Carlos Novaes, 24 de março de 2016
[Com um acréscimo em Fica o Registro, às 19:10]
A corrupção entre políticos e empresários, os primeiros agenciando o voto, e os segundos agenciando os interesses do chamado mercado, está tão disseminada, complexa e volumosa que a movimentação da propina de uma única empresa, a Odebrecht, exigiu desenvolver um software para gerenciar sua participação nesse sistema tantalizante de reunir poder para fazer dinheiro. Ora, empresa alguma se organiza com tanto capricho para fazer o que não quer, para tomar prejuízo: como já disse aqui, a corrupção não é uma maneira de as empresas poderem trabalhar, é uma forma de elas aumentarem seus lucros; a corrupção não é um meio para políticos pagarem campanhas eleitorais, é um modo de eles ficarem ricos a qualquer preço. O que leva empresas e políticos a se associarem na corrupção não é, portanto, o instinto de sobrevivência, é a ganância sem o freio dos escrúpulos. O fruto da corrupção não é um dinheiro que as empresas pagam aos políticos, ele é um dinheiro que empresas e políticos repartem depois de nos roubarem. Os custos crescentes das campanhas eleitorais não são causa da corrupção, são uma desculpa esfarrapada para ela – até porque, como deveriam saber todos os especialistas em leis de mercado, as campanhas são cada vez mais caras porque há cada vez mais dinheiro para elas. Em outras palavras, não se rouba cada vez mais para pagar campanhas eleitorais cada vez mais caras; pelo contrário: campanhas eleitorais são cada vez mais caras porque há cada vez mais dinheiro de corrupção para gastar nelas.
Segundo notícias de hoje na imprensa, o pouco que a Polícia Federal encontrou do software “higienizado” da Odebrecht permitiu elaborar uma lista com nada menos do que 316 (mais do que os 300 do Lula) nomes beneficiados pela distribuição institucionalizada de dinheiro do propinoduto, figurando entre eles políticos com papel central na dinâmica institucional brasileira nesse período de consolidação democrática: nossas instituições vem sendo geridas há anos, por vezes décadas, pelos mesmos nomes e pelas mesmas práticas. Sob a inércia e o desinteresse da sociedade brasileira, a reeleição infinita para o Legislativo levou a uma enorme estabilidade do que não presta: são sempre os mesmos nomes, com os métodos de sempre. Em nossa democracia, o que se consolidou foi a corrupção. Num cenário desses, em que todos os protagonistas graúdos da política eleitoral brasileira se igualam, fica cada vez mais impertinente escolher lado nessa polarização fajuta entre PSDB e PT, onde o segundo vem sendo demonizado não por ter ficado igual ao primeiro, mas porque um dia se disse o oposto dele – boa parte da fúria contra o lulopetismo se alimenta não do mal que ele fez, mas do bem que ele um dia simbolizou (daí também a indevida importância pública que deram ao linguajar empregado por Lula em suas conversas privadas).
Como já foi discutido em mais de um artigo neste Blog, a Lava Jato é o primeiro vetor relevante dirigido contra esse estado de coisas, mas seu potencial transformador está sendo dissipado por uma unilateralidade que precisa ser vencida. Enquanto os protagonistas da rua forem os contingentes polarizados segundo sejam pró ou contra o lulopetismo, cujo exercício mais recente da presidência da República deu causa ao início das investigações, a Lava Jato ficará limitada a instrumento desse cabo de guerra, produzindo muito calor, mas pouca energia para a mudança. Essa lista com 316 nomes oferece a primeira evidência real de que o problema é sistêmico e dá motivação nova para que a sociedade empurre a Lava Jato adiante, desvencilhando-se da arapuca do impeachment de Dilma, que foi armada por Cunha e, mais adiante, encampada por Temer, que vê na saída da presidente uma oportunidade para assumir a presidência da República e fazer da vitória sobre o lulopetismo a válvula de escape para a pressão que ameaça todo o sistema político.
A tarefa para quem está interessado em explorar as possibilidades emancipatórias abertas pela Lava Jato é fazer das listas da Odebrecht a base material para levar a se moverem aqueles que, indignados, ainda não saíram às ruas porque não se identificam no FlaxFlu enganador entre o lulopetismo e o resto. Se não criarmos um terceiro vetor, seremos engolidos pela velha política, esteja Lula como primeiro-ministro ou no olho da rua. Se criarmos um vetor consistente no meio da rua, há uma chance de calarmos os supostos radicais que se hostilizam nos margens dela e, mais importante, atrairmos aqueles que estão na rua, mas em posição desconfortável, pois não se reconhecem na direção dada às manifestações. Temos de reunir quem não se identifica nem com a defesa do impeachment, nem tem compromisso com a permanência de Dilma. Não faz sentido defender o impeachment de Dilma porque até aqui ainda não apareceu prova de crime seu no exercício da presidência; não cabe defender sua permanência a qualquer preço porque já há evidências de que a chapa Dilma-Temer recebeu dinheiro de propina nas eleições de 2014, crime eleitoral que levaria não ao impeachment no Congresso, mas ao afastamento de ambos pelo TSE, e à convocação de novas eleições. Temos que fazer tudo o que pudermos para impedir que o país saia dessa crise com instituições políticas ainda piores do que essas que nos infelicitam.
