem principalmente, pelo bem-estar que geram (e geram!), mas sobretudo por abrir a possibilidade de se passar a contar com uma nova e positiva figura de cidadão insatisfeito.

Também parece ter escapado que uma crise (dê-se a ela o nome de econômica, ou o nome Sarney) deveria ser uma oportunidade para o petismo voltar a influir no PT e restabelecer, num patamar política, ideológica e programaticamente mais qualificado, a tensão entre o carisma e o partido: no plano simbólico, a crise permitiria resgatar o debate sobre mais ou menos estado nas relações com o mercado; ou mais ou menos vínculo entre a ética e a política, temas emblemáticos dos embates entre esquerda e direita que, repostos, abririam perspectivas novas de persuasão e recrutamento, mormente se articulados a temário de mudança institucional motivadora; no plano político, uma crise em geral impõe a distinção partido-governo, uma vez que o partido, ao contrário do governo, tem o direito, e o dever, de ver na crise uma oportunidade para se desfazer de amarras que o própria crise tornou anacrônicas ou simplesmente desmoralizou; no plano eleitoral ou de um futuro governo, a crise, seja a econômica, seja a político-institucional, torna mais arriscada a aposta em um nome sem memória eleitoral e, assim, desprovido de liames próprios com eleitores e forças políticas.