Carlos Novaes, 17 de novembro de 2014
Nem o Brasil nem a Petrobrás vão acabar.
O debate político está sendo realizado de um modo tão desenraizado da realidade, mistura no ar coisas tão diferentes, que não fará mal iniciar do chão. Para merecer o selo de “produção orgânica”, o plantio de hortaliças exclui tanto o uso de agrotóxicos industriais no combate a pragas quanto o emprego de adubos químicos para fertilizar a terra. Respeitadas essas exigências, cabe ao hortelão decidir com qual das receitas de calda à base de fumo vai combater as pragas, assim como está livre para enriquecer o solo escolhendo entre as diferentes concentrações de Nitrogênio oferecidas naturalmente pelos estercos de boi, galinha ou cabrito. Dentro do mesmo “projeto orgânico”, dois hortelãos podem apresentar combinações diferentes dessas escolhas, o que não exclui eventuais disputas pela composição mais adequada para obter o resultado final comum: uma hortaliça viçosa e isenta de resíduos tóxicos. Por exemplo, desde que ambos respeitem a regra de banir a química industrial de seus plantios, pode se dar o debate sobre se o melhor é fazer a adubação com esterco de boi ou cabrito e, nesse debate, a hortelã A pode defender que seu uso do esterco de boi dá resultado melhor do que o esterco de cabrito preferido pelo hortelão B, pois nele haveria excesso de Nitrogênio. Nesses termos, não faz nenhum sentido que adiante o hortelão B pretenda ver incoerência quando a hortelã A fizer uso de esterco de galinha, solução intermediária na concentração de Nitrogênio, uma vez que ela continua seguindo as regras do pacto orgânico comum e não adotou o esterco de cabrito. Muito menos cabe censurá-la por adubar a terra, pois em momento nenhum ela abriu mão de intervir no enriquecimento do solo. E mais: mesmo que ela viesse a fazer uso do esterco de cabrito que antes condenara, ainda assim suas hortaliças não deixariam de merecer o selo de “produto orgânico”, pois ela não teria se afastado do projeto comum, ao qual seu pai aderiu quando ela ainda dava os primeiros passos na chácara.
Os movimentos de Dilma nesse intervalo entre a vitória e a posse para o novo mandato só surpreendem quem ainda não enxergou que PT e PSDB são hortelãos do mesmo projeto de acomodação conservadora com melhora incremental da situação dos muito pobres. Assim como não houve incoerência quando Dilma aumentou os juros logo depois da eleição, também não haverá quando ela nomear para a fazenda um Meirelles, por mais fraudados que se sintam aqueles que compõem o vasto contingente dos que votaram em Dilma para “livrar” o país de Armínio. Afinal, quando Dilma se contrapôs a Aécio dizendo que os tucanos “plantam inflação para colher juros”, ela estava se referindo não a quaisquer aumentos de juros, mas à “concentração de Nitrogênio” que esse aumento traz quando o pacto comum é conduzido pelos tucanos. Não entender isso é ignorar algo básico, pois governo nenhum pode abrir mão de eventuais aumentos de juros ao conduzir a política econômica. Assim, chega a ser engraçado ver a contrariedade da auto-intitulada esquerda aderente (convenientemente esquecida, aliás, da política de juros que calou no governo do hortelão barbudo), bem como a reiterada armadilha em que caem os tucanos porque cegos ao caráter comum do projeto: ficam no falso dilema de ou atacar a adoção de medidas que eles próprios defenderam, ou denunciar que o adversário lhes está roubando as propostas! Nem uma coisa, nem outra, leitor: eles são sócios contendores de um mesmo projeto, cujo limite é não enfrentar a desigualdade, e não cabe falar nem de cópia, nem de roubo.
Uma vez aclarada a situação, parece fora de dúvida que Dilma teria de ser muito ingênua ou impressionável se tomasse decisões nos termos e na velocidade sugerida pelo alarido na mídia, deixando de explorar todo o intervalo que separa o fim do governo atual da posse para o próximo mandato. A definição da política econômica mais conveniente à manutenção do pacto passa pela escolha do ministro da fazenda, coisa que parece estar encaminhada de forma que dificulta o trabalho da oposição (daí a pressa dela em fazer clima), como dão indicações os últimos artigos de Meirelles em sua coluna dominical na Folha de S. Paulo. Me explico: a pista mais clara de que Meirelles deve assumir o ministério da fazenda vem do fato de que seus artigos passaram a trazer uma mistura tão discreta quanto conveniente de apetite pelo desafio com viés “desenvolvimentista”! Três domingos atrás, seu artigo falou de “crescimento e inclusão social”. Nos dois domingos seguintes, um Meirelles animado classificou como “interessante” o mundo de dificuldades que se anuncia para os próximo anos e arrematou com afirmações que fazem os três artigos mencionados valerem por um manifesto de véspera de nomeação:
“Os emergentes portanto, terão que resolver os seus problemas domésticos de competitividade e produtividade para voltar a crescer a taxas desejadas. A boa notícia é que isso é viável.”
“A lição ao Brasil é que temos de ajustar nossa economia enquanto investimos em infraestrutura, produtividade e educação. Assim poderemos competir e crescer num mundo que sairá da crise mais forte e competitivo.”
Ou seja, Meirelles, que foi presidente do Banco Central sob Lula, já se ajustou ao perfil “desenvolvimentista” de Dilma, o que é um passo decisivo para uma nomeação que dará a ela fôlego suficiente para chegar à posse desarmando dispositivos adversários sem abrir mão do discurso com que pretende justificar diferenças para com os tucanos, preparando o terreno para fazer as maldades necessárias à meta de chegar a 2017 com o país mediocremente feliz com a marcha do que resta do plano Real e, claro, colocando Lula na boca do gol.
Não é por outra razão que pescadores de águas turvas estão tentando, na mídia e nas ruas, juntar de forma indevida, porque antidemocrática, o caso da Petrobrás (que é sério, desgastará Dilma e Lula e abrirá um rombo no PT) com urgências e paixões eleitoreiras. O propósito é atenuar, ou mesmo anular, esse que é o fator mais favorável a Dilma na atual conjuntura, talvez o único: ela tem pela frente um mandato novo que, gostemos ou não, lhe foi conferido pelo povo. À suposta urgência de um novo ministério, somam-se tanto manifestações de rua sem legitimidade (pois raspam o tacho das paixões despertadas no infértil período eleitoral recente e apresentam a textura gosmenta do golpismo), quanto vozes de uma oposição quase democrática, que pretende nada ter com isso e jura aceitar as regras do jogo, mas vai a manifestações golpistas como Aluysio Nunes tem feito, ou faz declarações como as de Fernando Henrique, quando se diz “envergonhado” do que acontece na Petrobrás (sem mencionar vergonha pelas empreiteiras que financiaram suas campanhas e a de seu correligionário Aécio), ou afirma que a própria Dilma “se sentiria ilegítima”. Ora, ela venceu a eleição dentro das regras do jogo e o placar apertado não implica ilegitimidade — vale lembrar que Bush chegou à presidência dos EUA depois de perder para Gore no voto popular direto e nem por isso ex-presidente algum insinuou que ele sentir-se-ia ilegítimo por ter chegado à vitória legal pela via indireta do colégio eleitoral. Os problemas de Dilma são outros.
Mas Dilma não poderá ser uma governante medíocre nos próximos anos, como é hoje. Isso influirá no pleito de 2018, cujas forças PT e PSDB, degladiarão novamente. Uma terceira via terá de aparecer.