19:10h – Fica o Registro:
1- A cegueira de Dilma já é conhecida de todos, mas a declaração dela de que não há como impedir a ida de Lula para o governo, num desafio infantil, contraproducente e desnecessário ao STF, que ainda vai decidir sobre a nomeação de Lula para a Casa Civil, mostra que ela não tem ideia da gravidade da situação, até porque, se Lula for preso, estará impedido de ir não só para o governo, mas a qualquer parte.
Muitas pessoas foram às ruas dia 18 para protestar contra o impeachment, que acham golpismo, não necessariamente para defender o PT, e para reinvindicar reforma política.
Qualquer manifestação contra impeachment é vista como pró PT. Toda manifestação pedindo a saída de Dilma é vista como golpismo. Nada é simplinho assim…
É, um dos meus problemas é que eu sou simplinho. Ainda bem que há leitores sagazes e vigilantes como você.
Não foi isso que quis dizer.
Já começaram a rolar iniciativas assim, no sentido de se criar um debate entre pessoas que não estão na polarização. Acho muito bom que isso aconteça.
Longe de mim insinuar que sua análise é simplista. Acompanhava suas participações no jornal da cultura e leio seus textos. Se achasse isso não ia perder meu tempo. Odeio conversar por meios virtuais, dá margem para muitas interpretações.
Inclusive achava você o melhor comentarista do jornal, uma pena o que aconteceu. Perdemos o melhor jornal da televisão brasileira com as mudanças que fizeram.
Ariane,
desculpe o azedume. Eu até me arrependera da resposta que dera a você, pois depois percebi que entendera errado, uma vez que eu mesmo havia falado naquele post sobre pessoas que estavam desconfortáveis nas próprias manifestações a que iam e, assim, você não poderia ter deixado de entender minha posição. Que bom que você reagiu tão bem (e melhor do que eu). Um abraço.
Outra coisa: você tem razão, já começam a aparecer iniciativas de rua na direção que venho abordando. Os setores autointitulados mais à esquerda estão começando a se manifestar. Não estou de acordo com a leitura “classista” deles na hora de conceber uma alternativa, acho que uma abordagem assim não tem nenhuma possibilidade de agregar os muitos setores descontentes que não estão a reboque do establishiment — mas os vejo como aliados.
Imagina Novaes, não precisa se desculpar, fiquei preocupada também depois de escrever, acho que o comentário realmente deu margem para você interpretar como uma crítica.
Acho muito importante a sua iniciativa de fazer o blog e nos propiciar uma visão mais crítica e aprofundada para que possamos entender esse período tão conturbado e sem pender para lados. O maior problema no nosso jornalismo e mesmo entre intelectuais é que há sempre interesses implicados, isso é terrível. Eu agradeço.
Um abraço!
Meu grande medo: Que a lista divulgada pela Odebrecht tenha como o resultado o famigerado “acordão”. Há que ficar de olhos bem abertos.
Não fique de olho. Fale com os amigos e vá à luta!
Novaes, a questão é muito complicada, ainda mais no brasil analfabeto onde o povo é diariamente intoxicado pela midia_globo, um povo sem experiencia de pensamento_leitura.Pra mim o fundamental é pensar:Como fazer pra casar a classe media com os pobres para peitar a elite brasileira , por sua vez muito bem casada com os interesses externos.
Sim porque como voce mesmo ja disse nesse blog, a classe media nada ganhou com o lulismo, na verdade ela carregou nas costas o pacto lulista, que consistia num ganha _ganha entre pobres e ultra_ricos.
Mas temos uma classe media racista que odeia pobre??? Isso é real???Por que se for assim a classe media continuara marchando com a elite.Como construir um pacto ganha_ganha entre os pobres e a classe media afim de arrancar dos super_ricos os recursos necessarios para combater a desigualdade e melhorar a qualidade de vida nas cidades.
Enfim como fazer a classe media enxergar a elite como sua inimiga e não os pobres?????
A chamada classe média é muito variada, sendo ela que provoca as alterações eleitorais, especialmente nas grandes conurbações. De fato, a questão é um pacto ganha-ganha entre o grosso da classe média e a maioria dos pobres, contra os ricos. Mais fácil de falar do que de alcançar… Vejo que o fim da reeleição para o Legislativo seria uma bandeira palatável a todos, contemplando, inclusive, os diferentes níveis de compreensão da realidade: cada um se engajaria na luta pelo fim da profissão de político com seu próprio repertório. Depois disso, talvez possamos avançar na luta contra a desigualdade, que me parece A bandeira capaz de gerar solda. Mas tudo levará tempo, muito tempo.
Caro Novaes, ótima análise, como de costume.
O posicionamento de alguns intelectuais e formadores de opinião em um ou outro lado da falsa polaridade não impede a terceira via?
Se a desigualdade é a força que alimenta a crise de representação política – e ela não será resolvida a curto ou quiçá médio prazo – não caberia a estes formadores de opinião pararem de defender um dos lados e arregimentar a classe média com melhor capacidade crítica em direção à alternativa postulada no seu texto?
Não estaria na hora de fazermos a crítica aos intelectuais? Diante da inexistência de forças políticas estabelecidas confiáveis, o seu papel não se torna mais relevante na “crise” e na crise?
Todo aquele que escolheu lado está a ajudar a tornar a realidade ainda mais baça. Devemos insistir na crítica da situação e esperar que assim se construa um novo caminho. No limite, a saída é acabar com a reeleição para o legislativo, nos termos e pelas razões que já defendi muitas vezes neste blog.